segunda-feira, 21 de novembro de 2011

20 de novembro, Dia Nacional da Consciência Negra

                          (foto raptada do facebook. Agradecimento e homenagem a Elísia)

domingo, 20 de novembro de 2011

A clínica de branqueamento

Para Gal Cavalcante, Claudinha Pacheco e Naionara Maia.
Para Aldri Anunciação e Lázaro Ramos

Daquele lado ali. Duas quadras depois, passando por uma rua estreita, naquele terreno baldio, onde funcionava um antigo posto de combustível da Pré-sal Ltda. Um casarão verde, com janelas amarelas, cheio de mato e com enormes palmeiras na frente. Você toca a sirene, vai soar um som de música antiga de Ary Barroso, uma moça vai atender, você diz logo que quer marcar consulta.

É simples assim? Será se eu posso marcar a consulta para o mesmo dia? Soube que eles pedem logo um cheque caução de 3 mil.

Pode, no ato. É só pressão psicológica. Eles querem saber se você tem condição mínima mental, mais do que financeira, para fazer o procedimento. Toma aqui, leva um cheque meu, é garantia, estou te dizendo! Mostre o checão, a moça da recepção vai logo abrir o sorriso. Outra coisa: um tipo como o seu, não vai ter dificuldade, é cliente mais fácil e comum. Talvez você sirva de modelo, se você não quiser passar pelo finalzinho da segunda fase do procedimento

Tem uma segunda fase?

Vou te explicar direitinho, tudo é muito sigiloso. A primeira fase eles chamam de “correção”, a segunda fase tem  três etapas: negação, esquecimento e apagamento. Nessa primeira fase, é o básico, vão mexer nos seus cabelos, na sua pele...

Ah, eu quero!

Bom, eles têm os melhores profissionais dessa área. Mas, continuando... Depois de mexer nos seus cabelos, vão tirar um molde de seu nariz, uma imagem aparecerá no telão, sua foto já vai estar lá, com mudanças possíveis numa escala chamada pitariana, concebida pelo dono da clínica. Essa escala com alguns caracteres nacionais começa com o modelo Pitanga, baseado naquela atriz, e vai até o tipo Ariano, sueco e norueguês. É bem respeitada, foi desenvolvida durante 50 anos, em Salvador. O dono da clínica dirigia um desses blocos famosos e caros, que desfila no circuito Barra/Ondina, usava essa escala para selecionar pessoas para seu bloco. Mas depois, moveram um processo contra ele, e ele abriu essa clínica clandestina.

Mas eu pensei que a dona era uma mulher. Me disseram até que ela desenvolveu técnicas em si mesma. E que foi a partir dessas técnicas que ...

Sim, na verdade é esse casal quem manda na clínica: ele e ela. Ela tinha um grande salão de beleza no Corredor da Vitória e abriu uma filial na Liberdade. Você pode achar estranho a ideia de uma filial num bairro como aquele, você sabe, com aquele tipo de gente... Mas ela começou a fazer sucesso lá dentro, colocou um super anúncio num balão suspenso no Campo Grande, durante um carnaval: “Cabelo crespo tem solução”. Choveu mulher e também homem. O método era avançadíssimo e não tinha essas nomenclaturas orientais de tratamentos arcaicos: tipo chinesa, tailandesa, marroquina. Ela implantava, com uma seringa, no meio da cabeça das clientes, um gene, isolado por biólogos americanos, a partir de uma população no norte da Noruega. O processo é simples: uma sequencia especifica de ácidos nucleicos do gene fica sobre o couro cabeludo e outra atravessa o crânio em direção aos neurônios. A primeira sequência deixa o cabelo liso e louro, a outra sequencia muda a mente. O problema na Liberdade, é que a segunda sequencia não conseguia atravessar os crânios das meninas e muitas reclamavam por seu cabelo de volta. Resultado, faliu. No Corredor da Vitória, por outro lado deu certo, mas eram poucas clientes. Ela resolveu investir nessa clínica clandestina, o marido topou. Junto com o marido, que fez Medicina e se especializou em dermatologia estética, uma ciência nova do mercado, formularam esse conjunto de técnicas revolucionárias, que ainda não são reconhecidas, oficialmente, embora todo mundo saiba que existam.

Ah, mas em minha pele eu não quero mexer, só no cabelo...

Por isso mesmo que eu te disse: Você é uma cliente comum, fácil de tratar. Está num nível médio daquela escala que te falei. Vão fazer desconto e você divide no cartão, ficam bem leve as parcelas... Você faz a primeira fase, que é cabelo e pele, depois você ver a necessidade de fazer a segunda fase.

Tá, essa primeira fase eu entendi, mais ou menos. Mas a segunda fase...

Eu te explico. É uma abordagem multidisciplinar e radical, desenvolvida por esse casal, inicialmente por ela, uma mulher muito inteligente. Como eu te disse, quando ela percebeu que aquela sequencia de ácido nucleico não conseguia atravessar o crânio das meninas da Liberdade, ela foi a Faculdade de Medicina com o marido, que aliás tinha estudado lá. Um velho professor, explicou que só a injeção genética não seria suficiente, era preciso um investimento numa equipe multidisciplinar. Ela não entendeu e perguntou, se era preciso outros médicos de outras especialidades. O velho médico sorriu e disse: “não multidisciplinar dentro da medicina. Multidisciplinar dentro das ciências humanas, digo filosofia, sociologia, psicologia, linguística...” Dois dias depois o velho médico morreu, mas com a ajuda de manuscritos desse médico, dizem que achados, outros dizem que roubados, o casal desenvolveu essas técnicas...

Quer dizer que lá dentro tem filósofos, psicólogos, sociólogos e linguistas? Ah sim..uma vizinha minha, que sabe dessa clínica, me disse que um pastor evangélico, amigo dela, trabalha lá também.

Esse foi colocado pra fora. Começou a querer ser melhor do que o filósofo e daí enxotaram ele de lá! Mas, ele se deu bem, está com outra clínica, abriu concorrência, o diferencial do serviço dele é que, utilizando técnicas semelhantes, está conseguindo, através de um processo chamado reversão, fazer com que pessoas desempenhem, naturalmente, sua sexualidade original, tenho até uma propaganda da clínica dele, funciona no fundo da igreja mesmo, por isso não é considerada clandestina. No folheto diz assim: “volte a ser homem, volte a ser mulher, Deus quis assim, você também quer”. O problema dele, segundo me contou a dona da clínica, é que parece com Rousseau, acredita num homem único, numa mulher única, para ser mais preciso: seu homem único e sua mulher única. O historiador e o sociólogo, além do filósofo, logo o rechaçaram, ele não só atrapalhava o trabalho de todo mundo, como queria se meter no que não era de sua conta, no que não sabia.

Ainda bem que não preciso desse serviço de reversão, eu nasci assim, eu cresci assim: sempre mulher que gosta de homem. Mas me fala mais sobre essa segunda fase do procedimento, dessa equipe multidisciplinar...

Bom, melhor do que contar o que acontece lá dentro, eu vou contar o que aconteceu comigo, quando entrei lá. Eu passei por esse processo, e me interessei por tudo. Eu fui até o último nível da segunda fase, que é o mais radical, eles chamam simplesmente de apagamento, mas antes disso passei por vários outros processos. Aconteceu há três anos. Fui lá, marquei a consulta para o mesmo dia, uma moça muito simpática me atendeu, li alguns termos, inclusive o do cheque caução. Ela me trouxe duas profissionais, uma olhou meu cabelo e a outra trouxe um estojo com pós diferentes de cores, como um estojo de maquiagem. Eles me explicaram a escala pitariana, exibiram as possibilidades, e eu escolhi essa que hoje eu sou.

Nossa! Quando te encontrei no mercado, falando sobre essa clínica para aquela moreninha, nem imaginava que você mesma tinha passado por isso. Você está outra coisa, realmente muito linda...

Estou não, querida, eu sou outra coisa. Uma das coisas que eles ensinaram na clínica depois de todo o procedimento foi evitar palavras provisórias como o verbo estar, ou que indiquem passado. Em vez do verbo estar, usar o verbo ser, sempre no presente, especialistas que trabalham lá conseguiram fazer com que evitasse palavras como essas, eu aprendi rápido. Eu sou branca e sou brasileira, passei por todo o processo e venci todas as etapas, sou outra. Estava fora da escala pitariana, agora sou quase ariana.

Estou vendo, olhe esses cabelos, quanta mudança! Certamente o tal ácido nucleico entrou na sua cabeça também.

Eles disseram que eu era muito obediente, o ácido facilmente atravessaria o coro cabeludo. Mas eu quis garantir, depois daquela experiência frustrada da Liberdade, sei lá... As meninas com cabelo mudado, liso, mas a cabeça continuava a mesma, era uma coisa estranha e desafiadora. Depois que passei pelo tratamento de pele, pois não precisei mudar muita coisa no rosto, já estava uma outra. Você precisa ver, é uma técnica eficaz, desenvolvida a partir de uma mudança na cadeia genética, que produz o vitiligo e o albinismo, fez toda a diferença.

Parece a pele daqueles atores brancos de Malhação, sem uma mancha...

Perfeita, não é? Fui para o segundo andar do casarão verde (é assim como chamam a clínica), o andar do TENA, setor de terapias de negação, esquecimento e apagamento. No fundo uma enorme pintura de um espanhol, chamado Modesto y Brocos, a original de “A rendenção de Cã”, adquirida pelo pastor que foi expulso. Muitas salas, distribuídas em um enorme corredor, parece até uma escola. Na primeira sala um psicólogo e um linguista me atenderam, eram bem joviais e simpáticos, usavam camisa de gola polo e tênis da Nike, pareciam gêmeos. Atuavam no nível mental e da linguagem, segundo eles. Perguntaram com quem eu andava, eles gostaram muito das minhas respostas. Disse que andava mais com pessoas que não pareciam comigo, e que eu queria parecer com elas, elas eram o que eu queria ser, depois de passar por aquele procedimento. O linguista acentuou que era preciso falar como elas, agir como elas, evitar qualquer outra história de vida, modelo de beleza, que não sejam os delas. Usar os mesmos cosméticos, gostar do mesmo tipo de rapazes, frequentar os mesmos espaços, professar a mesma religião etc. Disse assim: “Esta etapa se chama negação: evite, por favor, esse português canhoto que você aprende em casa com seus pais, evite qualquer referencia de origem dos seus pais, seus avós... qualquer história que te contarem de sofrimento ou de vitória, que tenha como referencia um mundo fora do hemisfério norte. No setor de história e filosofia você vai aprender mais sobre isso, mas, de antemão, evite qualquer referencia linguística, ou seja, ditos, provérbios, expressões, sintaxes, que não sejam do mundo lá de cima”. Ofereceu-me uma lista de palavras que chamou de “variantes de prestígio” e pediu que estudasse todos os dias.

Vixe... vão mexer no meu português também... é uma limpeza geral!

Bota geral nisso. O psicólogo diferente do linguista começou com aquele jeito de perguntas. Colocou-me diante de um espelho, perguntou como eu me via, quem era eu, como era a minha relação com a família. Pedia que me identificasse com coisas positivas. Respondi que não queria ser mais aquilo que alguns poucos teimosamente me chamavam, custava ver no espelho isso, queria ser uma outra. Ele sorria, dizia sempre assim, com voz calma de psicólogo: “o objetivo é esse, o objetivo é esse”. A partir de hoje você é apenas brasileira e branca, está caminhado pra isso, mas já saia daqui, dessa sala, pensando assim. Disse que eu evitasse qualquer referência outra e no máximo eu admitisse ser mestiça e brasileira, essas palavras são possíveis, porque no fundo negam as indesejáveis, aquelas referentes ao lado de baixo do hemisfério global, o coração das trevas, “segundo o velho e bom Conrad” dizia ele, sorrindo no canto da boca e batendo os dedos no joelho. Depois disso, fez olhar sério, foi mais profundo e me apresentou a seguinte conclusão: “quando você admite se constituir de coisas positivas e negativas, tudo misturado, você destitui qualquer possibilidade de identificação com as negativas, já que todo mundo desejará ver em você apenas as primeiras. Portanto, ser mestiço e ser brasileiro é como ser branco, no fundo é uma coisa boa”. Ele dizia estar me ensinando o esquecimento.


Então, para aquelas meninas da Liberdade, faltou justamente isso: um psicólogo e um linguista, machos de verdade, que ensinassem a negação e o esquecimento!

Sim, o método estava dando certo por isso. As meninas da Liberdade, aquelas malucas, estavam dando volta na cabeça delas mesmas, inicialmente, e a dos outros depois: transformavam as tais coisas negativas em coisas positivas, era uma inversão total das técnicas da clínica, chamavam essa loucura de políticas afirmativas. Eu, não, segui tudo à risca, depois que saí da sala do linguista e do psicólogo fui para a sala do filósofo e do historiador. O filósofo vestia uma roupa antiga, parecia um traje grego, igualzinho ao de Eric Bana intepretando Heitor no filme Tróia. O historiador usava um guarda-pó e estava diante de um mapa múndi esquisito, era o mundo, mas faltava pedaços dele, estava distorcido. Não via o grande continente do meio, aquele que não ouso dizer o nome, desde quando saí da clínica. Não vi as ilhas do Caribe. A Índia e a China estavam com seus territórios diminuídos. O Brasil era maior que todos os países, parecia mais unificado, mais compacto e imponente, sem buracos e sem fronteiras, a Europa despencava lá de cima e Portugal chegava a tocar na costa brasileira, numa curvatura esquisita. O filósofo recitou trechos do Ilíada de Homero, pensamentos socráticos, foi me explicando a história da Grécia, berço do pensamento ocidental, falou sobre o homem universal, cósmico, com enormes pernas de astronauta, pisando em todas as diferenças. Filosofia, pensamento, Europa, na fala dele, constituíam uma síntese completa que resumia e explicava o mundo. O historiador entregou-me um livro de história, pediu que rasgasse todas as páginas antes do ano de 1888, mais de 350, só restaram bem pouquinhas. Falou de símbolos nacionais do colorido vitorioso da nação, e fez uma grande concessão aos anos anteriores, ao lembrar de figura como Pedro Álvares Cabral, Tomé de Souza e Martim Soares Moreno. No final, disse que o melhor mesmo era entender a história a partir do meu nascimento, não importava o que veio atrás, a história atrapalhava a vida das pessoas. O nascimento depois de tudo aquilo era o final do procedimento na clínica, eu nasceria de novo quando saísse dali. Ele me conduziu a uma outra sala, a última. Um sociólogo de cabelo desgrenhado, vestindo uma roupa puída e suja me recebeu, na mão de unhas enormes e imundas, uma almofada de tinta para tirar a impressão digital, na outra uma folha de papel. Sua sala parecia uma oficina: maquinário de impressão e de gráfica. No fundo da sala, num canto sujo: livros antigos de Florestan Fernanes, Artur Ramos e Gilberto Freire, seu diploma da USP em Ciências Sociais estava lá também, amarelado e roído de traças. Disse pra mim, em tom de ordem. “Escolha aqui um nome”.

Ui... não acredito, que até de nome você mudou.

Sim, mudei, mas deixa eu te contar o restante. Na lista dos sobrenomes mais caros estavam os alemães, cheios de h, de w e de y. Depois empatados, os ingleses e os franceses, os russos também, mas ninguém escolhiam esses, era muito difícil soletrar. Alguns nomes em espanhol e italiano estavam lá. Havia o que eles chamavam de nomes portugueses raros, entre eles Abranches, Botica, Candal, Cardim etc. Eu sonhava em ter sobrenome italiano, tipo Matarazzo, Corleone, Borgia, até nomes obscuros de uns anarquistas que chegaram na época da imigração. Daí o que eu fiz: comprei uma preposição italiana baratinha “di”, no desconto, e juntei com um sobrenome português raro: Alencastro. De forma que meu novo nome, bem europeu, é Maria Clara di Alencastro. Nada desses nomes “pés rapados”, Silva, Santos, Souza, Pereira. Bem chique, não é? O sociólogo me disse que era boa escolha. Chamou-me a atenção dizendo assim: “com esse cabelo, com essa pele, não há como dizer que você é originária daquele continente esquisito”. E lembrou: “está vendo aí nem precisou casar com europeu, ou descendente, para ter nome chique, só nessa clínica a senhora poderia fazer isso”.

Chiqueza mesmo, parece nome de condessa nórdica, daquelas que quase não toma sol. Talvez uma vez por ano, no máximo.

Pois é. O sociólogo pegou minha mão violentamente, foi lambuzando na almofada e pressionando, num papel, dizendo e resmungando: “Essa é sua nova identidade, você está passando por um processo de apagamento. Nós sociólogos cansamos de tentar efetivar esse processo, por décadas, com livros, produção de teorias, ideias mirabolantes, estamos pegando no pesado agora, ninguém acredita mais em sociólogo, minha filha! Não precisamos mais dizer que todo problema é social, que tudo vai se resolver com a distribuição de renda. A gente resolve agora na força”. Ele mandou eu sair, pegar minha identidade e meu novo endereço na recepção. Ele era bruto, deu uma olhada na minha bunda,lascivamente, e se despediu.

Você mudou de endereço?

Sim, eu mudei da minha cidade, não tenho mais o contato de minha família. Sou outra pessoa, digo sempre ser a última pessoa, e que toda minha família morreu, como eles me orientaram. Bom, mas nossa conversa acaba por aqui. Venha comigo, vou te levar até aquela esquina... Pronto, daqui você pode seguir sozinha, não quero que eles me vejam. Vá, vá minha filha, não fique com medo, só existe esse caminho.

(A mulher seguiu meio hesitante no caminho obscuro, por dentro dos matos, em direção a clínica, que exibia agora um enorme letreiro colorido, onde se lia “Brasil”. Enquanto a outra, de longe, acompanhava seus passos, com enorme tristeza no coração).

quinta-feira, 10 de novembro de 2011

Quadros, quadrinhos...

(Nota do blogueiro: Uma aula sobre quadrinhos, de como utilizá-los em sala de aula. De repente, desenhos toscos são apresentados, diálogos que revelam cotidianos, circunstâncias emocionais, pensamentos... Eu na berlinda, colegas na berlinda. Risos, e no final aplausos. Este blogueiro não poderia deixar de se interessar por tão fino humor, percepção aguda, ironia, sem grosseria... Afinal de contas, nada é tão sério, que não possa ser levado na graça, e nada é tão engraçado, que não possa ser levado a sério. Parabéns, Ellison, estudante de Letras, pelos desenhos!)









quinta-feira, 3 de novembro de 2011

O discurso fundacional americano e a eleição de Obama


(Nota do blogueiro: esse texto faz parte de algumas de minhas reflexões sobre a ideia de origem nacional e o cenário político mundial. Analisa a representação da eleição de um presidente negro nos Estados Unidos, e como ela configura ao mesmo tempo continuidade e descontinuidade do conhecido discurso fundacional americano. O cinema e os símbolos da nacionalidade americana são também elementos contemplados na produção desse texto.)


Por: Marcos Aurélio dos S. Souza

A primeira eleição de um afro-americano à presidência dos Estados Unidos oferece um cenário para a compreensão da relação de forças, operada no discurso da origem nacional. Origem que se quer contínua, mas se depara com fenômenos históricos descontínuos e imprevisíveis. 

O discurso de fundação, reproduzido na história oficial dos Pilgrins Fathers ou na recorrente lembrança política dos “presidentes fundadores”, cujas faces gigantescas foram “eternizadas” no Monte Rushmore, encontrou sua versão mais desconcertante não apenas na figura do filho de um queniano com uma americana branca, ostentando o nome islâmico de Barak Hussein Obama, mas também na imagem de toda uma família negra ocupando a Casa Branca. Sem enfatizar a história de luta dos negros americanos (uma luta contra a segregação que lhes vetavam, por exemplo, a presença em espaços ordinários como banheiros, assentos de ônibus etc.), e também sem negá-la, foi especialmente com uso rasurado e estratégico da retórica fundacional que Obama construiu sua singular e incômoda marca discursiva na política americana contemporânea.

O cinema e televisão americanos têm demonstrado a ambivalência que causa a idéia de um político negro ocupando o mais alto cargo político dos Estados Unidos. Em um episódio de uma das séries americanas mais populares House (2005), um fictício senador negro tem sua doença desvendada pela inteligência sarcástica de Gregory House, o médico protagonista dessa série homônima. Num dos diálogos desse episódio ao falar de suas aspirações à Casa Branca, o senador e candidato a presidência dos Estados Unidos ouve com descrença a declaração de House: “a Casa Branca não é conhecida assim por causa de sua pintura”, sugerindo uma conotação segregacionista desse emblemático locus do poder político americano. Entretanto, apesar do pessimismo de House, outras produções cinematográficas já anteciparam presidentes negros em suas narrativas fictícias, por exemplo, nos filmes O presidente negro (filme de 1972, cujo protagonista foi interpretado pelo ator negro James Earl Jones), Impacto profundo (filme com Morgan Freeman, interpretando o papel principal), e em outra série, intitulada “24 h.”, cujo personagem, David Palmer, vivido pelo ator Dennis Haysbert, ficou popularmente conhecido. Todos esses presidentes fictícios, entretanto, não produzem em si, nenhuma rasura no discurso fundacional americano, já que nessas produções cinematográficas não se expõem, por exemplo, o persistente teor racial e segregacionista de uma fundação.

A idéia de rasura significa aqui, ao mesmo tempo, reprodução e o deslocamento desse discurso, do seu domínio ideológico, de seu controle e de sua autoridade, por um acontecimento aleatório e imprevisivelmente descontínuo, que escapa a essa contenção permanente da origem e acompanha, por outro lado, à emergência de demandas específicas em situações históricas e culturais diversas. Para o discurso ultra-nacionalista e quase folclórico da herança branca americana, defendido pela Ku Klux Klan, e também para o conhecido padrão fundador WASP (White, Anglo-Saxon and Protestant), racista e anti-imigracionista, a vitória de um negro criou impacto curioso e desconcertante, porque ela aconteceu sob a mesma pompa da retórica americana, esperada nas grande sucessões presidenciais, quando o candidato eleito assume uma espécie de missão original de seus fundadores.

Entretanto, ao suscitar constantemente em seus discursos o nome de Abrahan Lincoln, personalidade emblemática de fundação da democracia americana, Obama ao tempo em que granjeava certa simpatia de alguns setores mais conservadores com sua lembrança, acionava a seu favor a ambivalência daquele que também se pronunciou contra a escravidão negra. Como político e presidente, Lincoln foi responsável no século XIX pelo fim do sistema escravocrata no sul do país, evitando sua definitiva secessão geopolítica, entre os estados do sul defensores da escravidão, e os estados industriais do norte contrários a ela, num episódio histórico sangrento, conhecido como a Guerra Civil Americana ou Guerra da Secessão.

Ainda que fosse inconcebível a eleição de um negro a presidência americana no século XIX e na percepção do ex-dono de escravos, Lincoln, pois sua posição pelo fim da escravidão se explicava menos na defesa de uma igualdade entre as raças do que nas injunções econômicas de uma sociedade que se industrializava, o ideal democrático constituído nessa época forneceu importantes elementos para o reforço da luta negra na América e no mundo, em sua feição diaspórica e transnacional. Essa luta que teve seus momentos nacionalistas, mas se fortaleceu e se configura até hoje como força dispersiva e multicultural, produz rasuras na perspectiva de um país cuja idéia de legado fundador e nacionalista ainda tem forte apelo na história de seus peregrinos e na perspectiva de uma herança e uma “pureza de sangue” provindas dos mesmos. Essa rasura teve como um dos pontos mais altos, a defesa negra pacífica e nacionalista do pastor Martin Luther King, que acionara uma rede de solidariedades negras na América, Caribe e África, possibilitando e reforçando uma abertura crescente em relação à aquisição por parte dos negros americanos de direitos, bens simbólicos e materiais nos Estado Unidos, cuja culminância nos dias de hoje foi certamente a eleição de Barak Obama.

Lincoln é suscitado, portanto, no discurso de Obama não como um ponto fixo na contínua linha da narrativa fundacional americana no seu sentido etnocêntrico, mas como o seu “melhor anjo”, uma disfarçada linha de fuga da presença fundacional, constituída dentro das possibilidades de sua formação discursiva. Lincoln está dessa forma como presença e ausência na imagem descontínua, evocada pelo presidente negro. Advogado e político de Ilinois, assim como Obama, a imagem desse fundador, aparece ainda no contexto de um país mergulhado numa crise econômica, associada à trágica gestão Bush, e sua iniciativa bélica desastrosa no Iraque e Afeganistão, que entra numa lista de fatos políticos igualmente malfadados, protagonizadas por figuras presidenciais que estão de um padrão WASP. - só para citar os mais conhecidos e emblemáticos: a Guerra do Vietnã e o escândalo Waltergate protagonizados respectivamente pelos ex-presidentes Truman e Nixon. Essas cenas e seus atores de certa forma reforçaram a conhecida “paranóia branca masculina” americana, expressos em filmes do “tipo Rambo e outros de Stallone-Norris”, em que, segundo Douglas Kellner (2001: p. 88): “os homens são vítimas de inimigos externos, de outras raças, do governo e da sociedade em geral”.

Ainda que seguisse a um protocolo nacionalista e retórico na referência ao “pai fundador”, Obama constitui seu discurso em torno de elementos de descontinuidade, reforçado por forças históricas dispersas, e conclamando uma nova (ou uma outra) declaração da independência. Por outro lado, a imagem da família Obama na Casa Branca também se apresentou como uma rasura e uma descontinuidade no discurso do “american way of life", que se deslocou de um ethos do nacionalismo americano, individualista e burguês, para a esteira coletiva e política das populações marginalizadas nos grandes centros urbanos. Um havaiano, filho de africano, e sua mulher filha de um operário de Chicago alcançaram na América não apenas uma vida confortável de classe média ou alta, mas uma posição política de destaque que promoveu uma resposta entusiástica de públicos em situações históricas diferentes: como a de milhares de imigrantes moradores de subúrbios nas grandes cidades européias, a exemplo de Paris e Londres, e de grande parte da população pobre do Quênia, orgulhosa da ascendência comum com o novo presidente americano, cujo slogan de campanha representava uma possibilidade de representação positiva para populações periféricas desprivilegiadas: “yes, we can.” A figura descontínua de um presidente americano negro no contexto contemporâneo convoca para o jogo em que se expõe e se subverte o discurso da presença fundacional, não apenas as demandas transnacionais e diásporicas da luta negra, mas também as resistências políticas da imigração contemporânea.

No lado inverso dessa possibilidade, a defesa de uma continuidade do discurso etnocêntrico da presença apareceu no cenário das eleições de Obama na sua forma mais explícita e também mais violenta, em pelo menos duas ameaças de atentados contra a vida do candidato negro e numa onda de crimes raciais no país, como registra o jornal inglês The Daily Telegraph (2009). Na matéria, intitulada “Barack Obama's election spurs race crimes around the USA” [A eleição de Obama incita crimes raciais em todos os Estados Unidos], datada no dia 16 de novembro de 2008, o jornal lista uma série e manifestações racistas, expressas durante as eleições presidenciais americanas, desde graffitis com clichês racistas como “Go Back To Africa", até atentados físicos sofridos por negros e manifestantes pró-Obama.

A matéria trazia também a opinião de William Ferris, diretor do Centro de Estudos da América do Sul na Universidade da Carolina do Norte, afirmando que os Estados Unidos vivia com a eleição de Obama: "the most profound change in the field of race this country has experienced since the Civil War,"[a mais profunda mudança no campo racial deste país, desde a Guerra Civil]. E: "It's shaking the foundations on which the country has existed for centuries" [Tremendo as fundações sobre as quais o país existiu por séculos]. A idéia expressa pelo verbo shake (em português tremer, sacudir, abalar) aplicado às idéias de fundação ou origem (“foundations”) traz aqui um sentido próximo ao que estamos definindo como um jogo e rasuras promovidas por novas situações e sujeitos histórico-culturais sobre o discurso da presença fundacional. A emergência dessas situações e sujeitos promove uma espécie de abalo, rearticulando antigos e novos caracteres desse discurso e fomentando impactos sociais tão diversos, assim como agenciando novas formas culturais e políticas de resistência.

Mesmo seguindo o protocolo presidencial ao reverenciar os “pais fundadores” (através da figura, nesse caso, controvertida de Lincoln) e o velho espírito da liberdade americana, nenhum presidente americano mobilizou uma atenção tão plural e imprevisível, quanto a que mobilizou o senador negro por Ilinois: o contexto e o sujeito histórico eram outros. Por outro lado, o impacto sobre aqueles ameaçados por esse tremor, por esse jogo discursivo também se manifestou com algumas surpresas, a exemplo da contraditória declaração do pastor Thomas Robb (2008), líder da Ku Klux Klan. Ao tentar dirimir esse impacto, Robb afirmou em seu blog ter sido um mulato, ou um mestiço (“only half black”) e não um negro que ganhou a eleição, depois declarou não estar zangado com os negros americanos, pois na verdade eles votaram em um deles, quanto aos brancos, imprecou-os alertando sobre um futuro não desejável: “As more and more non-whites come into this country the hatred for the founding people will grow” [Com mais e mais não-brancos vindo para esse país, o ódio pelo povo fundador crescerá] .

A fala confusa de Thomas Robb, sobre a condição e a não condição de Obama como negro (um não-negro que na verdade é negro, um mulato, metade negro, metade branco, mas que não é branco) parece querer confundir a posição americana tradicional que não compreende a categoria mestiço como uma condição racial, ou pelo menos como condição de duplo pertencimento, mas como um não-branco, categorizado assim por sua descendência como negro. Sendo que em qualquer outra situação cotidiana e social seu biotipo lhe apresentaria sua condição de negro - passível inclusive de violência por membros da Ku klux klan, em tempos mais agressivos desse grupo - a fala de Robb revela, a tentativa de manutenção do discurso da presença branca (original), com emendas escandalosas que, mesmo sem esse intuito, rasuram-lhe ainda mais. Demonstra, assim, o artificialismo e a produção perniciosamente inventiva do discurso da origem, das narrativas de fundação, dos registros coloniais que apesar de tudo ainda funcionam como justificativas para a permanência dos diversos tipos de segregação e racismo existentes nas sociedades contemporâneas.

Para o discurso da origem metafísica, entendido aqui como essa presença fundacional inventada, a história é um contínuo, iniciada num ponto temporal definido pela escrita e pela narrativa dos que proclamaram a si como “primeiros” e legítimos, em contraposição aos outros ilegítimos, nessa perspectiva, incapazes de narrar sobre si ou agir por si. Entretanto, esse discurso que ainda se apresenta de forma agressiva na atualidade, está cada vez mais sujeito ao confronto e diálogo com movimentos históricos imprevisíveis das relações, e das novas demandas culturais e políticas. As perspectivas historiográficas na contemporaneidade acerca das nações ocidentais não podem ser levadas a sério, sem se considerar a constituição efetiva dessas irregularidades históricas e das violências simbólica e física praticadas em nome do desejo de continuidade e de poder dos discursos de fundação das nações modernas.