Estou
voltando e limpando a poeira do blog. Quero retomar, falando sobre
música e letra de música. Esse tema já estava germinando na minha
cabeça quando escrevi o texto “Perereca pra frente”, e isso já
faz algum tempo. Era uma crônica que falava sobre a mulher
soteropolitana e usava como mote o título de uma música de pagode,
que ficou bem conhecida por aqui (em Salvador e Recôncavo,
principalmente).
O
tema de retorno highlander a esse espaço blog foi motivado
por uma discussão recente com estudantes de Ciencias Sociais da UNEB
e, também, pela recente discussão da lei antibaixaria, cujo
principal alvo de ataque é o chamado “pagode baiano”.
Para
começar vejam a letra dessa musiquinha: “Não sou de briga/
Mas estou com a razão/ Ainda ontem bateram na janela/ Do meu
barracão/ Saltei de banda/ Peguei da navalha e disse/ Pula muleque
abusado/ Deixa de alegria pro meu lado/ Minha nega na
janela/ Diz que está tirando linha/ Êta nega tu é feia/ Que
parece macaquinha/ Olhei pra ela e disse/ Vai já
pra cozinha/ Dei um murro nela/ E joguei ela
dentro da pia/ Quem foi que disse/Que essa nega não
cabia”? Essa letra, cujo título é “Minha nega na janela”,
não é do Psirico nem do conjunto sestroso Black Style ela saiu da
cabeça de Germano Mathias, representante do samba paulistano, que
teve a grande interpretação de Gilberto Gil, no mesmo estilo
sincopado original do compositor, na clássica coletânea “Antologia
Samba-Choro”, insigne da MPB de 1978!
E
que tal essa daqui reproduzida em trechos? “De
tudo que é nego torto/ Do
mangue e do cais do porto/ Ela já foi namorada./O
seu corpo é dos errantes,/Dos
cegos, dos retirantes;/ É de quem não tem mais nada./ Dá-se assim
desde menina/ Na
garagem, na cantina,/ Atrás do tanque, no mato […] Joga
pedra na Geni!/ Joga pedra na Geni!/ Ela é feita pra apanhar!/ Ela é
boa de cuspir!/ Ela dá
pra qualquer um!/ Maldita Geni!”.
Essa é de Chico Buarque, intitulada “Geni e Zepelin”,
pertencente ao seu álbum, outro clássico da MPB, Ópera do
Malandro, do final da década de 70, quando movimentos feministas e
gays estouravam em todos os cantos do mundo.
Mais
letras: Ataulfo Alves em “Mulata Assanhada” e Lamartine Babo em
“O teu cabelo não nega”, presenças obrigatórias na discoteca
dos adoradores da “verdadeira música nacional”. O primeiro
cantava de cá: “Ai, mulata assanhada/ Que passa com graça/
Fazendo pirraça/ Fingindo inocente/ Tirando o sossego da
gente/[…] Se voltasse a escravidão/ Eu pegava a escurinha/ Prendia
no meu coração/E depois a pretoria/ É quem resolvia a questão”.
O outro cantarolava de lá:“O
teu cabelo não nega mulata/ Porque és mulata na cor/ Mas
como a cor não pega mulata/ Mulata eu quero o teu amor”.
A Cor
negra é doença (não contagiosa) para Babo: ele suspira aliviado.
João
Gilberto e Caetano Veloso também gostam de cantar
músicas, que abordam a mulher exótica, negra, feiticeira ou
endiabrada, enlaçando a todos em sua lascívia. Assim diz a canção
“A baiana” na voz enfadonha de João Gilberto: “Não
vou porque não posso resistir a tentação/ Se ela sambar, eu vou
sofrer/Pois esse diabo sambando é mais mulher/
E se eu deixar ela faz o que bem quer/ Não vou, não vou, não vou/
Nem amarrado, porque sei/ Se ela sambar, eu vou sofrer”.
Caetano,
presença confirmada todos os anos na saída do Ilê, adora o Curuzu
no Carnaval. O Curuzu continua pobre, precisando de investimento
público, sem um movimento ou discurso sequer do cantor baiano, que
canta (confesso adorar o suingue dessa música): “Não
me amarra dinheiro não!/ Mas formosura/ Dinheiro não!/A
pele escura/ Dinheiro não!/A carne dura/Dinheiro não!...
Moça preta do Curuzu/ Beleza Pura! Federação/ [...]Quando essa
preta/ Começa a tratar do cabelo/É de se olhar/Toda trama da
trança/Transa do cabelo/ Conchas do mar/Ela manda buscar/Prá botar
no cabelo/Toda minúcia, toda delícia”.
Caetano rico, dinheiro sim, corpos negros,
pobres e "deliciosos", dinheiro não.
A
lista é grande, veja e analise outras letras de figurões da MPB,
das mais atuais às mais antigas. “Morena Boca de Ouro” (outro
melô chato da mulher feiticeira, cantada por João Gilberto), “Lobo
bobo” (quem não gostou do Lobo Mau do Psirico porque viu conotação
pedófila, tem que conhecer essa daqui), “Amélia” ( “a que era
mulher de verdade”, de Ataulfo Alves, já virou clichê do clube do
bolinha, interpretada ainda hoje por grandes nomes da MPB, como
Roberto Carlos), Emília (a “irmã” de Amélia, do compositor
Wilson Batista, intepretada por carnavalescos clássicos como Harolo
Lobo), “Mulher indigesta” (que para Noel Rosa, o patriarca da
MPB, “merece
um tijolo na testa”), "Minha
Namorada" (do Vinícius de Morais inseguro, exigindo de sua
amada-objeto, que só pense nele), “Um homem pra chamar de seu”
(Erasmo Carlos lembrando da “necessidade” feminina de ter um
homem, um cafajeste qualquer).
Mas
deixemos os homens e seus olhares misóginos, machistas, racistas,
libidinosos... “O Negócio é Amar”: essa música, letra de
Carlos Lyra e Dolores Duran, cantada por uma beldade da MPB, Nara
Leão, tem outra intepretação interessante através da parceria
Fafá de Belém e Nelson Gonçalves. Embora a música seja bem
agradável, com várias imagens cotidianas sobre as diversas e
esquisitas formas de amar, a presença de um verso incômodo (e um
verso faz toda diferença na música) não deixa escapar a estrutura
patriarcal e machista em que vivemos, quando enfatiza, em outras
palavras, o amor válido da “mulher maluca, que atura
porrada”. Parece-me que quando uma mulher canta uma música
de teor machista, essa música se transforma em outra, como uma
rasura no texto original. Como se a mulher pudesse tomar a voz
masculina, sobrescrevendo com sua própria voz a intenção original
(eu percebo isso, por exemplo, quando Marina canta “Um homem pra
chamar de seu” de Erasmo Carlos)
Para
ser realmente justo, o DOI-CODI da lei
antibaixaria, que grita e esperneia quando ouve uma música do
Raghatoni, Pagodart, e Parangolé, dizendo
prezar pela imagem e dignidade da mulher, deve fazer primeiro uma
devassa nas músicas de "gente culta”. Sim, gente que se acha
melhor que outras gentes e só ouve música de “bom gosto”, MPB e
bossa nova. Gente, por exemplo, que fica esperando o lançamento de
uma música monótona e lamuriosa de Adriana Calcanhoto - a cantora
parece de outro mundo: pessoas de carne e osso não existem para ela,
parece uma alienígena morrendo de frio, sob o sol escaldante do Rio
de Janeiro.
Para
não ser injusto com a MPB, principalmente com os clássicos, vou
lembrar do velho e bom Cartola. Numa música intitulada “Vou Contar
Tintim por Tintim", ele dá voz a uma mulher, espancada pelo seu
amante. "Eu fui tão maltratada / Foi tanta pancada que ele
me deu / Que estou toda doída / Estou toda ferida / Ninguém me
socorreu / Ninguém lá em casa apareceu / Mas eu vou ao distrito /
Está mais do que visto/ Isto não fica assim / Vou contar
tintim por tintim / Tudo nele eu aturo / Menos tapas e murros / Isto
não é para mim". Resta saber, se o distrito vai
prender o machão. Mas isso já é bem diferente das letras de Chico
Buarque, cuja voz feminina se apresenta sempre frágil, passiva e
impotente.
Boa
noite. Vou descansar um pouco e, para desintoxicar de tanta música
ruim para as mulheres, vou ouvir Tati Quebra Barraco. Numa voz ativa,
invertendo valores patriarcais, misóginos e sexistas de nossa
sociedade, a cantora entoa, corajosamente, um alucinante funk
“Sou feia, mas tô na moda”.
“Eta
lele/ eta lele/ Eu fiquei 3 meses sem quebrar o barraco,/ Sou feia
mas tô na moda,/tô podendo pagar hotel pros homens/ isso que é
mais importante”.