quarta-feira, 28 de setembro de 2011

Carioca

Marcos Aurélio S. Souza

Estrelas miudinhas, coloridas, faz cosquinha em todo meu corpo, até no fundo da espinha. É sempre assim: maconha me faz bem, a pedra me faz feliz. Deixa pedra pra lá...

O Carioca perdeu o tempo das coisas. Caralho, porque ele não aplicou uma coronhada naquela puta. O jeito é investir numa taurus de verdade, assim a gente queima logo neguinho e branquinho, não conta conversa. Esse viadinho, menino do Rio, com esse papo de teatro, pistolinha da Estrela, vou botar ele pra subir na minha, ele vai ver o que é bom pra tosse! Teve vida boa lá no Rio, com certeza, deve ter estudado em escola privativa, sei muito bem que a mãe era enfermeira formada. Leva uma grana boa no final do mês. Ver na pinta que dormiu de edredom na vida, esse rebelde sem causa.

Vacilou... Eu preto, ele branco, ver se isso presta. Boto logo pra pegar no pesado. Eu fico no tempra e ele vaza na pedreira, pega o berro e bota o terror. Aqui não tem isso de preto sempre o bicho mau, ele pega o disfarce de branquinho gracioso, e vai pra cima, eu abro ala atrás e rabio depois. Tá ligado que eu sei a ficha dele todinha. Binha trabalhou um tempão com Dona Clotildes, a avó dele, gente boa. De noite, quando a gente se encontrava, ela me passava tudo, até a história do tio traficante, dominando as bombas da Disneylandia, em Contagem. Tristeza dupla pra velha, com perna estourada de diabete.

Ela agora vivendo miséria com o neto no crime. Se não fosse eu pra colocar ele nos trilho das mina de ouro, pagar hospital pra ela, ia ficar de chupeta no sinal, levando paletada na cara. Eu que não quero mais essa vida de malabares em trânsito, limpar vidro de ninguém. Vou deixar boyzinho com vista embaçada mesmo. Se puder, escureço mais. Depois daquele velho, num toyota corolla, dizendo que ia me levar pro Picolino. Binga, o baleiro, me gritando. Fiquei desconfiado. Vou deixar coroa comer meu rabo? Nunca paguei pau de cabrito na faculdade do crime, não é aqui fora que vou fazer isso. Lá ele.

Agora ele fica nessa de ser preto, ouvindo Racionais, dizendo que vive o mesmo negro drama que eu. Dia desses pedi pra contar quantos branquinhos como ele penava no sinal. Saímos no tempra do Santo Antônio, depois de um arrumadinho, descemos Cidade Baixa, Calçada, passamos pelo porto, antes da feira de São Joaquim, dois pretinhos, o menor devia ter três anos, o maior cinco, no máximo. Seguimos em direção ao Mercado Modelo, a pivetada pulando no mar, uma multidão preta esmolando turista. Subimos em direção a Barra, meninada vendendo biscoito, uma pretinha de uns doze se insinuando atrás de gringo. Seguimos orla todinha, só vimos preto no sinal. Na Manoel Dias, um miserê, a negrada concentrada, lembrei logo de minha mãe. Dona Lourdes, 57 anos hoje, mirrada, 47 quilos de osso e sofrimento, morando em Camaçari com meu irmão, aquele que envergonhou família e foi ser polícia.

Na praia, no nosso encontro de negócios, orgulho do meu discurso, eu plantei a real para o Carioca: “Viu isso: eu não estudei história como você, mas sei que essa cidade nunca foi boa pra preto. Sua estadia na FEBEM do Rio não te dá credencial pra tirar onda em cima de baiano. Aprende logo a manejar arma de fogo, aqui também a miséria é negra, tem caveirão, complexo de alemão e o escambau. Quebro seus dentes como já fiz uma vez. Matei um amigo na Baixa da Égua, porque tirou onda e me chamou de Barriguinha, mato você também”. Meu nome é Donga, porra!

Carioca tem olhar de boi manso, dá pena.

terça-feira, 27 de setembro de 2011

O Barriguinha

                                                    Marcos Aurélio dos S. Souza


“Pra aquele lado não, que é barril!" Gritei pra Donga e ele acelerou o tempra na ladeira, em direção a Armação, evitando a Artur Azevedo e o módulo dos canas. A voz da madame era estridente, caiu como uma jaca, pensei que tinha desmaiado. Todo mundo perde o tino diante de uma taurus, mesmo de brinquedo. O barulho de ré, cantando pneu, a dona no chão na frente do prédio, com as duas mãos na cara. Mais gritos.

Donga era comparsa até no dominó. Conheci na Baixa da Égua quando era chamado Barriguinha. Tinha uns dez anos, seco de dar dó, depois mudou para o Nordeste de Amaralina e continuamos se topando numas paradas sinistras. Ele fazia o tipo cabuloso, eu era seu aprendiz. Tomou corpo, ficou forte, deixou cabelo crescer, começou a fazer sucesso entre as tchutchucas, curtia viado também e não escondia. Brigou com uns quinze (quase matou um) por causa do antigo codinome, Barriguinha. Com dezesseis impôs a todos o Donga, eram as iniciais de seu verdadeiro nome: Donizete Garcia. A gente tirava um sarro dele, quando lembrava seu nome civil, parecia de bandido mau, mexicano ainda por cima.

Era outro agora. Vinte dois anos de idade, três crimes nas costas, duas vezes na cadeia. Barriguinha, uma lembrança. Quando saí do Rio e vim pra cá com doze, me meti logo com a pivetada da Bahia, comecei roubar, Donga quem me iniciou nas paradas. Olho pra ele agora, dirigindo o tempra, roubado em Lauro de Freitas, nem parece o toco de gente, pele e osso que tinha seu ponto na Pituba. Naquela época, fumava cigarro e jogava coco como ninguém, com seus braços finos, malabarista de primeira. Dizem que um coroa, empresário do Picolino, quis levar ele pro circo. Ele vazou. Velho quando parava no sinal “pra conversar” de duas uma: quer comer o rabo da molecada ou levar pra religião (as duas coisas, ao mesmo tempo, também era possível). O menino baleiro ainda tentou avisar de quem se tratava. Donga não quis meia, se picou.

Sabia que eu tinha terminado de sair da FEBEM, que minha mãe não me aguentou e me enviou para Bahia, morar com minha avó, que meu tio foi presidente de cadeia na Disneylandia, em Contagem. Aproximou-se de mim com interesse, não de aprendiz, mas de mestre. Na época ele era o mais mirrado e o mais ousado da turma de pivetes, ofereceu um cigarro e me levou para a boca dos caras. Lembro que, ainda cabaços, comemos juntos duas negas das Cajazeiras, atrás do Cristo na Barra. Ele relou o braço nas pedras, afoito. Tirei sarro dele e da mina feia com ele, ele partiu pra cima: “Porra Carioca, sai pra lá”. Deu soco e pontapé em mim, quebrei um dente. Nunca mais brinquei com ele, passei a respeitar sua autoridade e sua valentia.

O irmão mais velho, que virou samango em Camaçari, não cansava de troçar dele, lembrando do velho apelido. Dizia que Donga, mais novo dos irmãos, quando tinha três anos, ficava com a mãe na Manoel Dias, fazendo gesto engraçado o dia todo, batendo na barriga e estendendo a mão para os motoristas no sinal de trânsito. Miúdo, sujo e faminto, fazia ainda o mesmo gesto, dormindo e sonhando com comida, debaixo da marquise, numa caixa de papelão.

Com ele me especializei na modalidade tomada de carro. Tínhamos informantes, que passavam a real, o mapa de cinco ruas no Costa Azul e Pituba. Diziam os horários de saída e chegada das riconas solitárias. Ficávamos na espreita, no menor vacilo atacávamos, levávamos o carro para o desmanche na Boca do Rio. O esquema era: ele dirigia, parava o tempra atrás do carro da vítima, eu saltava, colocava o berro na cabeça, mandava levantar a mão e descer, deixando a chave no painel. Donga ia na frente, abrindo caminho, e eu ia atrás no carro roubado. Num mês tivemos três êxitos e ganhamos uma grana preta do desmonte. Dessa vez, a mulher saiu do carro de supetão, andando depressa para frente do prédio com a chave na mão. “Larga chave sua vaca, passa pra cá”. Largou a chave na boca de lobo, desabou no chão com as mãos na cara. Eu entrei novamente no carro, assustado com os gritos de “ladrão” do zelador, no prédio ao lado. Donga deu a partida.

Agora subíamos a ladeira do Centro de Convenções, descíamos em direção ao Aeroclube, no som de "Negro Drama" dos Racionais, nossa música, nosso hino. O destino era conhecido: praia do Corsário. Lá fumávamos um back para relaxar, pensar direito no que erramos. Ele me pedia, enrolando a erva, pra não deixá-lo virar um nóia por conta do excesso de canabis, e crack "vez em quando". E uma estranha intimidade se desenvolvia nesse momento. Parecíamos namorados discutindo a relação, ou casal discutindo os problemas do orçamento da casa. Ele lembrou da menina de Amaralina com quem andou se engraçando mês passado, “uma cavala”. Eu dizia que nunca fui talarico, mas que estava de olho nela também. Fazia uma cara de ciúme, e eu sabia que era de ciúme mesmo. Donga voltava ao assunto do crime e das duas vezes que “tocou o foda-se” pra cima da polícia, depois de roubar um ônibus. Prova de sua macheza.

Enquanto falava, minha mente viajava no tempo recente. Lembrei das duas vezes que, tarde da noite, voltando juntos de uma farra, na onze, Donga se desviou rapidamente do caminho, em direção a caixas de papelão, no meio do lixo. Voltava em seguida para mim, sorrindo com seus dentes, enormes e lindos: “pensei que tinha visto um pivete ali”.

sexta-feira, 23 de setembro de 2011

Lubinha

Marcos Aurélio S. Souza

Lubinha era a menina mais assanhada do bairro. Desde que conheci era assim. Uns quatro anos atrás, chegando novo no bairro, um psiu insistente, pensei não era pra mim. Mudança pesada, carregando televisão de tubo, psiu novamente. A insistência não deixava dúvida, alguém me conhecia naquele lugar, olhei e no alto consegui ver o vulto de cabelos negros, longos, enrolados, rosto oval, pele negra, abaixou-se na janela escondendo-se. Os rapazes, que me ajudavam, descarregando a mudança, riam sem disfarce, imaginei que a conheciam, o psiu poderia ser pra eles. Olhei de novo, e da janela a moça desconhecida, no terceiro andar do prédio ao lado, apareceu de sobressalto com um: “bem-vindo vizinho”.

(Olho no olho, disse a ela que tudo ia passar. Arrependi-me do chavão. Ódio de mim mesmo, de meu conforto, de minha vida boa, solteiro na cidade, comendo bem, fazendo o que eu gosto. Ela me perturbava ao seu estilo, olho no olho. Nada ia passar pra ela. Via amargura e incerteza nos olhos de Lubinha. Abraçou-me.)

Na mercearia, comprar ovos, leite, pão. Ela aparece, finjo que não vejo. Linda, uma bermuda, camisa amarela, barriga a mostra, piercing. Finjo que não vejo. De costas, esperando sua chegada e o beliscão na bunda: “Gostoso”! Na rua, mais provocação, depois do primeiro copo de cerveja dizia estar alta, então ficávamos altos juntos. No meu apartamento, tirava a roupa na sala ia para o banho e me chamava lá de dentro, eu ia. Fumávamos charuto e tomávamos vinho a noite toda, era o pior porre de nossas vidas, a ressaca era terrível. Pela manhã, gritava o menino do leite da janela, ela mesma descia de robe (sabia que me provocava), voltava sestrosa: “leite fresco”.

(Olho no olho. O irmão envolvido com crack, recuperando-se, vivia agora se drogando de café e de drogas lícitas, dormia a manhã e a tarde toda no apartamento minúsculo de um quarto. A mãe num subemprego qualquer e Lubinha cansada de trabalhar em loja de departamento, ganhar 400 reais, sem direito a almoço. Não conhecia pai, e sua outra irmã vivia na orla, arranjando “clientes”. Desconfiava que Lubinha fazia isso algumas tardes também. A irmã mudou para um outro apartamento. Lubinha segurava as pontas. Contou-me que foi violentada duas vezes na infância por um padastro, viveu na rua, agora pensava estar bem, mas não estava. Ódio de mim, do meu medo de Lubinha).

Domingo, jogo do Bahia, estádio cheio. Multidões deixavam Lubinha afoita, queria subir nas minhas costas na hora do gol, bater num adolescente que a chamou de gostosa, e no cambista que ironizou a posição do tricolor, “brigando para não ser rebaixado”. Muito sangue corria naquelas veias, o barulho da multidão incendiava seu ímpeto violento e duas vezes me arranhou feio com suas unhas. Na saída, o placar favorável, os dois gritos de gol, deixou-a indomável, sexualmente indomável. Beijou-me e mordiscou meus lábios várias vezes, puxava a gola de minha camisa, mordia minha orelha, enfiava a mão nas minhas costas, arranhando: “você não gosta assim?!” - sorria ordinariamente. O mesmo banho, a mesma noitada de charutos e vinho.

(“Vai melhorar”, outro chavão - ódio de mim. Ela olhava compassiva meu rosto, tomava minha mão, cheirava-a, puxava meus dedos – uma velha mania sua. Lágrimas corriam. Ia se mudar. Seis meses de atraso no aluguel, o dono conseguiu ordem de despejo, e a mãe desempregada. Talvez viveria com a irmã, ou iria com a mãe e o irmão viver num barraco de um obscuro tio finado. Deixei-a nas incertezas, eu pegava em suas mãos, cheirava seu pescoço limpo e perfumado. Medo e alívio, um vazio crescia e se transformava em liberdade. Livre de Lubinha, da sua miséria e da sua libido. Mordiscou meus lábios, em sua última provocação. Desceu as escadas.)

quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Duas meninas na porta da igreja

Marcos Aurélio dos S. Souza

Para Braulino

 Está vendo aquelas duas meninas na porta da igreja? É um casal de lésbicas. Sorridentes, conversando sempre, elas gostam de chegar cedo, pouco antes de Neuza da limpeza, hora antes do culto.

A mais nova é filha do corretor, o homem que conseguiu o terreno da igreja por uma bagatela. Foi um “sapeco” quando sua caçula resolveu pintar o cabelo de vermelho, pintou sem avisar. Mas, a igreja se acostumou, e o velho muito religioso também. Agora com 17 anos, a filha não devia mais nada à família, nem ao pai, nem à religião, havia sido aprovada no vestibular para o curso de Biologia. Seus problemas eram as espinhas, que agora estavam sumindo como mágica. Seu rosto voltara a exibir, aos poucos, a mesma luz, a mesma graça infantil, o ar de menina e mulher, com todos encantos arrebatadores da idade.

A outra não era feia, mas não seria tão notada se não estivesse, em contraste, com a ruiva. Uma magreza esguia e elegante, curvas discretas, mas sensuais, pele parda, cabelos encaracolados, curtos e encrespados, presos, bonitos. O sorriso de canto de boca e a voz meio rouca revelavam a maturidade dos 19 anos, respirava-se até um ar intelectual em torno de si, terminara o primeiro ano do curso de Administração, sonho de seu pai, pequeno comerciante têxtil: reservado, cético e conservador.

Não saberiam contar quando e como começaram aquele hábito tão velho quanto elas: de chegarem cedo, encostarem na parede frontal da igreja, ao lado da escada, conversarem sobre as amizades novas da net dos “torpedos” e fofocas de uma adolescência ainda presente. Riam de Neuza, ao passar com o mesmo molho de chaves balançando, perguntas sobre os netos da velha faxineira. Neuza nunca sabia qual das duas era mais nova, quem fazia Administração, afirmava e errava sempre, as duas eram como irmãs gêmeas. Diferentes, mas de uma diferença conjugada, suplementar.

Um dia normal é um dia de angústia controlada. A porta aberta, o cheiro de limpeza, o altar florido, música e calma, o melhor momento, os presentes de Neuza, que ia embora, deixando as duas porteiras. Agora, era esperar a sequência quase exata, o desfile da comunidade cristã com seus escrúpulos e suas roupas dominicais.

(Aos doze anos, dez da mais nova, tocaram-se pela primeira vez. Dia de irritação, mãe quer se ver livre de filho. Festa na igreja, coisas para preparar, convidado novo para dirigir o culto, mutirão de mulheres, as mães juntas preparando o ambiente, descuidando da filharada. Meninada se espalha no adro, nos fundos, entre os muros, nos arredores. Juntas, durante esconde-esconde, num cubículo esquisito dos fundos, debaixo do salão de festas, as duas ficaram com medo, abraçaram-se, tocaram-se, gozaram. O gozo primevo e infantil, medroso, é o melhor gozo de nossas vidas.)

Um dia normal é um dia de alegria controlada. Chegam os mais velhos, dois homens negros, ar de fundadores, paletós impecáveis, mas puídos. Cumprimentam, educadamente, as meninas. Algumas famílias novas do bairro, meninos barulhentos, ávidos por novidades, cheiro de alfazema. Agora um batalhão de caras conhecidas. Rita e Dolores, as mais pobres da comunidade. A renca da mercearia, uns doze de um mesmo grupo familiar. Janete a merendeira da escola, onde estudaram - solitária e triste. As meninas loiras, gêmeas, filhas da dona do mercado da cidade. Os meninos adolescentes, bonitos, uns quatro, procurando atrair olhares. Um para: “Vocês só vivem juntas, hein?!”. Sorriso amarelo da ruiva, muxoxo da outra, espantam o marmanjo. As duas mães chegam quase na rabeta, amizade velha, histórias comuns, colocam as duas filhas para dentro do templo, ensaiando tapinhas na bunda. Os corpos jovens das crias, que não invejam, orgulham-se porque já os tiveram, são espelhos apontados para o passado.

Começa a pregação. O culto fazia parte de uma série temática. Aquela era a segunda seção. O pregador, jovem e brilhante, discorria sobre Levítico, os prostitutos cultuais, os canaanitas, a Sodoma destruída. Pulava para o Deuteronômio com desenvoltura, chegava a Paulo em Coríntios, valorizando a instituição da família, o matrimônio natural. As meninas atentas pensavam mil coisas, sonhos improváveis, apertando seus corpos juvenis na cadeira, felizes de estarem juntas, lado a lado, enquanto o mundo inteiro desabava sobre elas.

sábado, 17 de setembro de 2011

A escalada do terrorismo antigay

Por: Marcos Aurélio S. Souza

Todo monstro agressivo, que agoniza ao ser ferido mortalmente, vai partir para cima com fúria e sede de morte também. Seu motor é o ódio e, sob a força desse sentimento, o monstro morde a esmo, cospe fogo, espirra veneno, vocifera loucamente.

Estamos assistindo no Brasil a uma escalada do terrorismo antigay, que nada mais é do que a agonia de um monstro atacado pela força do movimento LGBT (Lésbicas, Gays, Bissexuais, Transexuais e Transgêneros). Esse é o último movimento social da história, e é o que vem arrastando, com vigor, outros movimentos do século XXI, esmaecidos por uma sensação, nada confortável, de que a humanidade está melhorando.

A humanidade não está melhorando muito. O ódio antigay é a pedra que desceu sobre nós, da montanha de nossa esperança de um dia acordar num mundo sem preconceito. A homofobia se esgarça em sua maldade, ela consegue ser, ao mesmo tempo: discriminação racial (já que ser gay é ser considerado “raça inferior”) e discriminação de gênero (pois gays sofrem a mesma violência machista, dirigida cotidianamente às mulheres). Portanto, toda convocação de luta contra a homofobia, é uma convocação também contra a discriminação racial e de gênero, elas estão conjugadas numa mesma estrutura de pensamento: falocêntrica, etnocêntrica, heterocêntrica.

O monstro parece não querer morrer, apesar dos golpes contínuos. Na peleja, entretanto, ele se desnuda, mostra sua agressividade desastrosa, irracional, incoerente, ataca de uma lado, cede de outro, morde a si mesmo. Acabo de ler no jornal A tarde (um jornaleco do estado, com fama de grande jornal) que a caricatura homofóbica (o homem já não é mais gente, mas uma ilustração grotesca do preconceito sexual de nossa sociedade), chamada deputado Jair Bolsonaro, foi convidada para abrir um grande encontro, em Salvador, da área do direito penal. Porrada na cara da gente. Não se pode esperar mais nada do judiciário baiano, o mais lento e ineficiente do país, que só oferece desserviços à população mais oprimida e violentada. O título da palestra, pasmem, direto do século XIX - assumindo inclusive a terminologia patológica da época: “Proposta Política de Prevenção ao Homossexualismo”.

(O estudante de direito, quando recebe seu diploma numa universidade baiana, recebe também o atestado de que cursou disciplinas como Arrogância, Estupidez, Burrice e no final é elevado a categoria de Chauvinista do retrocesso ético e moral. Como já disse um amigo meu, “só existem bons cursos de direito, no lugar onde existe justiça”. Definitivamente, esse não é o caso da Bahia.)

Se o GGB (Grupo Gay da Bahia) baiano estivesse “comendo mosca”, como muito dos movimentos sociais de hoje, não teria rapidamente impetrado uma ação, usando espertamente os mecanismos jurídicos, contra os organizadores desse encontro. Marcelo Cerqueira, presidente desse grupo não fez apenas isso, como informa a reportagem do A tarde: ele “veiculou a informação de entidades ligadas aos homossexuais e direitos humanos na internet, comunicou o Ministério Público do Estado e reclamou junto a direção do Juspodium” (empresa organizadora do seminário). A organização, “cara de pau”, cancelou a vinda de Bolsonaro, informando que a discussão era técnica, mas que, mesmo assim (numa evidente contradição), resolvera cancelar a palestra de abertura, pois “se afasta dos objetivos do evento e não queremos transformar o evento em um ambiente partidário e de hostilidades”. Pergunto: e por que convidou? Pergunto: e se o GGB não intervisse, eles teriam essa “consciência”?

Foi sob essa mesma nomenclatura de técnica, ou de ciência, que grandes teóricos do racismo científico do século XIX pregavam o extermínio de negros e deficientes físicos no Brasil. A desculpa da organização não colou. O que eles não queriam, mesmo, é terem seus paletós de pretensas seriedade e justiça, enxovalhado por uma multidão de manifestantes gays furiosos, logo na abertura pomposa e festiva de um evento como esse. Diferente dos, não menos brutais, jovens neonazistas de São Paulo, tatuados com a suástica e frases no corpo como “white power”, advogados queriam fazer terrorismo homofóbico de gravata, o que poderia parecer “legal”, diante de uma sociedade incauta.

Como acredito um pouco no ser humano, não acho impossível que setores reacionários possam ceder às marteladas (protestos, ações processuais, manifestações em redes eletrônicas) dos movimentos sociais, e até assumir suas bandeiras. Lembro que Desmond Tutu, ícone da tradicional igreja anglicana, comparou a homofobia ao racismo: "Penalizar alguém por sua orientação sexual é o mesmo que penalizar alguém por algo que a pessoa nada pode fazer a respeito, como a cor da pele. Ao fazer isso, a Igreja persegue um grupo que já é perseguido". Gene Robinson, recentemente, foi o primeiro bispo a assumir e defender sua homossexualidade. Eu acredito que pastores e padres vão deixar de fazer pregações absurdas nos altares, nas rádios e na televisão, contra a sexualidade das pessoas, seu direito de amar livremente, e até vão se assumir homossexuais também – alguns deles, pelo menos. Assim também acredito que teremos um direito mais sensível à essa questão.

Por enquanto nós, negros, mulheres e homossexuais, temos que domar e destituir essa escalada agonizante do terrorismo homofóbico, nem que seja a golpes de martelo.

Dândi angustiado

Por: Marcos Aurélio S. Souza  
 
Há um tipo de pseudointelectual que vem se transformando em caricatura de si mesmo, seja nas rodas acadêmicas, nos textos de jornais ou nos debates públicos. Descreverei, com duas histórias, a postura, a empáfia meticulosa desse pseudointelectual, para tentar mostrar como esse tipo agoniza, perante a força de demandas coletivas, que vem fazendo girar a roda da história nos últimos anos.

Esse tipo de intelectual - chamarei de “dândi angustiado” (pela capa discursiva, aparentemente bela e eloquente, que utiliza para adornar suas posições incoerentes e vazias) - tem como característica atacar causas, principalmente, as causas coletivas e sociais e, dessa forma, utilizando de cacoetes e lugares-comuns, torna-se uma espécie de movimento social de si próprio. Um narciso feioso, num exercício de auto convencimento de uma beleza inexistente.

A história para ele começa a partir do seu próprio nascimento. Pensar a fome e a miséria do mundo, é pensar sua vontade de comer e sua conta bancária. Defende direitos inimagináveis, numa apropriação desastrosa de reivindicações sociais legítimas. Quando discursam, suas orelhas aumentam, seu nariz se torna colossal, as bochechas ficam extremamente vermelhas... Resultado: uma perfeita caricatura de si, sem tirar, nem por.

Uma vez, tive a oportunidade de ver uma dessas transformações. Rio de Janeiro, UERJ, 2008: uma mulher de meia idade, usando uma espécie de tailleur brega, com sorriso simpático, sotaque do sul com o ele (l) bem acentuado, apresentava sua comunicação no congresso mais degradado dos estudos literários, cujo nome ainda persiste lembrando, anacronicamente, uma febrezinha de estudos literários no Brasil da década de 90: o congresso da ABRALIC (Associação Brasileira de Literatura Comparada). Foi o último congresso desse tipo que participei.

Ela apresentava um estudo qualquer, desinteressante, sobre qualquer escritor canônico, cujo nome não me lembro mais. Em determinado momento, forçando um link no seu texto massante, ela resolveu discursar contra toda e qualquer política de inclusão, como se quisesse quebrar a monotonia da sua leitura, num evidente despreparo intelectual. A sentença, a partir da qual iniciava sua fala, era essa: “agora o governo quer incluir todo mundo e como ficamos nós?”. O nós, a quem ela se referia, era a plateia? Olhei para trás, eu estava sentando na última fila. Era a plateia mesmo e eu estava no meio. Senti medo.

Sua narrativa continuava com um relato pessoal, um caso esdrúxulo, cuja lembrança me causa arrepios. Dizia ela, em tom de revolta, que ao embarcar na aeronave, juntamente com seu marido, rumo ao Rio, ficou no final da fila, porque existiam, segundo ela, “cotas para tudo”, e continuava, estrebuchando: “cotas para velhos, cotas para deficientes e crianças, terminamos, eu e meu marido, no fim”. Fez cara triste e de revolta. Eu fiquei com vontade de dar uma gargalhada, mas me contive. A medida que a mulher ia narrando a história, o seu tailleur parecia maior, os botões ficaram gigantes, o batom esparramava de sua boca até o queixo e pescoço, seu eles (lll...), ecoando nos corredores da UERJ, ficavam mais sonoros, quase insuportáveis.

Pensei: essa moça deve fazer parte de um movimento de classe, de classe média e alta, que circulou há pouco tempo, intitulado “Cansei”. Morri de raiva de mim, porque não tive a paciência de ouvir toda sua comunicação, morri de raiva, até hoje, porque não pude replicar-lhe no final, no momento das intervenções. Tinha que me apressar atrás de algo que fizesse valer a pena minha estada no Rio. Era aquilo mesmo: ela defendia o direito de pessoas brancas, de alto padrão financeiro, que vão para congressos de literatura. Eu era um sonhador, acreditava num congresso diferente disso.

O discurso da senhora de tailleur parecia o de um outro dândi angustiado, que ouvi discursar tempos depois nos corredores da UFBA. Ele defendia o direito dos brancos, falava do preconceito contra os brancos. Quando terminou a cantilena, perguntei se ele acreditava em estatísticas, ele foi esperto e disse, impacientemente, que não. Falei que como eu também não acreditava em uma palavra sua e tinha o ouvido até ali, ele teria que me ouvir também. Falei dos índices de miserabilidade que atinge a população negra, com base no IPEA, do genocídio de jovens negros, da concentração de riqueza nas mãos de famílias brancas em Salvador, da dificuldade de encontrar um médico negro, das necessidades de políticas de reparação, da existência de políticas como essa em todas as partes do mundo etc.

Ele disse que “eu” estava diminuindo as pessoas negras, como se elas não tivessem capacidade de mudar suas próprias condições, tratando-as como deficientes. Interpelei, disse que quem diminuía as pessoas negras eram, por exemplo, a representação negativa dos negros nos livros didáticos, as brincadeiras racistas, que não tinham graça nenhuma, o neonazismo e o mercado que escolhe uma pessoa em detrimento da outra, porque tem a pele clara, e isso era escandaloso. Continuei: “a deficiência era uma invenção maldosa e antiga que só poderia acabar com políticas afirmativas e de reparação”. O papo só acabou quando uma moça negra passou por nós levando cafezinho para o professor na sala de aula.

Ficou cada vez mais comum se deparar com a posição de professores, escritores, sociólogos, políticos etc que, não suportando mais a ascensão de pretos e pobres pelas vias das políticas de reparação ou não aceitando políticas que criminalizam preconceitos históricos e estruturais, como o da homofobia, vociferam agonizantes seus argumentos descabidos, exibindo o tamanho grotesco e aberratório dos seus preconceitos. Não dá pra conter uma grande roda quando ela está embalada pelo desejo, pela força acumulada daqueles que, ao não quererem mais exercer forçadamente papéis subalternos, movimentam para frente, e com vigor, o motor de sua própria história.

“Liberdade de expressão”. A nova faceta da homofobia

Por: Marcos Aurélio S. Souza 

“Liberdade de expressão”.  A nova faceta da homofobia*

A liberdade de expressão é a mais nova justificativa para humilhar e ofender a dignidade de pessoas no Brasil. 

Foi-se a época que liberdade de expressão era um termo que atendia às novas demandas da democracia, significava autonomia de sujeitos reprimidos, exigência de respeito às minorias.  A liberdade, assim, dirigia-se a governos ditadores, às políticas retrógradas, militarista, caudilhista, fundamentalista. 

Naquela época, refiro-me principalmente à ditadura brasileira da década de 60, quanto mais políticas ditatoriais atentavam contra a subjetividade e os desejos legítimos de pessoas, politicamente desfavorecidas, mais a liberdade de expressão era necessária, e era justa também.

Hitler adoraria viver no país dos defensores de uma nova “liberdade de expressão”, que humilha os homossexuais, taxando-os de pecaminosos ou endemoniados, para ele seria a lenha ideal para exterminá-los sumariamente. Exultaria nas pregações de igrejas, ouvindo pastores destilando seu ódio àqueles que desejam semelhantes – isso não é um trocadilho. Desejar, amar, fazer sexo, casar, é preciso reprimir isso e isso se faz com uma nova  “liberdade de expressão”, para alguns católicos e protestantes. 

Antros de pensamentos libidinosos reprimidos, encarcerados em algum lugar na idade média, pela moral e pelo puritanismo, espaços alheios aos sentimentos humanos, às necessidades humanas, às diferenças culturais e individuais, as igrejas católica e protestante são os setores mais atrasados, alienados e violentos no Brasil. São eles que reivindicam, agora, a liberdade de expressão para continuar discriminando, ofendendo, diferentes pessoas de nossa sociedade. Tudo isso, sob a justificativa de um sentimento cristão, bondoso, correto e verdadeiro – nada mais hipócrita.

Justificam essa “liberdade de expressão” como a necessidade de expressar uma crítica,  não a um sujeito, mas à sua “prática ou conduta” homossexual, é preciso, segundo a “crítica” deles,  retirar e enxotar “isso” do mundo.  Como se fosse possível retirar a alma de alguém, o seu sangue, suas vísceras, e mandar ele andar, como faziam os alemães na segunda guerra, que retiravam partes do cérebro de pessoas, as quais inevitavelmente cambaleavam e morriam. O céu heteronormativo dos religiosos é um céu de zumbis, mortos-vivos despencando no chão, sem desejo, sem sangue, sem vida.

O kit anti homofobia para distribuição nas escolas e o Projeto de Lei da Câmara 122/06, que criminaliza a homofobia, estão chegando tarde, muito tarde mesmo. Não implementá-los, na forma combativa como foram idealizados, ao capricho de um recuo político covarde, como estamos assistindo, atualmente, seria uma “cassetada” violenta  não apenas nos movimentos LGBT, mas também nos movimentos negro e feminista. 

Sim, essa “tal liberdade de expressão” dos religiosos pode se estender aos negros. Alguns ditos cristãos podem voltar a chamá-los com mais frequência e “liberdade” de filhos de Cã (o herdeiro amaldiçoado de Noé, expulso do paraíso) como faziam os jesuítas no século XVI. Podem voltar a considerar mulheres como bruxas e queimá-las nas suas fogueiras ideológicas machistas e misóginas, como faziam os inquisidores católicos na mesma época. 

Será uma derrota das cotas, da Lei Maria da Penha, das delegacias de mulheres, uma derrota de todos os movimentos sociais de importância no Brasil. Por outro lado, será a vitória dos jovens neonazistas que matam travestis nas ruas, dos religiosos reprimidos e enrustidos, dos pseudointelectuais maldosos, que rejeitam a história das lutas sociais.

O céu (um lugar legal para se viver) do nosso mundo, se for possível construí-lo, não é certamente o céu de um religioso reprimido. É preciso reconhecer e respeitar conquistas políticas e sociais, histórias reprimidas, sexualidades, conhecer e reconhecer todas formas de viver, todas as culturas (e isso não é “liberdade”, ou seja, “maldade” de expressão). Afinal, como  diz um grande amigo: “no amor todos os pontos de vistas são válidos”.


As academias de letras

 Por: Marcos Aurélio S. Souza

Salão dos bocejos. Quem lá boceja mais, ganha uma elegia ou um epíteto de presente. Academia de letras, lugar dos poetas, dos autores de literatura, onde essa espécie em extinção, chamada escritor, viceja com toda pompa social, que reivindica para si e julga merecer. Toda vez que se funda uma academia de letras no interior do Brasil se cria também um ambiente, uma ágora privativa, um panteão, no qual repousa toda uma fauna melindrosa de seu pretenso dever cívico ou artístico. Do velho político reacionário, o ex-prefeito com paletó desengonçado, que sequer escreveu um memorando, ao vereador de dez mandatos; do médico carniceiro ao jovem poeta, professor e donzelo, que faz versos para conquistar as meninas, na única pracinha da cidade. A academia de letras de qualquer cidade, a menor que seja, é a mesma academia brasileira de letras, aquela carioca, com todas as suas perversões, seus discursos e causas eternamente vazios.

Não consigo imaginar alguém com menos de 50 anos vivendo, ou aspirando a viver, sob o aroma da naftalina pseudointelectual de uma academia de letras, seja em Biguaçu, seja em Paris. A academia no Brasil já nasceu velha, sob as barbas completamente brancas de Machado de Assis, seu primeiro presidente, em 1897. Foi assim: Machado queria uma espécie de retiro, no qual pudesse, sob seu bigode cínico, ri de suas próprias flatulências descontroladas, criou a ABL. Entre olhares e olfatos graves de uma trupe intelectual de seguidores, ninguém desconfiaria do autor de Dom Casmurro, quando se descontrolasse, ele riria sozinho. Acusariam qualquer acadêmico recém empossado, cujo livro ainda estivesse no prelo. O acadêmico novo, diante do olhar dos velhos, acabaria por desconfiar de si. De qualquer maneira, esse é o melhor lugar para flatulências, porque nas academias qualquer coisa, demasiadamente humana e animal, pode ser considerada sublime.

A academia de letras é lugar de velhacos, gente “encostada” da vida, que, por esquecimento da sua própria morte, considera-se imortal. É lugar de natimortos que, por se esquecerem de nascer, estreiam-se defuntos. Nietzsche, em seu ceticismo, dizia que o último cristão morreu na cruz. No caso da academia, não há um único vivo capaz de eternizar sua causa, se é que existe alguma, todos atravessam seus umbrais já em absoluto estado de decomposição. 

Alguns, porém, morrem efetivamente depois de assumir uma cadeira no reino dos céus, outros fazem troça da imortalidade e vestem uma camisola de dormir, outros carregam para o túmulo o trauma de nunca ter tomado chá. Guimarães Rosa morreu três dias depois de sua posse como acadêmico, Jorge Amado, que escreveu sobre os serões estéreis da academia, em Farda, fardão camisola de dormir, só se fez presente nos rituais acadêmicos para ouvir os mesmos serões para si - nada mais irônico. Lima Barreto tornou-se conhecido por ter sido o mais rejeitado, quis entrar, mas não entrou, teve sorte maior no infortúnio, livrou-se de morrer duas vezes.

Intelectuais diferentes que fazem parte de academia de letras, escrevendo no pasquim de sua cidade ou na Folha de São Paulo, publicando alguns versos ou uma narrativa de 600 páginas, são, em síntese, os mesmos intelectuais. Geralmente os defensores da liberdade de expressão, principalmente, quando ela serve para justificar uma enxurrada de besteiras que costumam falar ou escrever. Muitos deles são, por pura ignorância ou maldade, contra qualquer causa de grupos sociais que não sejam o deles, defendendo assim o preconceito e a ofensa contra grupos de pessoas historicamente desprivilegiadas. Riem dos avanços de políticas emancipatórias, ironizam, por exemplo, conquistas da luta contra a homofobia, porque, sob a fantasia de humanistas, sempre foram racistas e homofóbicos. A Bahia é um celeiro dos defensores da liberdade de expressão, uma liberdade de expressão que hoje só serve para eles mesmos, e para seus próprios preconceitos. 
 
Há uma academia em Salvador, dizem que há uma em Ilhéus e uma outra em Valença, outra em Camocim no Ceará e outra em Araçatuba, São Paulo, etc. E não é que existe também uma em Biguaçu, cidadela de Santa Catarina. Imagino os serões intermináveis nesses lugares, nesses cemitérios, rincões de pseudointelectuais, lugar de uma velhacaria frustrada, desencantada consigo mesma, cuja grande aspiração é poder, quem sabe, depois da morte certa, ser lembrada por alguém. Tristes acadêmicos.

Balduíno e a greve: reflexões sobre o movimento estudantil

Por: Marcos Aurélio S. Souza 


Para Gal, estudante de Letras


Um dos momentos mais emblemáticos e líricos da obra de Jorge Amado está nas últimas páginas de Jubiabá, romance publicado em 1935, quando o escritor baiano ainda contava 23 anos de idade. O personagem central, o jovem negro Balduíno, ingressa numa greve de estivadores que, juntamente com outros movimentos operários, paralisa a cidade de Salvador. Nenhuma outra cena literária pode representar melhor a força do movimento estudantil, no atual cenário de greve das universidades estaduais baianas.

Uma das frases mais pungentes do romance, que mostra o significado de um movimento grevista, extrapolando seu mero sentido político social, é a que, para Balduíno: “Se não fosse a greve, o mar engoliria o seu corpo numa noite em que a lua não brilhasse”. Na adolescência, antes de perceber a importância de uma greve, Balduíno fez muita coisa na vida: foi menor abandonado nas ruas soteropolitanas, artista de circo em Feira de Santana, pugilista e trabalhador rural nas roças de fumo do recôncavo baiano. Sua história poderia ser a de qualquer pessoa, muito pobre e negra, de nossos tempos, enfrentando as possibilidades de subemprego ou de “escravidão proletária”, para utilizar um termo do romance de Jorge Amado. 
 
O que aproxima Balduíno da juventude grevista das universidades estaduais, a mesma que gritava, na Sete de Setembro e na região do Iguatemi, alguns dias atrás, “o professor é meu amigo, mexeu com ele mexeu comigo”, ou que estava, juntamente com professores, acampada na ALBA (Assembleia Legislativa da Bahia), não é apenas a mera assunção de uma luta social, movida por questões trabalhistas, digamos assim. É a capacidade de agregar lutas, lutar por qualquer coisa válida a qualquer hora, e saber fazer isso com disposição e criatividade. Balduíno, consciente ou inconscientemente, sabia que, no final das contas, estava em jogo não apenas a opressão dos patrões sobre seus empregados, numa fácil equação marxista, mas uma estrutura opressora maior e microestrutural, que envolvia também o racismo do qual era vítima – bem explicado pelo velho Jubiabá – e a precária condição feminina, representada pela morte de sua Lindinalva, roída pela bexiga, num prostíbulo da capital. 

Sorridentes (diferentes de alguns grevistas sisudos do século XX) com o colorido encantador de suas roupas, num desbunde formidável e provocativo, a juventude que estava nas ruas de Salvador, é a mesma juventude expressa pelo personagem de Antônio Balduíno. Ela sabe que lutas se travam também no campo simbólico, por isso utiliza máscaras, abusa dos desenhos, canta versos, reinventa letras de músicas conhecidas. É capaz ainda, nessa economia do prazer e da performance, de celebrar “religiosamente” um prédio de laboratórios, abandonado há oito anos pelo estado, perceber e ironizar o que está por trás de uma declaração, no corpo fantasiado de paletó e seriedade do reitor. Não tolera meias palavras, mordaças ideológicas, olhos que não fitam o rosto do interlocutor, escondendo verdades. Sai nas ruas de Jequié, Salvador, Feira, Juazeiro, etc celebra a vida, porque afinal, mesmo em condições desfavoráveis, vale a pena vivê-la plenamente. Promove “beijaço”, diante da Assembleia Legislativa da Bahia, em resposta à reprimenda infeliz de um segurança a duas jovens manifestantes, só porque trocavam ósculos carinhosos.

Todos os movimentos sociais precisam de(essa) juventude. De um estado de espírito, não apenas da pouca idade, mas de uma vontade de se colocar, de se impor pela inteligência e, sobretudo, pela coragem. Muita gente deve ter estranhado a juventude dos professores das universidades estaduais, ao ver muitas fotos das nossas manifestações, estampadas nos jornais: uma garota de óculos, um rapaz alto com um black, outro de óculos escuros fashion, uma menina de tiara com uma faixa exigindo infraestrutura para o curso de odontologia. Não, não eram professores, pelo menos em sua grande parte, era a juventude estudantil, carregando as bandeiras do movimento, no front de nossa greve. 
 
Por isso, o mínimo da decência exige que os professores carreguem também bandeiras do movimento estudantil, como está acontecendo, as quais aliás não são apenas dele: temos que ser capazes sempre, assim como os estudantes, de perceber que está tudo relacionado. Os golpes contra a educação no estado da Bahia acertam todo o corpo social e político da grande população desse estado, não apenas os braços ou a cabeça, não apenas as pernas ou os olhos.

A lei 12.583 é contra todos, a cláusula que congela nossos salários é contra os estudantes, e a falta de uma política séria para assistência e permanência estudantil é contra o professor também. Não abandonaremos a greve apenas pelo aumento de salário (embora isso seja importante), enquanto tivermos essa percepção jovem, atualizada, de que qualquer reivindicação social séria, nos dias de hoje, carrega a reboque movimentos reprimidos, num efeito dominó, operando a favor de demandas historicamente relegadas, e não atendidas pelo estado da Bahia.

A greve está tendo uma importante força dessa “juventude balduína”, por isso que ela é tão forte. A cidade de Salvador já foi palco de uma força semelhante, e simplesmente parou (como na greve protagonizada por Balduíno), quando estudantes do ensino médio ocuparam as principais ruas dessa cidade, por vários dias, em 2003, forçando a redução do preço das passagens de ônibus, a conhecida “revolta do buzu”. Essa força jovem se fez ativa, de forma bastante diferente, na produção de um movimento paralelo, via internet, um apoio potencializado e fundamental da greve universitária, nos twitter, orkut, facebook, youtube, blogs etc., construído, principalmente, pelos estudantes. Esse apoio desnorteia qualquer política mal intencionada, pois se alastra incontrolavelmente, adquirindo novos simpatizantes além das fronteiras regionais e nacionais. 
 
Há uma importância dupla do nosso movimento, graças aos estudantes das universidades estaduais. Ele é alimentado e fortalecido por essa juventude, ao mesmo tempo em que potencializa a juventude que está em nós, recupera um sentido de corpo e de coletividade, construindo uma greve que é mais do que uma pauta de reivindicações. Um sentido, movido pela paixão por justiça, pela necessidade utópica de salvar o mundo, e, ao mesmo tempo, ser salvo por ele. Foi esse o sentido descoberto por Balduíno no final do romance de Jorge Amado. “Com a greve ele enxergara outra estrada e voltara a lutar” ... “A greve o salvou.”.

Desfiles e misérias no final de abril

 Por: Marcos Aurélio S. Souza

Do Palácio de Buckinghan à Abadia de Westminster, só riqueza e suntuosidade, do Campo Grande à Praça Castro Alves, só pobreza e miséria. Desfiles em mundos praticamente opostos repetem a nossa imensa realidade humana, paradoxal e triste, através de um figurino bem representativo. Lá os chapéus, cabelos loiros ao vento, tiaras coloridas e os fabulosos bearskins da guarda real inglesa. Aqui os cabelos crespos, guardas chuvas quebrados, que mal evitam a chuva insistente, mãos e bolsas nas cabeças para não estragar a “escova” e o “permanente”, boinas surradas e imundas da polícia militar, fingindo paciência com o trânsito caótico da Sete de Setembro e com as bolas vermelhas de palhaços, escondendo os narizes dos manifestantes. 
 
Pela televisão e pelas ruas largas de Londres, 2 bilhões de pessoas acompanham ao casamento real britânico, como diz uma serelepe repórter da Globo, no comércio soteropolitano algumas dezenas de comerciários cansados e transeuntes se empurram em calçadas estreitas, desviando o olhar da passeata que mendiga atenção, repetindo, com indisfarçável cansaço, o jargão enfadonho do proletariado da educação. No alto, nas coberturas e nos imensos apartamentos do Campo Grande e Corredor da Vitória, a elite baiana não se importa com os bonecos gigantes e as placas em vermelho de Greve das universidades estaduais, e acompanha, em televisão de plasma, as notícias sobre a grande encenação real, o carnaval inglês, imaginando perfumes, os pradas, guccis, armanis, desfilando na passarela do mundo europeu (vontade de estar lá). O governador baiano, identificado com o primeiro mundo, na sua cobertura, versão baiana de palácio real, no alto de Ondina, desliga celular e telefone, para acompanhar “seus semelhantes” europeus - não saber de greve, vontade de ser príncipe, sentimento difuso de rei tropical, entre o pensamento de lord político á la Joaquim Nabuco e a filosofia de Maquiavel. 
 
Lá em baixo, o mundo é diferente. O vermelho, um vermelho quase vinho, cardial, que em Buckinghan adorna os corpos do soldado e do príncipe William, acúmulo de sangue coagulado das chacinas bretãs, pinta a Avenida Sete na manifestação dos professores. Nessa chuva que cai hoje e derrete os morros, jogando barro em cima das pessoas das Cajazeiras e dos morros na capital baiana, o vermelho mais importante para o governador é o vermelho da cruz, que adorna a bandeira do Reino Unido. 
 
O governador prefere viver nos sonhos do palácio de Ondina, na pompa inglesa, que parece antiga e tradicional, mas, como bem lembra os historiadores Hobsbawn e Ranger, foi forjada recentemente como símbolo de poder, inquestionável e cruel. Ele prefere viver na sua própria invenção de estado, cortando salários, impedindo as Universidades crescerem e os professores se aperfeiçoarem, dedicando seu tempo integral por um salário de miséria. Prefere viver no castelo de Caras da elite baiana, ideologicamente branca de olhos azuis, como a elite britânica. 

Chove e inunda em todos nós uma sensação de que o mundo parou no século XVI. A elite política baiana imita a Europa, políticos brasileiros imitam nobres ingleses, como as mulheres brasileiras imitavam os chapéus das colonizadoras portuguesas no século XVI, os quais, distantes de qualquer moda ou senso estético, escondiam coros cabeludos empesteados de piolhos. “Wagner Nabuco Maquiavel”, nosso governador, quer ter seu desfile final, seu momento de príncipe em sua Copa de mentiras, quer mudar para Europa como Joaquim Nabuco sem sair do Brasil, a custa do sucateamento da educação. Sua única campanha é oferecer ao mundo, uma farsa, um show, uma ilusão de felicidade durante um mês de futebol, e deixar o Estado da Bahia tão pobre e miserável quanto estava antes. 

Nossa campanha, a de professores e de outros funcionários públicos, por outro lado, deverá ser também contra esse circo, esse casamento real da Bahia como empresariado nacional e internacional, numa Copa, que desviará bons quinhões do erário e dos interesses do estado da Bahia. Se não for assim, aquilo que poderia ser investido em saúde e educação, na melhoria e ampliação das universidades estaduais, por exemplo, escoará obscuramente numa Copa fantasiosa “para inglês ver”.

Perereca pra frente




Por: Marcos Aurélio S. Souza 

Há muito estou querendo escrever um texto para (e sobre) as mulheres. E hoje, ouvindo a letra de um famoso pagode muito tocado aqui em Salvador, aproveitei um trecho como mote, criei o título e comecei a escrever. Ainda que muitos desses pagodeiros sejam machistas e só enxerguem a mulher como bunda, vagina, pernas e peitos, há sempre algo que se possa aproveitar. É mesmo possível inverter tudo o que se possa ridicularizar uma mulher nessa cidade, porque simplesmente elas estão "dominando o pedaço". 

 A despeito de uma pesquisa que foi divulgada, indicando Salvador como a cidade com o maior número de “mulheres sozinhas” do Brasil (tal pesquisa apesar de apontar o número de homens, enfatizava o número das mulheres, como no destaque da Revista Veja: http://veja.abril.com.br/270405/p_126.html) há algo imponentemente feminino nessa cidade, que certamente machos desocupados não se interessariam em pesquisar. É impossível não notar uma presença muito significativa das mulheres onde quer que você vá em Salvador, até em profissões tradicionalmente masculinas, como taxistas, motoristas de ônibus, cobradoras, policiais etc. As “mães solteiras” por opção e não apenas por falta de, e as chefas de casas estão em maior número também. Isso não resulta apenas da chamada revolução feminina, de uma demanda do mercado ou duma vantagem numérica (como a revista insinua) isso é, sobretudo, uma mudança paradigmática, que nós homens (e também algumas mulheres) precisamos tentar entender e assimilar rapidamente pra não ficar fazendo e falando besteira. Eu acho que a idéia mais importante na conclusão da pesquisa dirigida pela FGV (Fundação Getúlio Vargas) não deveria ser "quanto mais a mulher amadurece, menos chances tem de encontrar um parceiro", mas: quanto mais a mulher amadurece, mais criteriosa e esperta ela fica em relação a escolha de um parceiro. E isso não é apenas uma exigência dela, porque estão adquirindo elevado status econômico e educacional e querem isso dos seus parceiros, mas uma estratégia de cautela e um cuidado inteligente de si. 

A vida de qualquer homem depende muito e cada vez mais das mulheres aqui em Salvador, e eu aposto ser uma realidade também em outros cantos do mundo. Temos cada vez mais mulheres decidindo a nossa vida, o nosso emprego, a nossa satisfação emocional e material. A solidão das mulheres, no caso das heterossexuais (eu ainda quero saber por que não deram igual importância ao número de homens solitários, e porque ainda não fizeram uma pesquisa com homossexuais) pode significar muitas coisas e talvez seja mais preocupante para os homens heterossexuais, sozinhos ou não, do que para elas mesmas. Há uma possibilidade enorme de que a maioria dos homens simplesmente não desperte o menor interesse como companheiro fixo, ou como companheiro provisório, para a maioria das mulheres (e isso sim é preocupante para nós) porque elas têm uma consciência maior do que a nossa, a respeito daquele clichê: “antes só do que mal acompanhada”. Elas certamente já presenciaram vidas infelizes de mulheres “acompanhadas” em suas próprias famílias, experiências de amigas, colegas, irmãs, tias que sofreram muito com seus parceiros/esposos/namorados violentos, machistas, burros e irresponsáveis. Há também uma necessidade premente de se fazer um recorte racial nessa pesquisa, o que certamente resultaria numa quantidade bem superior de mulheres negras, optando por essa “solidão” do que de mulheres brancas. E isso ainda é reflexo de uma sociedade, onde duas pragas juntas, o racismo e o machismo, contra a mulher são muito mais devastadoras, sendo uma opção segura a de viver só, do que com um companheiro abjeto e repugnante. 

É também necessário pensar na possibilidade de que mulheres, nessas circunstâncias, vivam bem a sua sexualidade “solitariamente”, ou até vivam bem sem uma vida sexual (como alguns poucos homens também vivem) e isso não seja exatamente um problema ou tenha algo a ver com a falta de “pretendentes”, ou mesmo com a idéia de uma “solidão” (em nossa cultura machista, sempre relacionada à impotência e a carência femininas). As mulheres estatisticamente também podem estar preferindo uma vida amorosa (no sentido de sexo, inclusive) mais casual, sem compromisso, e isso é provavelmente uma boa forma de vivê-la nesse mundo. 

Elas, nesse sentido, certamente estão aprendendo mais com a história do que nós homens. E quando eu ouvia o pagode cuja letra procurava expressar um corpo feminino no gesto sensual de “perereca pra frente, perereca pra trás” (uma daquelas metáforas para o órgão sexual feminino), eu fiquei imaginando um corpo e uma mente femininas que também expressavam: “tudo bem, mas 'sai fora', porque eu não sou pra qualquer um”. 

O mundo fantástico da Rede Globo e "o caso da Raposa/Serra do sol”


Por: Marcos Aurélio S. Souza 

 Dizem que quanto maior a vidraça, maior o estrago da pedrada. Eu não acho isso, não. Quem tem vidraça grande, escolheu a melhor vidraça, brilhante e reforçada como um colete a prova de bala. Pedrada que vier, tem que ter calibre grosso e mesmo assim corre o risco de apenas arranhar sua estrutura.

Hoje de manhã, zapeando na TV, parei pra assistir ao Bom Dia Brasil no momento em que os apresentadores discutiam a situação da reserva
indígena Raposa/Serra do Sol. Todos sabem que essa imensa reserva com 1,7 milhões de hectares (daria mais de 10 cidades como São Paulo) lá na pontinha de Roraima foi reconhecida juridicamente como reserva e sua demarcação contínua foi autorizada pelos ministros do STF, por 10 votos a 1.

O grave apresentador Alexandre Garcia, que encarna muito bem o pensamento da Rede Globo, soltou uma dessas pérolas que revela como a elite brasileira ainda pensa como colonizador português do século XVI, e também como parece que ela parou no tempo das teses raciais da mestiçagem redentora (final do XIX e início do XX) de Silvio Romero, Oliveira Viana, Gilberto Freire, Arthur Ramos etc. Estupefato com o reconhecimento dessa área indígena, Garcia recomendou cautela porque, segundo ele “nossa cultura e tradição era a da mestiçagem”, e questionava se seria “um bom norte separar não-brancos (se referia à política de cotas) na universidade” e “agora não-índios no extremo Norte do país”.


O tom democrático e humanista de Alexandre Garcia buscava, entretanto, inverter o movimento não só brasileiro, mas mundial, pelo reconhecimento dos direitos das chamadas “minorias”, conquistado a base de lutas incansáveis e de debates políticos há décadas, quiçá séculos, seu tom parecia tentar recuperar a ficção maliciosa de que todos nós nascemos iguais, de que todos nós sempre tivemos os mesmos direitos, somos tratados da mesma forma e teremos as mesmas oportunidades de vida aqui no Brasil, graças ao milagre da mestiçagem. Ele nem sequer se atualizou com a revirada sociológica trazida por Florestan Fernandes, que já na década de 50 demonstrava a condição precária e humilhante em que a população negra brasileira se encontrava, sem trabalho, sem dignidade e sofrendo de um racismo cotidiano e institucional. 

Até a UNESCO, que nessa época, crente nessa ficção, resolveu investir em uma pesquisa sobre isso, a fim de construir um modelo de sociedade para o mundo, “quebrou” a cara quando descobriu que o Brasil era, sim, um país racista, e os abismos entre as condições econômicas e sociais de negros e brancos eram imensos. Garcia, Rede Globo, elite brasileira perderam as melhores aulas de sociologia brasileira pelo menos dos meados da década de 50 pra cá.

Esse não é um discurso essencialista, não estou defendendo que os índios vivam separados do mundo em uma reserva fechada (e também não concordo que os produtores daquela região sejam expulsos sem tentar uma resolução do conflito com os índios e se isso não for possível que sejam idenizados), ou que os negros não possam se misturar com os brancos e vice-versa, mesmo porque a mestiçagem não é um especificidade brasileira, nem aqui ela se tornou mais importante do que em outros lugares, ela sempre aconteceu e sempre acontecerá. Estou tentando mostrar que o discurso da mestiçagem redentora funciona muitas vezes como uma sombra que obscurece o que de fato ocorre (e nesse sentido ela expressa o mesmo desejo de "branqueamento" do século XIX): as pessoas são tratadas de forma diferente, sim, quando são (mais) negras, ou (mais) indígenas, e isso revela um problema social e histórico que só se resolverá quando a discriminação se inverter positivamente, através de políticas de afirmação e de reparação, para que essas pessoas possam partir de circunstâncias "mais iguais" na busca por um trabalho, por uma vida digna e que possam também ter respeitadas suas formas de cultura e de cosmovisão. As políticas de reparação não são formas assistencialistas de incluir, são maneira de tentar colocar "em equilíbrio" uma balança que sempre pendeu para um lado, quando a balança chegar a um equilíbrio seguro, elas já cumpririam seu papel e podem ser suspensas.

A mestiçagem é a ficção predileta dessa turma de cara lambida, é a vidraça que eles bem urdiram contra nós: negros, negras, índios e índias. Enquanto isso, índios são queimados vivos por jovens “filhos-de papai” em Brasília, empregadas negras são espancadas por mauricinhos ociosos, sob a alegação de as confundirem com prostitutas (outro absurdo), negros dos 18 a 29 anos constituem a faixa populacional maior vítima de homicídio e de violência policial e tem, estatisticamente, maior dificuldade de serem admitidos num emprego do que os brancos, além de ganharem menos da metade do salário dos segundos (ver pesquisa recente do IPEA: http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u456002.shtml). Enquanto isso, ainda, o racismo sob a farsa dos contatos cordiais grassa nas famílias brasileiras, nas relações íntimas, nas desconfianças contra aqueles que carregam em sua pele e em sua face a cor/estigma da marginalidade.

Alguém esqueceu de lembrar ao Sr. Garcia e à turma da Globo que a separação sempre existiu, ela é histórica e não temos a esperança (a não ser pela insistência de políticas de reparação) de que ela se resolva de um dia pra outro, quando algum branquinho engravatado resolver contar outra história bonita falando de harmonia das raças, do modelo mestiço brasileiro e essa patacoada toda que estamos cansados de ouvir e ler. Aqui e em qualquer parte do mundo (só a Globo e a elite brasileira não acordaram pra isso) só pudemos acreditar em coisas palpáveis: mais negros e negras na universidade e na TV fazendo papéis dignos, mais índios na política e com seus direitos reconhecidos e seus territórios devidamente demarcados. 

A Rede Globo já sofreu processos judiciais no passado do movimento negro e precisa receber mais processos pela faxina étnica, que vem promovendo em suas novelas, telejornais, programas de entretenimento etc. E não podemos deixar que alienados como Alexandre Garcia, certamente comandados por figuras hediondas, como o diretor executivo da Rede Globo Ali Kamel (aquele que publicou um clássico do conto de fadas “Não somos racistas”), continuem falando besteiras, sem a mínima sensibilidade e o mínimo, mas bem mínimo, conhecimento histórico e sociológico.

Eu aqui do meu lado continuarei a jogar pedra nessa vidraça! Essa é apenas uma primeira.


(publicado, inicialmente, no blog da raposa felpuda (bp.santana.zip.net), dia 20/03/2009.