terça-feira, 29 de abril de 2014

Ser ou não ser macaco?

Marcos Aurélio Souza*

O movimento intitulado “somos todos macacos”, adotado por algumas celebridades brasileiras, em resposta a atitude racista de torcedores, que vivem atirando bananas nos jogadores brasileiros, é, no mínimo, intrigante.

A primeira vista, parece (só parece) que realmente há uma comoção, uma insatisfação, um levante geral da nação brasileira, representada por sua grande mídia, contra o racismo, ou contra a provocação de ódio aos negros nos campos de futebol. Isso seria uma novidade, uma ação louvável, num país como nosso, onde crimes raciais acontecem todos os dias, sem ninguém fazer nada.

O fato novo (pois o racismo no futebol é tão antigo quanto o próprio futebol) do slogan “somos todos macacos”, evocado por artistas e jogadores, que exibem suas fotos nas redes sociais abocanhando bananas, pode assumir duas conotações.

A primeira chama a atenção para a velha teoria da origem humana de Darwim, da evolução dos símios, que resultou no ser humano. Essa conotação é ineficiente para combater o racismo (se essa  foi a intenção), porque ninguém até hoje deixou de ser racista acreditando numa teoria de quase cento e cinquenta anos. Aliás, o racismo biológico do século XIX, teve por base a própria teoria de Darwim, ou pelo menos, distorções dela. Por outro lado, ninguém vai deixar de ser preconceituoso, mesmo sabendo que, segundo alguns geneticistas, compartilhamos mais de 90% dos nossos genes com os chimpanzés. E essa porcentagem não é maior ou menor em populações humanas específicas, como a população africana ou afrodescendente. De fato, brancos e negros, “somos todos quase macacos”, a frase exata seria essa.

A segunda conotação é interessante, porque parece uma resposta de brasileiros famosos, descontentes por terem seus "amigos jogadores", compatriotas, vilipendiados pelo racismo. Ao reivindicarem para si o mesmo status aviltante de macaco, esses brasileiros famosos chamariam para briga, pelo menos para um briga discursiva, aqueles torcedores que atormentam nossos jogadores, quando esses estão em gramados internacionais (sem esquecer que fatos semelhantes, envolvendo banana e macaco, também vêm acontecendo em estádios nacionais).

A atitude parece de confronto, é como que os famosos dissessem “mexeu com nossos jogadores, mexeu conosco também”. Ou parece que toda a nação brasileira, midiatizada, expressasse um “não venham para cá, gringos, com esse comportamento, que não vamos tolerar isso aqui na nossa copa!”. Tal atitude, se não for aproveitada estrategicamente, daqui por diante, no contexto pré-copa, com políticas antirracistas e com intervenção de celebridades menos acéfalas do que as que vem se expressando nesse cenário,  revelar-se-á menos uma preocupação com o preconceito racial do que com interesses de autopromoção, ou da indústria futebolística.

É bom lembrar que a campanha “somos todos macacos” começou com um video de Neymar e seu filho, comendo banana, video produzido por uma agência publicitária que ganha muito com a imagem do jogador. A inspiração foi a atitude feliz, porque inesperada e provocativa, de outro jogador brasileiro do Barcelona, Daniel, que comeu a banana que lhe foi atirada. A campanha atiçou, naturalmente, o gosto pela vitrine das celebridades de plantão, que, no geral não reagem a episódios de racismo, quando não, vivem protagonizando elas mesmas episódios como esses. Exibido por essas pessoas, o slogan “somos todos macacos”,  tem um significado tão frívolo, frágil descontextualizado e preconceituoso,  quanto o de uma Marcha da Família com Deus.

Onde estava esse levante midiático quando o ator negro Vinícius Romão foi preso, indevidamente, ao ser confundido com um ladrão, ou quando a atriz Thalma de Freitas levou um baculejo violento da polícia no Leblon, ou quando Faustão chamou o cabelo de uma das suas poucas dançarinas negras de “vassoura de bruxa”? Quando Lázaro Ramos e Camila Pitanga, que iriam fazer o sorteio da copa, foram preteridos de última hora por um casal loiro global? Não houve nem haverá levante midiático, artístico ou publicitário diante das repressões injustificadas aos rolezinhos, dos genocídios de jovens negros nas periferias de nossas grandes cidades e do repúdio aos médicos cubanos, por parte da população brasileira, pelo fato de grande parte deles serem negros.

Quando nossas celebridades olharem para a população brasileira e em vez de admitirem que “somos todos macacos”, perceberem que realmente “somos quase todos negros”, e que esse fator, como negação, tem implicações históricas cruéis, teremos talvez um momento reflexivo mais interessante. Esse não será um momento qualquer da República das Bananas (nomenclatura utilizada para designar países latino-americanos, submissos a um país rico, e governado por corruptos) que agora é evocada por essa bananada midiática e pelo desastre de uma copa rica num país pobre. O momento será a de um país que se preocupa, realmente, com seus problemas mais cruciais.

A questão ser ou não ser macaco, comer ou não comer banana, deixará assim de ser um problema ou uma questão, porque seu significado será modificado pelos nossos discursos e atitudes, como fez Daniel, espontaneamente, comendo a banana, ou como pensavam os modernistas, no início do século XX, quando produziam uma estética artisticamente revolucionária, “macaqueando”, provocativamente, os países desenvolvidos.