sábado, 1 de novembro de 2014

Nem saci, nem bruxa. Nem Lampião, nem bandeirante.

Hoje é uma sexta chata, final de outubro. Estou sofrendo com uma ressaca, após receber de todos os lados uma torrente de imagens e discursos que se repetem, numa cantilena angustiante. 

De um lado, uma reivindicação do dia do Saci para substituir o Halloween americano, do outro a evocação da Nação Nordestina, cheia de gibão de couro, oxentes, forró e farinha, como resposta do orgulho nordestino a um discurso contra “o Nordeste, que votou em Dilma para a presidência".

Todos esses discurso e imagens acionam uma centralidade redutora de identidades que não corresponde à realidade complexa em que estamos imersos e (não) nos traduz. 

Não consigo ser Lampião, nem bandeirante, nem saci, nem bruxo. Porque, no fundo, qualquer discurso essencial, fundador de uma ideia ou identidade regional/nacional, é estranho. Tanto o que estabelece o saci como símbolo de uma identidade nacional, opondo-se à bruxa, às fantasias norte-americanas do trick or treat, quanto os que evocam uma natureza nordestina para se opor à xenofobia sudestina, cujo essencialismo é muito perigoso, porque reativo e violento.

Gostei da posição bem pragmática do sociólogo Carlos Alberto Almeida, respondendo, no programa Globo News (aecista e reacionário), a um pedido do Diogo Mainardi, que fizesse uma oposição entre cabeça de paulista e cabeça de cearense para justificar a vitória de Aécio no Sudeste e a vitória de Dilma no Nordeste. O sociólogo afirmou: “O Nordeste cresce muito mais que São Paulo, então as pessoas votaram baseadas no bolso, no interesse próprio, nisso o eleitor nordestino é idêntico ao eleitor paulista”.

Indicadores econômicos explicam um fenômeno, que os coxinhas das redes sociais tentaram justificar como sendo uma diferença racial ou cultural, falta de inteligência dos nordestinos. Atônitos, os babacas da Globo News queriam uma explicação de Lombroso, médico racista do século XIX, que via criminalidade e inferioridade nos crânios das "raças inferiores". Eles tiveram, entretanto, uma resposta fria, que explica, tanto em termos massivos, quanto individuais, o fenômeno eleitoral, seja no Brasil, na Argentina ou na Alemanha. O fator econômico é imperativo.

Mas, retomo a ideia da complexidade humana, que também nunca vai ser resolvida com a dicotomia: nordeste e sudeste. Meu vizinho, negro, baiano e nordestino, como eu, votou em Aécio. Ele andava estressado com a mulher, que vivia uma “pilha” com os afazeres domésticos, desde quando a PEC das domésticas foi, finalmente, implantada. Ficou “inviável”, em sua realidade de classe média, a contratação de uma empregada. A mulher teve que se desdobrar com seu emprego, as atividades de casa e o filho de 4 anos. A relação com o marido, que nunca lavou um prato, desandou,  ficou muito difícil. Então, ele fez coro com os amigos do clube machista de futebol socyte: Culpa da Dilma.

A dona de uma sorveteria na periferia soteropolitana, prima de um amigo meu, votou em Aécio. Mesmo com dois de seus filhos recebendo incentivos federais para cursarem faculdade particular, ficou revoltada com “a vigilância sanitária de Dilma”, que lhe deu enormes prejuízos, quando descobriu irregularidades no seu estabelecimento.

O professor e poeta que gosta de tirar fotos com chapéu Lampião, meu colega de trabalho, votou em Dilma. Ele se julga o gênio da raça, porque faz uns poemas e é membro da Academia Baiana de Letras. Arrogante, já sofreu de parte de seus alunos processos judiciais por assédio moral e também por racismo. Alguns meus próximos soteropolitanos, conhecidos e amigos, dilmistas ou aecistas, são muito estranhos, parecem de outro país.

No Facebook, aecistas do Sudeste e dilmistas do Nordeste, depois de arrefecidas as disputas eleitorais começaram a divulgar o dia do saci em substituição ao halloween. Diziam, esquecendo as trocas de farpas eleitorais, as defesas de muros e os orgulhos regionais: “esse é o nosso símbolo nacional, o que nos unifica, afinal somos todos brasileiros, não norte-americanos”. Viva o dia do Saci.

Buscavam eles uma unidade que não existe entre o lá e o aqui e, nem mesmo, no aqui. Como diz Freud, o familiar também é estranho. Mudaram os símbolos, mas o princípio continuou o mesmo.  E o saci, saído de um buraco esquisito e não conseguindo colocar suas pernas lá e cá, pisou com seu pé de bandeirante africano as nossas diferenças.