Não vejo futebol. Nem me interessa quem está encabeçando a tabela do campeonato brasileiro ou quem vai ser rebaixado à segunda divisão no próximo ano. É tudo muito espetaculoso e irracional: salários astronômicos, cartola enchendo o bolso de dinheiro, torcidas criminosas, sempre prontas para violência gratuita. A meta de todo macho viril, do viking selvagem pós-moderno, é ser torcedor de um desses times grandes, fazer parte de uma torcida organizada, tirar a camisa para enfrentar o arquirrival e cair no cassetete da polícia. Essa meta coincide, exatamente, com o limiar do lado mais perverso e ignóbil da espécie humana.
Ser torcedor, assim, é negar o ser homem. O torcedor violento é a negação do saldo bom que a humanidade construiu, após vários estágios de bestialidade, ao longo da história. O torcedor é o homem que apagou a história e desceu novamente ao status de fera, devorando a si mesmo. Adaptando, aqui, o filósofo do século XVII, Thomas Hobbes, para entender o torcedor violento: o homem é o lobo do homem, mas, nesse caso, num sentido autofágico. O torcedor fanático e violento é alguém que, por ignorância, devorou o ser-homem-possível e se transformou na mais abjeta criatura da terra. É uma espécie de suicida, que matou sua parte mais vital e sensível, a do bom senso e da autocrítica, preferindo viver, num estádio de futebol, dos restos escangalhados de si, do puro instinto atávico de animal raivoso.
Por isso, sempre desconfiei que futebol combinava direito com racismo. Não estou falando do futebol esporte: do balé, da ginga, da brincadeira e do drible em competições honestas sem os anseios do estrelato, o que, normalmente, a gente só vê nas peladas de rua. Estou falando das disputas nacionais, dos eventos de rivalidade entre clubes milionários ou entre as nações de copas do mundo infames. Esses eventos, sim, facilmente descambam na barbárie. A FIFA (Federação Internacional de Futebol), pusilânime, também percebeu, após fatos recorrentes, que futebol e racismo eram uma combinação perfeita, investiu numa campanha antirracista, contudo vem fazendo muito pouco, ou quase nada, com o público irracional que continua jogando bananas no campo para jogadores negros ou remedando macacos, quando africanos e afro-brasileiros estão com a bola.
No Brasil, um dos livros que melhor tenta registrar nosso ethos nacional racista, uma obra comparada à de grandes pensadores sociais brasileiros (a exemplo de Casa Grande e Senzala de Gilberto Freire e Raízes do Brasil de Sérgio Buarque de Holanda), intitula-se O negro no futebol brasileiro de 1947. Mário Filho, seu autor, irmão do escritor Nélson Rodrigues, descreve em linguagem leve e tom de conversa sobre a estreita relação entre a questão racial brasileira e o advento do esporte mais conhecido do mundo. Sobre o Fluminense, agremiação esportiva de origem popular que, inevitavelmente, começou a admitir negros em suas fileiras, Mário explorou a alcunha “pó-de-arroz”, utilizada até os dias de hoje para denominar o time carioca. Essa alcunha está ligada a um dos primeiros jogadores mulatos da história do clube:
“Tinha vindo do América... Enquanto esteve no América, jogando no segundo time, quase ninguém reparou que ele era mulato... No Fluminense, foi para o primeiro time, ficou logo em exposição... Era o momento que Carlos Alberto mais temia. Preparava-se para ele, por isso mesmo, cuidadosamente, enchendo a cara de pó-de-arroz, ficando quase cinzento. Não podia enganar ninguém, chamava até mais atenção. O cabelo de escadinha ficava mais escadinha, emoldurando o rosto cinzento de tanto pó-de-arroz... Quando o Fluminense ia jogar com o América, a torcida de Campos Sales caía em cima de Carlos Alberto – 'Pó-de-arroz! Pó-de-arroz'.. E o 'Pó-de arroz' acabou passando dele para o Fluminense”. (FILHO, 2003, p. 60)
Muitos jogadores brasileiros, negros ou mulatos, continuam, ainda hoje, metaforicamente, passando pó-de-arroz na cara, só que lá fora, na Europa ou na Ásia. Roberto Carlos, Ronaldinho (“Fenômeno”), Cafu, Aldair e outros já foram vítimas de racismo em clubes do exterior, mas preferiram ficar calados, ou, as vezes, omitir o preconceito sofrido, decorrente de sua visível negritude (nunca assumida). Ronaldinho já se disse branco (deixava seu cabelo bem curto, provavelmente, para esconder a textura crespa) e Roberto Carlos (também careca), em recente entrevista à emissora mais racista do mundo, a Rede Globo, ao falar dos piores momentos de sua carreira, não mencionou (ou, talvez, não lhes foi permitido mencionar) o episódio em que recebeu de presente bananas de torcedores russos, numa partida em que jogava pelo time daquele país, o Anzhi Makhachkala.
Atualmente, as torcidas brasileiras, apesar de selvagens, raramente chegam ao limite cego e burro de cometer tal violência simbólica, já que a maioria dos jogadores daqui são não-brancos ou negros. A injúria racial, depois de tanto tempo, é crime. O discurso racista agora, mediado por essa realidade, é que jogador tem que ser bom, independente de ser negro ou branco, mas essa ressalva desnecessária configura o próprio discurso.
Um destes técnicos brasileiros arrogantes, não me lembro quem, declarou que jogador devia ser macho e não ligar para provocações, quando o perguntaram sobre a injúria racial sofrida por um jogador negro. Em outras palavras, ele disse, com uma naturalidade absurda, o que já afirmei com indignação, futebol é barbárie. Outros exemplos demonstram ainda a zona de guerra do campo de futebol. Vamos a alguns. O atacante gremista Maxi López foi acusado pelo volante Elicarlos, do Cruzeiro, de ter feito declarações racistas na partida entre os dois pela semifinal da Copa Libertadores, há alguns anos. Semelhante episódio ocorreu com o atacante Grafite, então no São Paulo, e o zagueiro argentino Leandro Desábato do Quilmes, durante a Copa Libertadores (salvo engano, em 2004) quando o segundo chamou o primeiro de macaco, recebendo ordem de prisão em pleno Morumbi.
A mãe solteira negra, de uma dessas periferias brasileiras, está certa quando reprime seu filho, dizendo que ele deve largar a bola e pegar no livro para estudar. Consciente ou inconscientemente, sabe que seu filho estará mais sujeito aos racismos do mundo, nesse território minado, que é o campo de futebol. Não precisa nem ouvir a piada de um humorista babaca que comparou o jogador brasileiro com King Kong: “na cidade grande atrás de uma loira”. Dispensa também o comentário malicioso, recorrente, de gente ignorante, de que o preconceito racial vem do próprio negro. O preconceito é pernicioso, justamente pelo reprodução do mesmo pela vítima e, sobretudo, por comentários como esses.
O caso Tinga, jogador gaúcho, nascido num dos bairros mais negros de Porto Alegre, o Restinga e marcado em sua alcunha com as duas últimas sílabas desse lugar, mostra que o racismo está espalhado pelo mundo, e persiste no Brasil. Jogando pelo Cruzeiro contra o Real Garcilaso, no Peru, ele foi recentemente alvo de uma torcida que imitava o som e os gestos de macaco toda vez que tocava na bola. O jogador revelou, em entrevista, que sofreu esse mesmo tipo de racismo dos torcedores do Juventude, quando jogava pelo Inter nas Libertadores.
Os torcedores peruanos, na maioria pobres e de origem indígena, tão discriminada pela minoria branca e rica do Peru, repetiam a violência de torcedores de estádios europeus e brasileiros, uma violência contra a própria humanidade e, principalmente, contra eles próprios.
Sem pó-de-arroz na cara, Tinga declarou que trocaria seus títulos por um mundo de igualdade racial. Nem o futebol, nem a glória valem a pena no mundo do futebol racista. Os torcedores peruanos não imitavam os macacos nem, muito menos, os negros futebolistas, como o jogador Tinga. Os torcedores eram aquilo que faziam, e, no ato se revelavam: feras abomináveis, macacos de si mesmos.