sábado, 1 de novembro de 2014

Nem saci, nem bruxa. Nem Lampião, nem bandeirante.

Hoje é uma sexta chata, final de outubro. Estou sofrendo com uma ressaca, após receber de todos os lados uma torrente de imagens e discursos que se repetem, numa cantilena angustiante. 

De um lado, uma reivindicação do dia do Saci para substituir o Halloween americano, do outro a evocação da Nação Nordestina, cheia de gibão de couro, oxentes, forró e farinha, como resposta do orgulho nordestino a um discurso contra “o Nordeste, que votou em Dilma para a presidência".

Todos esses discurso e imagens acionam uma centralidade redutora de identidades que não corresponde à realidade complexa em que estamos imersos e (não) nos traduz. 

Não consigo ser Lampião, nem bandeirante, nem saci, nem bruxo. Porque, no fundo, qualquer discurso essencial, fundador de uma ideia ou identidade regional/nacional, é estranho. Tanto o que estabelece o saci como símbolo de uma identidade nacional, opondo-se à bruxa, às fantasias norte-americanas do trick or treat, quanto os que evocam uma natureza nordestina para se opor à xenofobia sudestina, cujo essencialismo é muito perigoso, porque reativo e violento.

Gostei da posição bem pragmática do sociólogo Carlos Alberto Almeida, respondendo, no programa Globo News (aecista e reacionário), a um pedido do Diogo Mainardi, que fizesse uma oposição entre cabeça de paulista e cabeça de cearense para justificar a vitória de Aécio no Sudeste e a vitória de Dilma no Nordeste. O sociólogo afirmou: “O Nordeste cresce muito mais que São Paulo, então as pessoas votaram baseadas no bolso, no interesse próprio, nisso o eleitor nordestino é idêntico ao eleitor paulista”.

Indicadores econômicos explicam um fenômeno, que os coxinhas das redes sociais tentaram justificar como sendo uma diferença racial ou cultural, falta de inteligência dos nordestinos. Atônitos, os babacas da Globo News queriam uma explicação de Lombroso, médico racista do século XIX, que via criminalidade e inferioridade nos crânios das "raças inferiores". Eles tiveram, entretanto, uma resposta fria, que explica, tanto em termos massivos, quanto individuais, o fenômeno eleitoral, seja no Brasil, na Argentina ou na Alemanha. O fator econômico é imperativo.

Mas, retomo a ideia da complexidade humana, que também nunca vai ser resolvida com a dicotomia: nordeste e sudeste. Meu vizinho, negro, baiano e nordestino, como eu, votou em Aécio. Ele andava estressado com a mulher, que vivia uma “pilha” com os afazeres domésticos, desde quando a PEC das domésticas foi, finalmente, implantada. Ficou “inviável”, em sua realidade de classe média, a contratação de uma empregada. A mulher teve que se desdobrar com seu emprego, as atividades de casa e o filho de 4 anos. A relação com o marido, que nunca lavou um prato, desandou,  ficou muito difícil. Então, ele fez coro com os amigos do clube machista de futebol socyte: Culpa da Dilma.

A dona de uma sorveteria na periferia soteropolitana, prima de um amigo meu, votou em Aécio. Mesmo com dois de seus filhos recebendo incentivos federais para cursarem faculdade particular, ficou revoltada com “a vigilância sanitária de Dilma”, que lhe deu enormes prejuízos, quando descobriu irregularidades no seu estabelecimento.

O professor e poeta que gosta de tirar fotos com chapéu Lampião, meu colega de trabalho, votou em Dilma. Ele se julga o gênio da raça, porque faz uns poemas e é membro da Academia Baiana de Letras. Arrogante, já sofreu de parte de seus alunos processos judiciais por assédio moral e também por racismo. Alguns meus próximos soteropolitanos, conhecidos e amigos, dilmistas ou aecistas, são muito estranhos, parecem de outro país.

No Facebook, aecistas do Sudeste e dilmistas do Nordeste, depois de arrefecidas as disputas eleitorais começaram a divulgar o dia do saci em substituição ao halloween. Diziam, esquecendo as trocas de farpas eleitorais, as defesas de muros e os orgulhos regionais: “esse é o nosso símbolo nacional, o que nos unifica, afinal somos todos brasileiros, não norte-americanos”. Viva o dia do Saci.

Buscavam eles uma unidade que não existe entre o lá e o aqui e, nem mesmo, no aqui. Como diz Freud, o familiar também é estranho. Mudaram os símbolos, mas o princípio continuou o mesmo.  E o saci, saído de um buraco esquisito e não conseguindo colocar suas pernas lá e cá, pisou com seu pé de bandeirante africano as nossas diferenças.

quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Entre mortos e feridos

Para Luciano e Adriana


Há um discurso grave, moralista e cristão, que transforma todo morto num santo. Tivesse sido ele um benfeitor ou um cínico, eunuco ou garanhão, desse discurso vamos ouvir coisas do tipo: “respeitem a esposa e os filhos de fulano, não brinquem com a morte, ele era uma ótima pessoa, um pai de família”. 

Uma tendência desse discurso é chorar o morto alheio como se fosse o seu próprio morto, principalmente se a pessoa for conhecida, político ou escritor famoso. Há algo meio histriônico, meio teatral, presente nas manifestações de pesar no facebook, pela morte de alguma celebridade. 

No interior da Bahia, as chamadas carpideiras, mulheres muitas vezes sem nenhuma relação emocional com um dito finado, encenam pesar e dor pela morte da forma mais exagerada possível, jogando-se no chão, esperneando, agarrando-se ao caixão do morto, dando um clima grave e espetacular (risível) aos ordinários velórios de uma cidade pacata. Vivem assim, essas mulheres, chorando de velório em velório, pelo simples prazer de chorar, algumas até recebem pequeno soldo por sua atividade performática.

Os carpideiros modernos do facebook não ganham nada por isso, são sisudos, não são performáticos, e vivem pentelhando, monitorando a opinião de quem simplesmente não quer ver o morto numa santidade de morto e não acreditam na máxima comum: gente boa é gente morta. Os carpideiros digitais perdem todo senso crítico e entram numa dessas ladainhas emocionais, que tem lá um fundo existencialista, mas no geral tem a ver com uma espécie de crença cristã da redenção, da remissão dos pecados, da vida eterna. Amém.

Eu entendo isso, em parte. Por outro lado, vejo nessas pessoas o medo do imponderável da morte, dessa carnívora assanhada, como versejou Augusto dos Anjos. A morte desconcerta e fica todo mundo lamurioso depois dela, meio macambúzio, perante a algo que tem tanta e nenhuma explicação. Nesse caso, sentir a morte do outro é sentir a sua própria morte.

Em 1836, a população soteropolitana destruiu o cemitério do Campo Santo, porque uma empresa passou a ter o monopólio dos enterros na cidade, após um contrato espúrio com o governo da cidade que a licenciava nessa atividade por 30 anos. Aquilo foi uma das maiores afrontas municipais à população local que via naquilo uma espécie de controle governamental, financeiro e especulativo, da morte. 

O resultado disso, descrito minunciosamente no livro A morte é uma festa do historiador João José Reis, foi uma quebradeira geral na cidade, a chamada revolta da cemiterada. A população queria que seus mortos continuassem sendo enterrados em torno das diversas igrejas da cidade, seguindo as espetacularizações ritualísticas, de matriz africana e portuguesa, da consagração da morte. Nesse caso, o choro carpideiro despertou a crítica para uma situação social opressiva.

Aspectos da consagração, do medo do imponderável, ainda persiste nas redes sociais do facebook e congêneres, quando a lamúria carpideira se alastra. Mas, também, é possível ler e ouvir (ainda bem) vozes dissonantes que tornam produtiva a morte de alguém, ironizando-a, trazendo o morto para a berlinda vivificante do debate público. 

Num dos episódios do filme Sonhos, de Akira Kurosawa, um belo carnaval zombeteiro e alegre, com crianças e banda, desfila diante da câmera. Depois de passar um caixão fúnebre, percebemos então que estamos diante de um funeral festivo. É possível também beber a morte, e isso também acontece em muitos enterros do interior da Bahia: muita gente vai não para chorar o morto, mas para bebe-lo, falar mal de quem foi para o lado de lá e de quem ficou do lado de cá.

Moral da história: não nos deixemos morrer com os mortos, porque se a morte alheia não nos torna mais felizes, pelo menos não nos tire o poder precioso da crítica.

domingo, 27 de julho de 2014

Ainda bem que morreram


Neste mês, uma enxurrada de lamúrias nas redes sociais e na grande mídia pela passagem de dois representantes da cultura e da literatura brasileiras: João Ubaldo Ribeiro e Ariano Suassuna. Vou contar por que não chorei, nem postei frase saudosa, dedicada a esses dois “próceres” das letras e das artes nacionais.

Porque, a despeito dessa veneração emotiva e irracional de muita gente ao intelectual de voz grave, cheio de erudição vazia, defensor varonil da cultura brasileira e nordestina (bem retrô para as épocas atuais), veneração, inclusive, de pessoas que não conhecem uma obra sequer dos finados, eu nunca vi tanto conservadorismo e visão estreita sobre arte, cultura e política, reunidos em apenas dois indivíduos. Ainda bem que morreram.

Ariano Suassuna era um pensador do século XIX, teimando viver até os dias de hoje, devotado a uma imagem fossilizada de cultura, que não se movimenta, engessada a uma ideia essencialista, fantasiosa de origem única, pura, e de propriedade interpretativa, exclusivamente, dos iluministas intelectuais. Acreditava num Nordeste medieval, cheio de gibões de couros, de música trovadoresca. Demagógico e colonialista, vivia encastelado numa visão de brasões e heráldicas, defendendo, por tabela, uma raiz etnocêntrica, europeia e medievalesca, da cultura brasileira.

Cultura para Suassuna, tem o sentido pitoresco e estereotipado de folclore e só pode ser interpretada por almas como a dele e, depois, tombada pelo dicionário de Câmara Cascudo (certamente, Suassuna e Cascudo filaram as melhores aulas de antropologia). Inventou um movimento, armorial, que não dizia nada para ninguém e só servia para ele e José de Alencar. Com uma grande diferença, o autor de O sertanejo e Iracema morreu em 1877.

Para mim, quem defende uma chamada arte tradicional e a impõe como a única arte possível, é um lunático, mora lá em cima e não aqui. O embate que Suassuna, na década de 1990, teve com a música mais genial do Brasil, o Manguebeat, mostrou sua perspectiva anacrônica e descontextualizada de tudo, inclusive da vida.

Ele não podia suportar uma guitarra junto com a zabumba, ele queria a zabumba com o pífano e a rabeca. Vá ele ficar ouvindo música provençal arcaica, deixe os outros em paz. Se saiu mal, porque a música de Science continua vendendo, vigorosa e produtiva, influenciando novas tendências musicais contemporâneas, e as ideias de música e literatura que Ariano propaga, mofadas na sua cabeça, só empolgam a quem se acha intelectualmente superior, culto. No geral, pessoas deslumbradas com o conhecimento livresco corroído pela traça. Suassuna era contra a juventude e a oxigenação das artes, seria líder de uma marcha contra o rock e toda música que não fosse do seu nordeste mal inventado. O texto teatral “O auto da compadecida” originalmente de 1955, nunca fez sucesso até virar minissérie da Rede Globo, em 1999. O texto de teatro tem pouco a ver com a minissérie. Embora, chatos os dois. Teatro enfadonho, minissérie cheia de estereótipos bufões, tipo Zorra Total.

Outro barítono de ideias estúpidas era João Ubaldo Ribeiro. Esse escreveu as linhas mais reacionárias que já li nos últimos anos. Basta dizer, que era o namoradinho da mídia embusteira, a mais viciada do mundo, composta pela revista Veja, os jornais O Globo e a Folha de São Paulo. E todo mundo sabe da sua relação com a família Marinho. Era o intelectual a serviço da direita raivosa, espinafrando asneiras contra qualquer tipo de política pública. Antes, ele fosse franco e declarasse logo seu conservadorismo, a sua filiação ordinária aos grupos dominantes desse país. Mas, pousava de intelectual independente, defendendo o indefensável, a “liberdade” de uma mídia golpista.*

Ora, qualquer pessoa sensata, que conhece um pouco de história, sabe como funcionam os grandes grupos de comunicação, em sua relação com a poder, sabe que golpes políticos e ideológicos são arquitetados nas redações e relações espúrias são construídas entre políticos e donos de emissoras de TV. A quem João Ubaldo quis convencer sobre uma mídia crítica e independente? Perdeu as aulas de história e política na faculdade: ou era muito ingênuo, ou bastante maldoso, ou as duas coisas juntas.

Signatário de um manifesto intitulado “Centro e treze cidadãos não racistas contra as leis raciais”, enviado ao STF em abril de 2008, contra as cotas para indígenas e afrodescendentes, João Ubaldo teimava em reeditar o mito da democracia racial, da feliz harmonia gilbertofreiriana das raças, desfazendo-se de dados sérios que mostram claramente as desigualdades de oportunidades de trabalho e estudo entre negros, pardos, indígenas e brancos no Brasil**. Justificava sua posição dizendo que as cotas criariam uma linha de cor, que, segundo ele, nunca existiu no Brasil. Nunca existiu? É estranho, parece até que João Ubaldo não escreveu o seu próprio romance Viva o Povo Brasileiro.

Nesse livro, um personagem chamado Amleto, um "mulato sarará", de pai inglês e mãe preta passa toda noite uma camada espessa de caldo de babosa no cabelo e põe uma touca para amaciá-lo. Na sua quinta geração, um de seus herdeiros, rico banqueiro de São Paulo, contempla com orgulho o retrato desse trisavô: “sisudo, colarinho alto, pescoço empertigado, sobrancelhas cerradas. Branco que parecia leitoso, o cabelo ralo e muito liso, escorrendo pelos lados da cabeça, podia perfeitamente ser um inglês, como, aliás, quase era, só faltou nascer na Inglaterra. Traços nórdicos visíveis" (1984, p 642)***. A negação de Amleto mostra que existe uma linha de cor bem perversa, sim, introjetada por esse personagem mestiço e pelos estereótipos racistas, evocados por ele para determinado povo brasileiro: “Que será aquilo que chamamos de povo? Seguramente, não é essa massa rude, de iletrados enfermiços, encarquilhados impaludados, mestiços e negros”. (idem, p.245)

Academia Brasileira de Letras não deveria chorar seus mortos, pois, afinal de contas eles são imortais. No caso desses dois, há de se imaginar que estejam numa dimensão astral dos seres superiores, contando uma para o outro as suas ideias mais mirabolantes. E, como expectadores desses dois falastrões, o imenso vazio da orbe celeste e um boi dormindo profundamente.

*Ver artigo do Estadão: “Que elites, que esquerda?” Disponível em: http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,que-elites-que-esquerda-imp-,1009789. Acesso em: 20 de jun. de 2014.
** Ver entrevista da Revista Veja: "Somos um país corrupto". Disponível em: http://veja.abril.com.br/180505/entrevista.html. Acesso em: 10 de jul. de 2014.
***RIBEIRO, João Ubaldo. Viva o povo brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

sexta-feira, 16 de maio de 2014

O comando paramilitar da língua

“O português é difícil”. Ouvi essa triste afirmação numa roda de amigos e, como não foi a primeira vez que tinha ouvido tal frase, encarei com doçura (e não com susto) o meu interlocutor.

- Mas, você é de onde mesmo?
- Sou daqui, de Salvador.
- Digo, nasceu onde?
- Aqui mesmo, Salvador....
- Então porque vocês está falando isso, que o português é difícil?
- Assim, é difícil de falar... de escrever...
     - Falar? Escrever?  Você está comparando o português com outra língua, que você conhece? Porque, mesmo comparando com outra língua, você vai ter que argumentar direitinho o que faz uma língua ser mais difícil do que outra.... Qualquer criança de 3 anos, seja ela alemã, francesa, italiana, tcheca, chinesa ou brasileira fala o seu próprio idioma com desenvoltura, não fica chorando pelos cantos, muda, porque sua língua é difícil.

A conversa acabou ali, porque daí por diante ouvi um gaguejar, uma série de frases engroladas, que tentavam montar um argumento, em vão... Meu interlocutor até tentou fazer comparações estúrdias do português com o inglês (ele tinha feito um desses cursos caros, que não ensinava inglês a ninguém) mas “caiu na boca de lobo”. “O inglês é mais objetivo, o português é subjetivo, as frases maiores”.  Eu pedi que desenvolvesse o argumento, mas ele não citou exemplos, e a conversa ficou, assim, pelo meio. Ele calado no fim das minhas perguntas, com a cara triste. Naquele momento, vi pela primeira vez, uma criança de 40 anos chorando, porque sua língua era difícil. Uma lástima.

Logo, eu lembrei de três situações, que se fossem repetidas mais vezes na minha vida, eu teria perdido, definitivamente, a esperança no ser humano. Ou, pelo menos, teria perdido minha vontade de ser professor e nunca faria um curso de licenciatura.

Tavares era considerado um ótimo professor de redação no meu segundo grau, pelo jeito sisudo, a agilidade em corrigir uma frase, uma concordância da escrita, uma palavra mal soletrada durante a leitura de textos clássicos (sim, fazíamos leitura, em voz alta, nas aulas de redação). 

Dizia que queria sair daquela vida, tantos alunos falando errado, suas aulas eram inúteis, nesse mundo de tanta gente ignorante. As meninas da minha sala, que eram apaixonadas pelo professor, acompanhavam a vida dele fora da escola.  Descobriram que vivia fazendo concurso público e sempre “tomava pau”, era reprovado... na redação.  Sempre desconfiei que quem corrige demais, termina revelando sua própria ignorância, não exatamente na matéria que julgam saber mais do que os outros, mas no trato sensível, humano, das pessoas com quem convive.  Tavares, atualmente velho e gordo, é até hoje um estranho solitário, continua dando aula no mesmo lugar, nunca passou em concurso público, vive em consultórios, fazendo terapia.

Fátima era a professora de inglês mais severa e vivia corrigindo nosso sotaque nas aulas da faculdade, repetindo a mesma frase repressora “filhinho você não sabe inglês”. Orgulhava-se por ter vivido 5 meses nos Estados Unidos. Todos nós sabíamos, a boca miúda, que viveu um casamento frustrado com um gringo por lá. Ela sabia colocar a língua entre os dentes e soletrar os sons "mais difíceis" do idioma de Shakespeare. Ela não dava aula de inglês, dava aula de pronúncia. Era humilhante, ninguém queria, nem sabia falar nas aulas de Fátima. Só a própria. Foi a pior professora da minha vida.

A vingança da turma não foi sopa fria, não tardou. Neide, a nossa colega mais fluente levou um dia consigo, uma amiga americana para as aulas da professora. A mestre gelou, quando viu aquela moça loira, olhos azuis, bem americana, entrando na sua classe. “This is my friend. She is from Massachusetts, USA” - introduziu Neide. Fátima, que mudou de cor, começou falar o inglês dela, no qual todos nós acreditávamos. As respostas de Lindy, a amiga de Neide, às falas de nossa professora, começava sempre com um muxoxo de incompreensão, seguido daquela frase gentil dos americanos, quando não entendem o que alguém diz: “I am sorry”. A aula não rendeu, Fátima fingiu um mal estar e saiu da sala. No outro dia, quase toda sala solicitou desistência da matéria. Até hoje, Fátima ensina inglês, nunca fez mestrado, nem especialização, mas parece que precisou estudar o inglês para poder ensinar na faculdade.

Bibi, minha prima paulistana, veio trabalhar em Salvador e morar na nossa casa. Nascida e criada no maior centro financeiro do país, na cidade dos nordestinos, dos antigos imigrantes paupérrimos, que vinham das zonas rurais da Itália, Alemanha, Portugal, cheios das chagas dos seus países e regiões, assolados pela humilhação, pela guerra e pela miséria, chegou sorridente na Bahia, mas não se adaptou. Depois de ter tentando vários concursos, acabou vindo trabalhar no subemprego de balconista, num desses shoppings soteropolitanos, que só emprega gente branca. 

Bibi era até divertida, mas tinha a mania de corrigir. Uma vez troçou de mim, porque chamei de farda a vestimenta escolar de sua filha, a Bibizinha. “Farda é do exército Marcos, o certo é uniforme”. Ela acentuava bem o r fricativo, a sibilante paulistana, que julgava a forma correta de pronunciar palavras como “farda”, “Marcos” e “uniforme”. Eu fui paciente com ela, só abri o dicionário Aurélio e mostrei que farda era sim uma palavra que se aplicava ao vestuário escolar. Depois soube que tinha brigado com a gerente da loja em que trabalhava, porque troçou dela quando essa se referiu ao aparelho luminoso das ruas com uma variante linguística bem baiana, dicionarizada também: sinaleira. Depois da risada e da troça, no outro dia, recebeu carta de demissão. Voltou para o seu desemprego em São Paulo.

Aquele jeito de falar, aquela pretensa autoridade corretiva, meio fascista, me dava entojo, ela nunca conseguiu se adaptar a Salvador, nunca se adaptaria, viveria encastelada na sua própria ignorância da realidade linguística do português no Brasil, limitada pelo mito da pretensa superioridade da língua de algumas pessoas da cidade de São Paulo, cuja realidade linguística diversa Bibi também ignorava. Ninguém merece o militarismo linguístico (monitorando, corrigindo e reprimindo as falas alheias) na sua própria casa. Se Bibi não tivesse ido embora do meu ambiente íntimo, certamente, eu a expulsaria de casa. 

Tavares, Fátima e Bibi formam uma rede de ignorância e violência, uma rede que funciona como um comando paramilitar de repressão, não apenas à língua, mas à fala do outro.  Gente fracassada sempre usa formas sub-reptícias para tentar diminuir o outro. A comunicação com ela é tensa, medida, é um não diálogo, ou um antidiálogo. O preconceito linguístico age para impedir o outro de falar, baseia-se em mitos que já foram desconstruídos há tempos pela Sociolinguística, tais como: o português é muito difícil; é preciso saber gramática para falar e escrever bem; o domínio de uma norma-padrão é um instrumento de ascensão social; as pessoas sem instrução falam tudo errado etc.

No clássico “Preconceito Linguístico”, Marcos Bagno vai desconstruindo esses mitos, um a um. O sociolinguista afirma que todos nós somos de alguma forma vítimas do preconceito linguístico. E acrescenta: “se tantas pessoas inteligente e cultas continuam achando que 'não sabem o português' ou que 'o português é muito difícil' é  porque o uso da língua foi se transformando numa 'ciência exotérica', numa 'doutrina cabalística' que somente alguns 'iluminados'... conseguem dominar completamente”. Qualquer língua é marcada pela variedade com que ela pode ser falada, a variedade lexical (os vocábulos em si) e fonológica (o som). O que vai dizer se uma variedade é melhor do que a outra, que o meu português ou o meu inglês é melhor ou pior, se configura no terreno das relações sociais, do preconceito e da exclusão social, e não da natureza da língua: sempre vária, na sua aparente uniformidade. 

Se eu não percebesse, facilmente, a estupidez dos corretores da língua, dos generais do idioma, fracassados nas suas carreiras militares, certamente, teria em minha casa um altar dedicado à minha própria ignorância e a eles: os sumos sacerdotes da língua, os donos da minha fala e da minha alma.

quarta-feira, 14 de maio de 2014

Escorregando no quiabo

Todo mundo pode cair numa armadilha ideológica. Em um artigo escrito em 1978, um dos textos clássicos da crítica cultural brasileira, intitulado “Crítica literária versus crítica cultural”, o professor e teórico da literatura Silviano Santiago acusava outro professor, músico e crítico de arte, José Miguel Wisnik, de ter caído numa armadilha ideológica de gênero, gender trap.

Wisnik em ensaio sobre a música de Roberto Carlos disse sentir necessidade de “ter ouvidos femininos” e de ter que recorrer à sua mulher para entender a real grandeza do rei – o trocadilho foi inevitável.

A acusação “ter caído na armadilha de gênero” dirigida a Wisnik, por sua afirmação infeliz, soava também como denúncia da misoginia do falocentrismo e do elitismo de Theodor Adorno, filósofo alemão, que identificava a música romântica, aclamada pela chamada cultura de massa, com o “feminino”, ou seja, com o piegas e o "sentimentalóide". 

Silviano pegou Wisnik pra Cristo. Não adiantou o lero lero das explicações posteriores de Wisnik, o et cetera e tal, o texto de Silviano foi arrasador, porque vinha, juntamente, com o calor da reivindicações do final da década de 70, do feminismo, do movimento negro, do movimento anti-homofobia (é bom lembrar da fundação do “Somos”,primeiro grupo em defesa dos direitos LGBT do Brasil, criado em 1978). Wisnik, jovem idealista, sintonizado na época com esses movimentos, vacilou, escorregou no quiabo.

Ninguém está livre desse escorregão, livre de cair em uma armadilha ideológica e terminar reproduzindo preconceitos. Mas, olhando para trás, eu gostava muito do Silviano Santiago “rolo compressor”, cruel demais com o colega, escarafunchando um preconceito que talvez estivesse mesmo latente, mas que certamente não poderia ser identificado com a postura frequente e sistemática de Adorno. O teórico alemão esculachava todo tipo de música diferente da europeia, identificada como clássica e viril. 

Eu gostava daquele Silviano Santiago, autor de Uma literatura nos trópicos e Vale quanto pesa, porque os textos críticos carregavam força, juventude teórica, em contraposição aos textos de hoje, tão frágeis, voltando a defender a “grande literatura”. 

Em um artigo mais recente da coletânea “O cosmopolitismo do pobre”, intitulado “Literatura Anfíbia” Santiago defende uma literatura ut delectet e ut moveat (para deleitar e comover),criticando uma literatura ut doceat (para ensinar), como se realmente pudesse isolar o deleite e a comoção do ensino, e como se “a verdadeira ou a bela literatura” servisse como “cafuné” na cabeção dos homens perfeitos.

Silviano Santiago, para mim, escorregou de vez na lama e se afundou. Ele já está velho, duvido que mude sua postura agora. Digo o mesmo em relação a algumas posturas do “Caetano Velhoso” mas deixarei essa crítica para um outro texto, quem sabe.

Estamos numa época muito semelhante à do final da década de 70, em que reivindicações históricas antifalocentrismo, anti-homofobia e antirracismo voltaram com energia. Agora, entretanto, elas vêm acompanhadas da concretização de políticas importantes: casamento gay, as politicas raciais afirmativas, a Lei Maria da Penha etc. Foram conquistas importantes, que começaram, efetivamente no Brasil, lá entre o final de 70 e início de 80. 

As discussões se tornaram acaloradas, hoje, à flor da pele, pela injunção do momento, já que essas políticas ameaçam um status quo, constituído há séculos no Brasil. Qualquer insinuação, brincadeira de mal gosto, pode produzir desafetos, ou gerar processos judiciais. O ruim é quando, às vezes, o que nem mesmo é insinuado se passa por crime infame.

Contarei uma breve história. Uma professora negra reprova duas alunas em sua disciplina na faculdade. As alunas entram com recurso para revisão de prova. A professora não aceita as justificativas para essa revisão, comunica ao departamento. A diretora do departamento escreve na capa do processo, à lápis, “professora nega”, fica subentendido o objeto direto: nega a solicitação das alunas.

Em um outro momento, ao ver a anotação, sem saber quem a escreveu, a professora toma aquilo como uma injúria racial, uma vingança das alunas, que, provavelmente, viram o resultado do processo e acentuaram a condição racial da professora, “professora negra”, ou num português, gramaticalmente vingativo, “professora nêga”.

A situação foi devidamente esclarecida, antes que se tornasse um escândalo. Um escândalo de proporções inimagináveis, já que as duas alunas também eram negras. Em épocas de semânticas deslizantes, em que qualquer declaração pode descambar para a injúria racial, homofóbica, racista, é melhor esclarecer e explicar tudinho. Injunções do momento.

E por falar nisso, antes que a expressão que intitula esse texto (que significa aqui “pisar na bola”) seja tomada em sua conotação sexual preconceituosa, sua utilização aqui foi mesmo para chamar a atenção. Uma força da expressividade.

Dessa vez, pelo menos dessa vez, eu não caí numa armadilha ideológica. Não escorreguei no quiabo.

domingo, 11 de maio de 2014

DIÁRIO PÓSTUMO

Hoje o céu aumentou de tamanho. Acordei. A janela tão grande, o céu azul... Meu coração amanheceu aflito, não sei, hoje queria ter ficado na cama até mais tarde. As ladeiras da minha rua são como as linhas do meu destino, tenho que descer o morro pra resolver todas as coisas em diferentes lugares, queria escrever uma música que falasse do meu dia a dia. Começaria assim: “Na minha mesa agulha e linha, desço as ladeiras do meu destino, que são as linhas do meu morro... morro... morro”.

Hoje seria um bom dia pra morrer. Eu já li essa frase em algum lugar, mas eu penso nela todos os dias, acho que todo mundo pensa na sua própria morte todos os dias, mesmo que inconscientemente. Será que a minha morte faria sentido no meio das coisas desse mundo tão diverso? A morte é um ponto obscuro, uma interrogação constante, nós vivemos a existência humana na morte, porque podemos viver cem anos, mas estaremos morto por toda uma eternidade. Vivemos num grão de areia que é a vida, e a morte é toda a areia do universo: nos desertos, nas praias, debaixo da superfície dos oceanos, a areia fina navegando como pó, por todo o cosmo. Rastejamos na vida e nos esparramamos inexoravelmente na morte.

Eu poderia ser filósofa, no entanto vou me recolher à ignorância do meu dia a dia, ao meu trabalho à minha família. Uma volta de bicicleta vai me fazer bem, as rodas me levam com uma velocidade gostosa. Vou fazer as coisas que gosto hoje. Hoje, nessa manhã, tudo simples, eu sou simples. Se fosse pra escolher uma maneira de morrer, queria tanto que meu coração parasse descendo de bicicleta, numa dessas ladeiras esburacadas. Seria como a morte num avião supersônico, em plena turbulência, entrando num túnel, num túnel... Eu sou mulher e ser mulher é também sonhar com coisas de máquina. Os homens afastam da gente o domínio desses robôs, mas eu sei fazer costura, manipular uma máquina de costura. Fora isso, a única máquina que conheço é a que meu pé faz movimentar, o pedal da bicicleta, a frágil corrente que me impulsiona a viver.

Eu me senti máquina um dia. Tive a exata noção de que minhas entranhas funcionavam como um estranho mecanismo, quando gerei outro ser. Ninguém resolveu a máquina que sou, porque senti muita dor, o sangue escorria grosso, não sabia lidar com aquilo, queria pedalar meu corpo, fechar minhas chagas, como fecho um tecido, como remendo roupas.

Desci o beco esquálido, estranho beco. Ouvi voz de homem, grossa e insistente. Esquisito. Ele me parou, me perguntou se tinha filhos, respondi que sim “duas”. Não senti minha existência nessa resposta, porque daí em diante, a eternidade me levou da forma mais violenta. Músculos me arrebataram, senti meu corpo voar no chão, vozes desconexas, minha carne recebe o furo de um objeto que vai cortando, engraçado minha carne parecia linho grosso, não seda, que se rasga tão poeticamente. Meu corpo não é mais meu, deixei-o para turba, uma multidão, que queria minha morte.

Uma dor. Eu já senti dores intensas, mas essa é tão louca e inimaginável, que me anestesia. Vejo pernas, sandálias, sinto um chute, outro puxão, ouço um xingamento e mais outro chute, dói meu esqueleto, não sabia que meus ossos poderiam oferecer resistência, sempre acreditei que tinha um osso mole. Umas 20 pessoas participam de uma brutalidade, inclusive crianças. Não resisto, mas meu corpo oferece uma estranha resistência sólida, uma menina grita para não me baterem: “não façam isso com ela”! "Ela é uma puta assassina, grita outro". Lembrei da prostituta da bíblia, das mulheres de antigamente que eram queimadas, pensei que meu cabelo pintado teria despertado a fúria de uma inquisição popular, açoitada na rua como uma bruxa.

Às vezes tudo para, acho que a multidão me deixou. Mas logo, alguém me condena, chutes pisadas nas costas. Cometi o crime de viver essa vida de mulher. Não sou uma mãe perfeita, ninguém é, estou sendo açoitada por isso? Estou pagando pelos pecados e os deslizes de todas as mães. As mães que abandonam seus filhos, as que nem conseguem olha-los, quando lhes nascem. As mães que rejeitam, as que odeiam, as mães que chantageiam e também as que amam demais. Não fiz isso, não sou isso, mas sou a culpada por todas. Aceito o meu fim, aceito a culpa louca desse mundo de homens, e sinto o peso de uma pedra sobre minha cabeça. Sou arrastada com uma corda no braço, minha morte é uma imolação para as mães, elas serão perdoadas, elas serão perdoadas.... Perdoadas por amarem e odiarem, por não serem as mães das canções do dia das mães, por serem humanas, demasiadamente... Enfim, eles me deixam sob o cansaço da própria fúria, que também tem sua exaustão. Meu corpo é jogado de uma ponte e de longe vejo seguindo a linha de um rio imundo, meu sangue misturado com um líquido, fétido e escuro.... morro, morro, morro...

terça-feira, 29 de abril de 2014

Ser ou não ser macaco?

Marcos Aurélio Souza*

O movimento intitulado “somos todos macacos”, adotado por algumas celebridades brasileiras, em resposta a atitude racista de torcedores, que vivem atirando bananas nos jogadores brasileiros, é, no mínimo, intrigante.

A primeira vista, parece (só parece) que realmente há uma comoção, uma insatisfação, um levante geral da nação brasileira, representada por sua grande mídia, contra o racismo, ou contra a provocação de ódio aos negros nos campos de futebol. Isso seria uma novidade, uma ação louvável, num país como nosso, onde crimes raciais acontecem todos os dias, sem ninguém fazer nada.

O fato novo (pois o racismo no futebol é tão antigo quanto o próprio futebol) do slogan “somos todos macacos”, evocado por artistas e jogadores, que exibem suas fotos nas redes sociais abocanhando bananas, pode assumir duas conotações.

A primeira chama a atenção para a velha teoria da origem humana de Darwim, da evolução dos símios, que resultou no ser humano. Essa conotação é ineficiente para combater o racismo (se essa  foi a intenção), porque ninguém até hoje deixou de ser racista acreditando numa teoria de quase cento e cinquenta anos. Aliás, o racismo biológico do século XIX, teve por base a própria teoria de Darwim, ou pelo menos, distorções dela. Por outro lado, ninguém vai deixar de ser preconceituoso, mesmo sabendo que, segundo alguns geneticistas, compartilhamos mais de 90% dos nossos genes com os chimpanzés. E essa porcentagem não é maior ou menor em populações humanas específicas, como a população africana ou afrodescendente. De fato, brancos e negros, “somos todos quase macacos”, a frase exata seria essa.

A segunda conotação é interessante, porque parece uma resposta de brasileiros famosos, descontentes por terem seus "amigos jogadores", compatriotas, vilipendiados pelo racismo. Ao reivindicarem para si o mesmo status aviltante de macaco, esses brasileiros famosos chamariam para briga, pelo menos para um briga discursiva, aqueles torcedores que atormentam nossos jogadores, quando esses estão em gramados internacionais (sem esquecer que fatos semelhantes, envolvendo banana e macaco, também vêm acontecendo em estádios nacionais).

A atitude parece de confronto, é como que os famosos dissessem “mexeu com nossos jogadores, mexeu conosco também”. Ou parece que toda a nação brasileira, midiatizada, expressasse um “não venham para cá, gringos, com esse comportamento, que não vamos tolerar isso aqui na nossa copa!”. Tal atitude, se não for aproveitada estrategicamente, daqui por diante, no contexto pré-copa, com políticas antirracistas e com intervenção de celebridades menos acéfalas do que as que vem se expressando nesse cenário,  revelar-se-á menos uma preocupação com o preconceito racial do que com interesses de autopromoção, ou da indústria futebolística.

É bom lembrar que a campanha “somos todos macacos” começou com um video de Neymar e seu filho, comendo banana, video produzido por uma agência publicitária que ganha muito com a imagem do jogador. A inspiração foi a atitude feliz, porque inesperada e provocativa, de outro jogador brasileiro do Barcelona, Daniel, que comeu a banana que lhe foi atirada. A campanha atiçou, naturalmente, o gosto pela vitrine das celebridades de plantão, que, no geral não reagem a episódios de racismo, quando não, vivem protagonizando elas mesmas episódios como esses. Exibido por essas pessoas, o slogan “somos todos macacos”,  tem um significado tão frívolo, frágil descontextualizado e preconceituoso,  quanto o de uma Marcha da Família com Deus.

Onde estava esse levante midiático quando o ator negro Vinícius Romão foi preso, indevidamente, ao ser confundido com um ladrão, ou quando a atriz Thalma de Freitas levou um baculejo violento da polícia no Leblon, ou quando Faustão chamou o cabelo de uma das suas poucas dançarinas negras de “vassoura de bruxa”? Quando Lázaro Ramos e Camila Pitanga, que iriam fazer o sorteio da copa, foram preteridos de última hora por um casal loiro global? Não houve nem haverá levante midiático, artístico ou publicitário diante das repressões injustificadas aos rolezinhos, dos genocídios de jovens negros nas periferias de nossas grandes cidades e do repúdio aos médicos cubanos, por parte da população brasileira, pelo fato de grande parte deles serem negros.

Quando nossas celebridades olharem para a população brasileira e em vez de admitirem que “somos todos macacos”, perceberem que realmente “somos quase todos negros”, e que esse fator, como negação, tem implicações históricas cruéis, teremos talvez um momento reflexivo mais interessante. Esse não será um momento qualquer da República das Bananas (nomenclatura utilizada para designar países latino-americanos, submissos a um país rico, e governado por corruptos) que agora é evocada por essa bananada midiática e pelo desastre de uma copa rica num país pobre. O momento será a de um país que se preocupa, realmente, com seus problemas mais cruciais.

A questão ser ou não ser macaco, comer ou não comer banana, deixará assim de ser um problema ou uma questão, porque seu significado será modificado pelos nossos discursos e atitudes, como fez Daniel, espontaneamente, comendo a banana, ou como pensavam os modernistas, no início do século XX, quando produziam uma estética artisticamente revolucionária, “macaqueando”, provocativamente, os países desenvolvidos.




sábado, 22 de fevereiro de 2014

Nosso futebol racista ou os macacos de si mesmos



Não vejo futebol. Nem me interessa quem está encabeçando a tabela do campeonato brasileiro ou quem vai ser rebaixado à segunda divisão no próximo ano. É tudo muito espetaculoso e irracional: salários astronômicos, cartola enchendo o bolso de dinheiro, torcidas criminosas, sempre prontas para violência gratuita. A meta de todo macho viril, do viking selvagem pós-moderno, é ser torcedor de um desses times grandes, fazer parte de uma torcida organizada, tirar a camisa para enfrentar o arquirrival e cair no cassetete da polícia. Essa meta coincide, exatamente, com o limiar do lado mais perverso e ignóbil da espécie humana. 

Ser torcedor, assim, é negar o ser homem. O torcedor violento é a negação do saldo bom que a humanidade construiu, após vários estágios de bestialidade, ao longo da história. O torcedor é o homem que apagou a história e desceu novamente ao status de fera, devorando a si mesmo. Adaptando, aqui, o filósofo do século XVII, Thomas Hobbes, para entender o torcedor violento: o homem é o lobo do homem, mas, nesse caso, num sentido autofágico. O torcedor fanático e violento é alguém que, por ignorância, devorou o ser-homem-possível e se transformou na mais abjeta criatura da terra. É uma espécie de suicida, que matou sua parte mais vital e sensível, a do bom senso e da autocrítica, preferindo viver, num estádio de futebol, dos restos escangalhados de si, do puro instinto atávico de animal raivoso.

Por isso, sempre desconfiei que futebol combinava direito com racismo. Não estou falando do futebol esporte: do balé, da ginga, da brincadeira e do drible em competições honestas sem os anseios do estrelato, o que, normalmente, a gente só vê nas peladas de rua. Estou falando das disputas nacionais, dos eventos de rivalidade entre clubes milionários ou entre as nações de copas do mundo infames. Esses eventos, sim, facilmente descambam na barbárie. A FIFA (Federação Internacional de Futebol), pusilânime, também percebeu, após fatos recorrentes, que futebol e racismo eram uma combinação perfeita, investiu numa campanha antirracista, contudo vem fazendo muito pouco, ou quase nada, com o público irracional que continua jogando bananas no campo para jogadores negros ou remedando macacos, quando africanos e afro-brasileiros estão com a bola.

No Brasil, um dos livros que melhor tenta registrar nosso ethos nacional racista, uma obra comparada à de grandes pensadores sociais brasileiros (a exemplo de Casa Grande e Senzala de Gilberto Freire e Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda), intitula-se O negro no futebol brasileiro de 1947. Mário Filho, seu autor, irmão do escritor Nélson Rodrigues, descreve em linguagem leve e tom de conversa sobre a estreita relação entre a questão racial brasileira e o advento do esporte mais conhecido do mundo. Sobre o Fluminense, agremiação esportiva de origem popular que, inevitavelmente, começou a admitir negros em suas fileiras, Mário explorou a alcunha “pó-de-arroz”, utilizada até os dias de hoje para denominar o time carioca. Essa alcunha está ligada a um dos primeiros jogadores mulatos da história do clube:

“Tinha vindo do América... Enquanto esteve no América, jogando no segundo time, quase ninguém reparou que ele era mulato... No Fluminense, foi para o primeiro time, ficou logo em exposição... Era o momento que Carlos Alberto mais temia. Preparava-se para ele, por isso mesmo, cuidadosamente, enchendo a cara de pó-de-arroz, ficando quase cinzento. Não podia enganar ninguém, chamava até mais atenção. O cabelo de escadinha ficava mais escadinha, emoldurando o rosto cinzento de tanto pó-de-arroz... Quando o Fluminense ia jogar com o América, a torcida de Campos Sales caía em cima de Carlos Alberto – 'Pó-de-arroz! Pó-de-arroz'.. E o 'Pó-de arroz' acabou passando dele para o Fluminense”. (FILHO, 2003, p. 60)

Muitos jogadores brasileiros, negros ou mulatos, continuam, ainda hoje, metaforicamente, passando pó-de-arroz na cara, só que lá fora, na Europa ou na Ásia. Roberto Carlos, Ronaldinho (“Fenômeno”), Cafu, Aldair e outros já foram vítimas de racismo em clubes do exterior, mas preferiram ficar calados, ou, as vezes, omitir o preconceito sofrido, decorrente de sua visível negritude (nunca assumida). Ronaldinho já se disse branco (deixava seu cabelo bem curto, provavelmente, para esconder a textura crespa) e Roberto Carlos (também careca), em recente  entrevista à emissora mais racista do mundo, a Rede Globo, ao falar dos piores momentos de sua carreira, não mencionou (ou, talvez, não lhes foi permitido mencionar) o episódio em que recebeu de presente bananas de torcedores russos, numa partida em que jogava pelo time daquele país, o Anzhi Makhachkala.

Atualmente, as torcidas brasileiras, apesar de selvagens, raramente chegam ao limite cego e burro de cometer tal violência simbólica, já que a maioria dos jogadores daqui são não-brancos ou negros. A injúria racial, depois de tanto tempo, é crime. O discurso racista agora, mediado por essa realidade, é que jogador tem que ser bom, independente de ser negro ou branco, mas essa ressalva desnecessária configura o próprio discurso.

Um destes técnicos brasileiros arrogantes, não me lembro quem, declarou que jogador devia ser macho e não ligar para provocações, quando o perguntaram sobre a injúria racial sofrida por um jogador negro. Em outras palavras, ele disse, com uma naturalidade absurda, o que já afirmei com indignação, futebol é barbárie. Outros exemplos demonstram ainda a zona de guerra do campo de futebol. Vamos a alguns. O atacante gremista Maxi López foi acusado pelo volante Elicarlos, do Cruzeiro, de ter feito declarações racistas na partida entre os dois pela semifinal da Copa Libertadores, há alguns anos. Semelhante episódio ocorreu com o atacante Grafite, então no São Paulo, e o zagueiro argentino Leandro Desábato do Quilmes, durante a Copa Libertadores (salvo engano, em 2004) quando o segundo chamou o primeiro de macaco, recebendo ordem de prisão em pleno Morumbi. 

A mãe solteira negra, de uma dessas periferias brasileiras, está certa quando reprime seu filho, dizendo que ele deve largar a bola e pegar no livro para estudar. Consciente ou inconscientemente, sabe que seu filho estará mais sujeito aos racismos do mundo, nesse território minado, que é o campo de futebol. Não precisa nem ouvir a piada de um humorista babaca que comparou o jogador brasileiro com King Kong: “na cidade grande atrás de uma loira”. Dispensa também o comentário malicioso, recorrente, de gente ignorante, de que o preconceito racial vem do próprio negro. O preconceito é pernicioso, justamente pelo reprodução do mesmo pela vítima e, sobretudo, por comentários como esses.

O caso Tinga, jogador gaúcho, nascido num dos bairros mais negros de Porto Alegre, o Restinga e marcado em sua alcunha com as duas últimas sílabas desse lugar, mostra que o racismo está espalhado pelo mundo, e persiste no Brasil. Jogando pelo Cruzeiro contra o Real Garcilaso, no Peru, ele foi recentemente alvo de uma torcida que imitava o som e os gestos de macaco toda vez que tocava na bola. O jogador revelou, em entrevista, que sofreu esse mesmo tipo de racismo dos torcedores do Juventude, quando jogava pelo Inter nas Libertadores.

Os torcedores peruanos, na maioria pobres e de origem indígena, tão discriminada pela minoria branca e rica do Peru, repetiam a violência de torcedores de estádios europeus e brasileiros, uma violência contra a própria humanidade e, principalmente, contra eles próprios. 

Sem pó-de-arroz na cara, Tinga declarou que trocaria seus títulos por um mundo de igualdade racial. Nem o futebol, nem a glória valem a pena no mundo do futebol racista. Os torcedores peruanos não imitavam os macacos nem, muito menos, os negros futebolistas, como o jogador Tinga. Os torcedores eram aquilo que faziam, e, no ato se revelavam: feras abomináveis, macacos de si mesmos.