quinta-feira, 14 de agosto de 2014

Entre mortos e feridos

Para Luciano e Adriana


Há um discurso grave, moralista e cristão, que transforma todo morto num santo. Tivesse sido ele um benfeitor ou um cínico, eunuco ou garanhão, desse discurso vamos ouvir coisas do tipo: “respeitem a esposa e os filhos de fulano, não brinquem com a morte, ele era uma ótima pessoa, um pai de família”. 

Uma tendência desse discurso é chorar o morto alheio como se fosse o seu próprio morto, principalmente se a pessoa for conhecida, político ou escritor famoso. Há algo meio histriônico, meio teatral, presente nas manifestações de pesar no facebook, pela morte de alguma celebridade. 

No interior da Bahia, as chamadas carpideiras, mulheres muitas vezes sem nenhuma relação emocional com um dito finado, encenam pesar e dor pela morte da forma mais exagerada possível, jogando-se no chão, esperneando, agarrando-se ao caixão do morto, dando um clima grave e espetacular (risível) aos ordinários velórios de uma cidade pacata. Vivem assim, essas mulheres, chorando de velório em velório, pelo simples prazer de chorar, algumas até recebem pequeno soldo por sua atividade performática.

Os carpideiros modernos do facebook não ganham nada por isso, são sisudos, não são performáticos, e vivem pentelhando, monitorando a opinião de quem simplesmente não quer ver o morto numa santidade de morto e não acreditam na máxima comum: gente boa é gente morta. Os carpideiros digitais perdem todo senso crítico e entram numa dessas ladainhas emocionais, que tem lá um fundo existencialista, mas no geral tem a ver com uma espécie de crença cristã da redenção, da remissão dos pecados, da vida eterna. Amém.

Eu entendo isso, em parte. Por outro lado, vejo nessas pessoas o medo do imponderável da morte, dessa carnívora assanhada, como versejou Augusto dos Anjos. A morte desconcerta e fica todo mundo lamurioso depois dela, meio macambúzio, perante a algo que tem tanta e nenhuma explicação. Nesse caso, sentir a morte do outro é sentir a sua própria morte.

Em 1836, a população soteropolitana destruiu o cemitério do Campo Santo, porque uma empresa passou a ter o monopólio dos enterros na cidade, após um contrato espúrio com o governo da cidade que a licenciava nessa atividade por 30 anos. Aquilo foi uma das maiores afrontas municipais à população local que via naquilo uma espécie de controle governamental, financeiro e especulativo, da morte. 

O resultado disso, descrito minunciosamente no livro A morte é uma festa do historiador João José Reis, foi uma quebradeira geral na cidade, a chamada revolta da cemiterada. A população queria que seus mortos continuassem sendo enterrados em torno das diversas igrejas da cidade, seguindo as espetacularizações ritualísticas, de matriz africana e portuguesa, da consagração da morte. Nesse caso, o choro carpideiro despertou a crítica para uma situação social opressiva.

Aspectos da consagração, do medo do imponderável, ainda persiste nas redes sociais do facebook e congêneres, quando a lamúria carpideira se alastra. Mas, também, é possível ler e ouvir (ainda bem) vozes dissonantes que tornam produtiva a morte de alguém, ironizando-a, trazendo o morto para a berlinda vivificante do debate público. 

Num dos episódios do filme Sonhos, de Akira Kurosawa, um belo carnaval zombeteiro e alegre, com crianças e banda, desfila diante da câmera. Depois de passar um caixão fúnebre, percebemos então que estamos diante de um funeral festivo. É possível também beber a morte, e isso também acontece em muitos enterros do interior da Bahia: muita gente vai não para chorar o morto, mas para bebe-lo, falar mal de quem foi para o lado de lá e de quem ficou do lado de cá.

Moral da história: não nos deixemos morrer com os mortos, porque se a morte alheia não nos torna mais felizes, pelo menos não nos tire o poder precioso da crítica.