“Change begin with a whisper.” (capa do Filme The Help)
Fátima e Jucira, magras, ambas 36 anos. A primeira médica pediatra e a segunda funcionária pública municipal da área contábil. A primeira casada, com um filho e a segunda separada, sem filho, mas com dois mil reais a mais no final do mês.
Moravam no mesmo condomínio e se odiavam intimamente. Desejavam a vida da outra. O marido e o status de uma. O dinheiro sobrando e a solteirice da outra. Toda vez que se encontravam no supermercado do bairro, punham-se a discutir sobre suas empregadas domésticas, como duas sinhás coloniais, cuidando da criadagem.
E, assim, juntas, pareciam duas comparsas, terríveis e implacáveis como se Schwarzenegger e Stallone, vestindo tailleur, estivessem atuando num mesmo filme. Máquinas mortíferas. A contadora iniciou uma conversa no ápice discursivo de um blockbuster que era suas míseras vidas de classe média.
- Ficou com a Lucidalva?
- Nada, aquela só chegava fedendo, não tinha higiene, era meio porca.
- Já a Maria deixou o arroz queimar novamente.
- Aff… Você ainda continua com aquela maluca?
- Sim. O marido violento e o filho estão desempregados, se a gente não ajuda esse povo, quem vai ajudar? Está dormindo na dependência lá em casa por uns dias, porque apanhou do dito cujo e está com medo de, numa dessas, perder sua vida.
A médica deu um sorriso, mas havia, por dentro, despeito da pele morena e da “consciência social” da contadora. Ela fazia sua parte também. Todos os dias postava no facebook fotos dos meninos da África, dos tufões, das inundações e das misérias que acometiam todo povo pobre, sem ajuda do governo. Não tinha a menor noção de geopolítica, nem sabia exatamente onde era o Afeganistão (no curso de medicina não se aprende isso), mas sabia colar links na sua timeline.
A medicina lhe dera a lógica e, mesmo sendo uma profissional medíocre, era tudo o que precisava para sua existência. Por isso podia ser tão contundente na arrumação dos pratos, na organização das coisas na geladeira e dos panos de chão. Desenvolvera um método de cores de panos para os diversos usos da casa. Quase toda semana, a mesma ladainha e o marido saía mais cedo para não presenciar a tortura chinesa, aplicadas com prazer sistemático às neófitas do serviço doméstico em sua casa. “Amarelo é para o banheiro social, o verde para a suíte, branco para a sala e para os quartos”. Acentuava bem nos “esses” para dar alguma lição de seu português para a serviçal. Exigia limpeza severa, mas não permitia que empregadas usassem o chuveiro do banheiro social.
Orgulhava-se de vestir jaleco e entrar no seu consultório. Não participava de congressos, nem lia artigos científicos, mas se achava sumidade em sua área, quando olhava no próprio espelho, aquele rosto branco maquiado e a farda médica, sem um único vinco. Dra. Maria de Fátima Fiúza, bordado de verde no bolso. Casar com um homem de sobrenome estrangeiro (ninguém sabe, ao certo, se holandês ou italiano) foi seu melhor trunfo. Podia tirar o Oliveira de solteira e ostentar esse empréstimo matrimonial (esperava que por toda vida), conferindo-lhe mais legitimidade no círculo da medicina brasileira.
Aquela sua tarefa diária de consultas, com escapadas, vez em quando, para fofocar com colegas sobre outras ex colegas da faculdade, resumia absolutamente sua vida. Afora isso, mantinha uma relação amorosa secreta com o pai de um paciente (sexo selvagem) e ia toda semana para o psicólogo discutir o desgaste do casamento e seus dramas da infância, em relação a sua mãe. Achava-se o suprassumo da vitória pessoal e do caráter, orgulhava-se de ter uma família, por isso não podia deixar que uma mulher solteira, funcionária pública, dominasse o tópico de uma conversa.
- E você paga salário e assina carteira?
- Não.
- Olha lá, ela pode te colocar na justiça, não conhece a PEC da doméstica? Fique de olho!
- Ela é de confiança, deixo ela sozinha em minha casa. O único problema é o fogão.
A médica impunha o discurso da legalidade, mas nunca assinou carteira de ninguém. Respondia por dois processos trabalhistas e todo ano uma secretária nova no consultório. Em casa, a estratégia era ficar com as meninas pelos dois meses legais de experiência, despedi-las sob uma desculpa qualquer, e contratar outra. Não se podia ter empregadas por toda a vida, sob a velha alegação de que já faziam parte da família.
E a cantilena das coisas arrumadas, da lógica dos lugares, seu sentimento de onipotência perante a ninharia do espaço doméstico, único lugar em que podia ter poder de rainha absolutista. O marido cada vez mais taciturno e o filho mais rebelde.
- Uma pessoa de confiança, em casa, é difícil hoje em dia.
- Por falar nisso, deixa eu voltar para minha casa, a Maria ficou em casa cozinhando, daqui a pouco chego com o apartamento incendiado.
- Deus nos livre, vizinha. Tchau.
- Tchau.
Conversar sobre empregadas domésticas era o momento de convergência de lutas. Duas guerreiras em sua batalha diária. Duas samurais, incólumes em suas tarefas de patroas. Confidências de classe, destilar veneno no supermercado para se sentirem pertencentes a uma mesma comunidade. Essa família universal que arrogava o título de gente de bem.
Saindo disso, vidas completamente diferentes. A contadora não se adaptou ao convivío com um marido. Da casa para o trabalho e desse para casa. Sonhava em viver numa mansão com empregados, o marido, caliente e fiel, bancando tudo. Imaginava ainda um casal de filhos e babás 24 horas.
Chegou a viver com um cinquentão, antigo amigo do facebook, que morava sozinho num casarão de chácara, apenas com um caseiro vivendo nos fundos da propriedade, num casebre de fazer dó. Aquela foi a experiência mais próxima que tivera do casamento ideal com um homem rico. Casamento esse, aconselhado pela mãe, negra e pobre, que lhe sustentou por muito tempo como bancária, e a quem culpava sua infelicidade atual de solteira endinheirada. “Se não for assim, não case minha filha”. Hoje a mãe morta e os ideais da filha estudante, militante de esquerda, bissexual, também. Era filha única e nem mesmo do pai tinha notícias. Um italiano que voltou para o país natal, quando ela ainda era criança.
Jucira Sarno, prenome de pobre e sobrenome de aventureiro europeu, passara num concurso público e morava num condomínio fechado.
O casamento com o cinquentão durou dois anos. O homem perdeu a propriedade para o caseiro, que ganhou um vultoso processo trabalhista. Ela não suportou a humilhação, descasou e foi morar sozinha. O único lado positivo é que podia continuar com uma vida sexual mais livre. No fundo mesmo de suas incertezas, se existe um fundo para as coisas, queria casamento e filhos.
A conversa com a médica trouxe a tona a história do seu casamento e da sya mãe, que sempre aparecia moribunda em seus sonhos. Saiu do supermercado, sentindo-se angustiada, ligou para uma amiga amante e combinaram de tomar uma cerveja.
Chegou em casa tarde, um pouco bêbada. Casa cheirosa e limpíssima. As únicas luzes acesas era do abajur da sala e da pequena TV, na dependência, recôndito da grande cozinha. Maria assistia, sentada num colchão, a um programa humorístico e dava risadas bem tímidas de um blackface, imitando empregada doméstica. Ela entrou na dependência, sentiu-se carente e quis ficar ao lado da empregada, pegou um banco e se fingiu interessada no programa. Maria sorriu diante dessa aproximação tão inusitada. Uma lágrima saiu dos olhos da contadora ao sentir naquele ambiente um cheiro de pobreza. Lembrou de sua mãe.
- Dona Jucira, está chorando?
- Nada não, Maria. Você não está com sono?
- Não consigo dormir. A senhora não tem um daqueles remédios que faz a gente apagar?
- Tenho. Eu também não durmo há muito tempo. Espera um pouco.
A patroa sorriu, levantou-se, foi ao armário da sua suíte e voltou. Na mão, dois comprimidos de rivotril. Tomou secamente um e entregou o outro para Maria.