Prof. Dr. Marcos Aurélio Souza
O cenário recente da política nacional é aterrador. Um presidente ilegítimo aprovando “reformas” antidemocráticas, a toque de caixa, com a aquiescência de um Congresso podre. Expectativa e expectativa. Aguardamos um efetivo “fora Temer”, mas ele vai ficando e ficando, ao sabor do nosso ethos messiânico, sempre e à espera de uma salvação, o que, não raramente, descamba na acomodação e no conformismo geral.
Na administração pública, o conformismo alimenta a malversação, que encontra um motivo para justificar inaptidão e incompetência: o motivo é sempre “estamos em crise”. “Não fazemos nada, não construímos nada, por causa dela”. Crise é um doce na boca de quem não quer fazer, não sabe ou deixa de fazer, o que é esperado pela comunidade.
No debate das eleições para a reitoria da UNEB, realizado em Jacobina, José Bites, que se candidata à reeleição, ao ser perguntado sobre inexecução e devolução de mais de R$ 20 milhões aos cofres públicos (dados do TCE – Tribunal de Contas do Estado), deu uma resposta enviesada e cheia de reticências. Deixar de executar R$ 20 milhões numa época de estabilidade política econômica é, no mínimo, indecente. O que dizer, então, numa época de crise, quando se reclama de falta de verba, de enxugamento e cortes financeiros?
Segundo o reitor Bites a devolução de R$ 13 desses mais de R$ 20 milhões “se dava por conta de que o projeto não batia com as metas definidas posteriormente”, “e que o projeto era uma coisa e o que se discutia com a comunidade era outra coisa”. É necessário dizer que projeto era esse, que metas são essas. Que discussão? Que comunidade? Tudo fica na penumbra. Ninguém sabe o porquê. Nem dos R$ 7 milhões restantes, não mencionados em sua reposta.
Para a comunidade um dinheiro como esse não utilizado para atender suas demandas é, sobretudo, a esperança de dias melhores morrendo na praia. Para todos nós, que pagamos impostos para que a universidade cumpra seu papel social, é a malversação, a falta de disposição e articulação políticas para que o erário tenha seu destino certo, justo e eficiente.
A UNEB se afundou na apatia política para seus funcionários, professores e técnicos também. Na greve docente de 2015, a ADUNEB sofria com o governismo impassível da reitoria no processo de negociação, que já estava muito difícil. Emitiu uma nota denunciando que o reitor “tenta dificultar as atividades do comando de greve, blinda o governo do estado e se distancia dos interesses e dificuldades da comunidade acadêmica da UNEB”.
Em junho desse ano, O SINTEST, sindicato dos técnicos da UNEB, foi surpreendido com um Edital para a contratação de 58 técnicos de Nível Superior, em caráter temporário (REDA), chancelado pela reitoria. Com essa ação, a reitoria desrespeitava uma série de reivindicações da categoria, como a ampliação de carga horária de 30 para 40 horas, pagamento de progressões e implementação de promoções funcionais.
A contratação de REDA impactava muito mais no orçamento universitário do que no atendimento aos direitos dos funcionários efetivos e poderá impedir alterações de carga horária, implementação em folha das progressões e abertura do processo de promoção funcional, demandadas pelos Servidores Técnico-administrativos. Novamente, ficamos sem entender como pode a universidade reclamar de crise se ela gasta mais indevidamente, sobretudo, em detrimento dos trabalhadores.
Estudantes do campus I reclamam da falta de um restaurante universitário (RU) há anos. A atual administração deixou a obra às moscas, parada há meses, material de construção enferrujando e destruído. Enquanto em Feira de Santana, estudantes da UEFS reivindicam refeição gratuita no RU, construído há mais de uma década, no qual gastam R$ 1,00 por refeição, estudantes da UNEB ainda se encontram sem um restaurante universitário, que passou do plano de construção para o abandono completo.
Diversos cursos denunciam a falta de infraestrutura. No ano passado, estudantes de medicina realizaram uma caminhada para reclamar da falta de professores e exigiam condições mínimas para o funcionamento do curso.
Nada ou pouco mudou, desde então. A evasão estudantil é alta, devido, em grande parte, à ausência de uma política de permanência estudantil efetiva. Existe a crise, que é sobretudo política, envolvendo a esfera federal, mas tudo fica pior quando um reitor, por não ter competência e força política, não trabalha para a melhoria das condições da Universidade. Principalmente, quando usa a tônica da crise para mascarar o que se traduz como incompetência administrativa.
Numa eventual reeleição, esperamos que esses problemas sejam corrigidos. Críticas têm, sobretudo, poder construtivo.
Em direção à Universidade que queremos
A UNEB, que se orgulha de sua história inclusiva, de sua multicampia que atende diversas regiões do estado, que mais coloca professores no mercado de trabalho, pode vir à bancarrota, se escolhermos continuar no caminho político trilhado, nesses últimos anos.
Passamos por momentos emblemáticos, tivemos a primeira reitora negra de uma universidade brasileira, Ivete Sacramento, em 1998, e as cotas foram implantadas na UNEB, sob sua coragem política, em 2002. A UERJ e a UNB também estavam encampando as cotas, concomitantemente com a UNEB, mas a universidade baiana foi ainda mais ousada. Implementou-as, em 2002, com legislação interna, estabelecendo critérios do sistema. Foi a partir desse modelo que a presidenta Dilma assinou em 2012 a Lei de Cotas. Hoje, graças a isso, podemos considerar a UNEB como a mais negra do país.
2017. Estamos vivendo um momento em que somos convocados a assegurar o que ganhamos em termos políticos e representativos, pois estamos sob risco constante de perder tudo. Primeiro, porque o discurso conservador, dogmático e liberal é contra a Universidade pública, principalmente para os mais pobres e historicamente excluídos. Segundo, porque são homens brancos, misóginos, fanáticos religiosos que estão investindo contra nossas lutas históricas, fortalecendo o racismo e o machismo, que sustentam seus privilégios.
A reeleição seria louvável e até necessária se pudéssemos não apenas ter garantidos os direitos de professores, técnicos e estudantes, mas também a defesa de nossa identidade, nosso caráter multicampi, nossa responsabilidade como pioneira das cotas étnico-raciais. Muitos campi da UNEB penam por maior assistência da administração central, sem sede própria e instalações precárias. Professores do interior ficam sob constante risco de perder suas passagens de deslocamento para suas residências, já que ainda não ficou estabelecida uma política que lhes assegure definitivamente esse direito. A UNEB ficou praticamente muda diante do massacre de 12 jovens negros nas cercanias do campus I, em 2015. Não escreveu uma nota de repúdio à fala infeliz do governador que louvou a atitude dos policiais comparando-os a artilheiros. Em vez disso, departamentos da UNEB estampam foto do governador “goleador”. Um governismo impassível é tudo que a UNEB não merece. É preciso que a Universidade exerça seu papel crítico a favor dos excluídos socialmente, senão ela será um braço deficiente e aparelhado do Estado.
A mudança: “nossa cara”, “diversidade e participação”
O quadro da gestão atual é desanimador, a reeleição pode ser desastrosa. Precisamos conhecer a proposta de outros candidatos.
São eles Carla Liane com seu vice Joabson Fiqueiredo e Valdélio Silva com sua vice Márcia Guena. Os dois reitoráveis estavam politicamente envolvidos com a gestão atual, mas romperam posteriormente para lançar suas candidaturas próprias. Carla era vice-reitora. Valdélio apoiava inicialmente a reeleição de Bites, tendo lançado sua candidatura própria após ruptura inesperada e mais ou menos mal explicada. Rupturas, ao contrário do que alguns pensam, são os melhores sinais da democracia. Não há rupturas em sistemas totalitários. Carla e Valdélio acertaram nesse quesito, principalmente, diante do quadro desanimador da gestão que está findando.
Carla justificou em carta sua candidatura e distanciamento da atual gestão. Admitiu que tomou a decisão de não continuidade na chapa de reeleição por não concordar com a falta de diálogo como “o veículo fundamental para a tomada de decisão envolvendo as representações que compõem a dinâmica da vida universitária”. Ainda se referiu, entre outras coisas, ao “combate de toda e qualquer forma de constrangimento e violências, sejam elas ideológicas, de gênero, raça, sexualidade ou geracional, práticas estas que não condizem com a identidade e a missão institucional da UNEB”. Efetivamente, ela foi isolada da gestão, o que geralmente acontece com a presença feminina no poder, quando um homem assume a liderança e usa a imagem da mulher, sobretudo da mulher negra, para ter inserção social.
Valdélio não explicitou sua ruptura com Bites, assim como fez Carla. Quando a UNEB saiu num dos últimos lugares em um ranking de uma revista britânica das melhores universidades da América Latina, ele juntamente com outros professores fez coro com a assessoria de comunicação e jornais parabenizando a UNEB, inclusive, sugerindo o fato de ter sido a melhor da Bahia. O ranking humilhante classificava a UNEB e não apresentava outras universidades baianas, pelo simples motivo de que elas não enviaram informações sobre si para a revista. E isso foi utilizado para promoção da candidatura de Bites.
Entretanto, a proposta de “diversidade e participação” da chapa de Valdélio, sua militância negra e na discussão de gênero, já se distancia do personalismo da chapa de Bites, que estampa um B enorme do seu nome como logomarca.
O lançamento da chapa com slogan “a UNEB com a nossa cara”, de Carla Liane, tenta atender demandas de representação, racial e de gênero, que ao longo da história de nossa instituição foram fundamentais para sua consolidação como instituição pública da educação superior na Bahia.
Carla Liane, professora e cientista social, doutora com pesquisa sobre trabalho informal, em sua biografia eleitoral, enfatiza sua atuação na área jurídica, em defesa do direito dos afro-descendentes, coordenando projetos da Associação Nacional dos Advogados Afro-descendentes (ANAAD), organização fundada por seu pai. Filiada à União Brasileira de Mulheres (UBM) e à União de Negros pela Igualdade (UNEGRO), também possui inserção em movimentos feministas. Recebeu quatro homenagens – a Comenda Maria Quitéria, o Prêmio Alice Botas, o prêmio Lélia Gonzalez e a condecoração Luiza Mahin pela sua atuação de destaque como educadora e militante das causas sociais. A professora passou por diversos setores da gestão, extensão e pesquisa, na UNEB; além de vice-reitora, também foi diretora do Departamento de Educação, campus I. Sua parceria com o professor de Literatura Joabson Figueiredo é positiva, tendo em vista a inserção produtiva, acadêmica e social de seu vice no interior da Bahia.
A candidatura de Valdélio também acumula relevante capital político e simbólico. Valdélio Santos Silva é cientista social, doutor em estudos étnicos e africanos e foi responsável pelo projeto que instituiu o sistema de cotas étnico-raciais na UNEB em 2002. Foi líder estudantil na década de 70, enfrentou a ditadura, e nos anos de 1990 participou ativamente da Coordenação Nacional do Movimento Negro Unificado (MNU). Coordena projeto de pesquisa sobre cultura e religiosidade afro-brasileiras. Atualmente é diretor do Departamento de Educação, campus I. O professor recebeu, em 2012, da Câmara Municipal de Salvador, a medalha Zumbi.
Com essa biografia seria muito importante uma articulação das duas candidaturas para a construção de uma UNEB diferente. O slogan da chapa “Diversidade e participação” além da presença de Márcia Guena, militante e pesquisadora do movimento quilombola, afinam-se com a proposta da professora Carla Liane. No entanto, a aproximação inicial de Valdélio com a chapa de Bites, e sua consequente oposição, desde o início, à candidatura de Carla-Joabson torna o cenário das eleições da UNEB embaralhado. Precisamos definir nosso caminho na direção do que propõem essas chapas, tendo em vista o descalabro do racismo em nosso Estado. Duas grandes lideranças negras com capacidade e experiência para gerir a universidade.
A população negra é a que mais sofre com esse quadro de pobreza e também de violência policial, tanto na Grande Salvador e também em toda a Bahia. A justificativa descabida dos desinformados ou maldosos é que se contamos com 80% da população negra é natural que o maior número de mortos esteja entre os afro-descendentes. Se essa lógica fosse pelo menos razoável, negras e negros baianos deveriam constar nos indicadores positivos, ocupariam a maioria dos cargos públicos, não estariam, em sua grande maioria, na informalidade e ganhariam pelo menos um salário-mínimo. A situação da mulher e da mulher negra é ainda mais desoladora. Segundo a Secretaria de Segurança Pública do estado (SSP-BA), de janeiro até o dia 15 de maio de 2017, 15.751 casos de violência contra a mulher foram registrados na Bahia. São mais de 100 casos por dia. Helem Moreira, jovem negra, estudante de Pedagogia da UNEB e feminista, foi recentemente assassinada pelo seu companheiro, por motivo de ciúme. Nesse tipo de violência, não raramente o homem sai impune e, às vezes, até vitimizado.
Enquanto isso, negros, negras e mulheres, em geral, da UNEB, minorias historicamente excluídas que querem uma universidade com a cara delas, uma universidade da diversidade e da participação, encontram-se divididos entre duas chapas.
A oposição efetiva de Carla Liane, sua ruptura corajosa, sua luta por liderança e representação é um sinal de que a UNEB pode adquirir novamente sua força acadêmica, sua marca incontestável e indelével, de uma universidade popular e inclusiva. Fazendo com que, longos 12 anos depois, uma mulher volte a ocupar o espaço de reitora. Essa é a UNEB que queremos.