terça-feira, 30 de outubro de 2018

Dormindo com um Bolsominion



Ontem fizemos amor e foi muito bom. Ele acordou com um brilho diferente nos olhos, raramente isso acontece, somente quando seu time vence. Ele está confiante. Um momento raro, eu gosto disso. Só que não. Parece ter esperança, mas não sei exatamente em que, ou em quem.

Estou com medo, durmo com ele todos os dias, numa vida de liberdade vigiada. Ele falou para mim que ama nossa família, que vai cuidar dos nossos filhos e vai conseguir um emprego decente, “botar um rango melhor na nossa mesa”.  E uma esperança sombria: declarou voto em Bolsonaro. Tremi.

Há algum tempo está estranho comigo. Um jeito grosseiro de me abraçar, batendo em minha bunda. Há anos quando um dia me chamou de patroa, dei-lhe um esporro, no meio de uma reunião, em casa com colegas da faculdade: “eu não te pago, não sou sua patroa”.

Mas, ontem, ao chegar do futebol da praia trouxe peixe fresco e o amigo do trabalho, o Juraci. Veio conversando alto, para eu ouvir: “Minha patroa que vai fazer o peixe, Jura, eu não sei nem assar um ovo”. Tremi novamente.

Estava na cozinha limpando a pia. Ele encostou suado e repetiu o gesto infame, um tapa na bunda. Subiu-me um sentimento de raiva desesperada.

- Puta que pariu, Afonso, para de me bater, eu não gosto disso. E não vou fazer esse peixe, já almocei. Você se vira.

E mais baixo, sussurrei-lhe no ouvido:

- Você traz alguém para almoçar sem nem me avisar, e logo o Juraci?

Pegou no meu cabelo (nunca havia feito isso), num ímpeto grosseiro com a mão de areia e o bafo de cerveja:

- Merda, faça esse peixe, para de reclamar, dou duro no trabalho e você só reclama, trouxe o peixe, faça essa porra, não me faça passar vergonha...

Jogou o peixe no lavatório, me empurrou contra a pia e saiu da cozinha para conversar com o Juraci, como se nada tivesse acontecido.

 - Jura, diga aí, se o Bahia não é pauleira mesmo, venceu o Paraná... Vamo “bebemorar” nessa porra, o peixe já vai sair...

A cozinha me pareceu um inferno, uma sala de tortura. Enxerguei facas imensas, instrumentos perfurantes, panelas pesadas e escuras, minhas mãos seguravam a bucha ensaboada. Tinha veneno em tudo. O sal grosso, o inseticida, água sanitária e o sabão em pó.

O que aconteceu com aquele homem, alguém autorizava sua soberba repentina. Ele comentava o cenário político e nem esperava minhas resposta, interrompia: “Você fez faculdade do PT, sua opinião não conta”. Ele me considerava uma militante fora de moda. “O mundo agora é o outro e o PT já era”. “As feminazis já eram. Bandidagem e o mimimi dos direitos humanos também”. “O capitão vem aí”. “Bandido bom é bandido morto”. Blá, blá, blá.

Concentro-me na tarefa. É muito fácil preparar um peixe. Sou formada em química. A primeira da minha família com diploma universitário. A cozinha é um laboratório. Juntei 300 sementes de maçã, para uma experiência na universidade com os alunos. Produzir cianeto, em seu composto exato para produção de plástico. A amigdalina extraída da semente da maçã se converte nesse produto altamente tóxico através de uma manipulação caseira muito simples, desenvolvida por mim. Soldados alemães, capturados em guerra, ingeriam pequenas doses do cianeto para cometer suicídio.

O atum parecia sorri, até que a faca lhe decepa a cabeça. Corte preciso no bucho, vísceras retiradas, reentrâncias na carne escura em que se pode espalhar uma substância qualquer como tempero. O sabor suave da maçã sintetizada. Atum adocicado. Depois o alho, o tomilho, batatas, brocólis cenouras recheadas de betacaroteno e monocrotofos.

Ele me fez passar vergonha semana passada. Tive vergonha dele. Não quis que concluísse minha conversa, entre amigos, sobre o risco dos agrotóxicos. Repetiu desdenhando, no alto de uma sabedoria que nem completou o ginásio. “É vem você com esse blá blá blá ecologista, o capitão vem aí, vai acabar com MST e transformar nosso território numa potência agrícola”. Não adiantou argumentar que o mercado europeu está cada vez mais exigente em relação aos nossos produtos, da necessidade do selo de orgânicos. Ele arrotou bazófia e todo mundo riu.

Eu ganho três vezes mais do que ele, sou doutora em Química, professora universitária. Casei com uma cavalgadura, que agora está confiante no futuro do país.

O peixe cheira e invade a cozinha. Cheiro assassino. Os homens sentem o prazer de uma cozinha eficiente. Eles trazem a caça e eu preparo o alimento, manufaturado por minhas mãos ágeis.

Sobre a mesa, o atum na assadeira, aguçando as papilas gustativas dos machos, em postas com formatos indecentes. Eles me olham com prazer. Falar de futebol, do peixe, do capitão, da boa cozinha, do cheiro bom. O vinho derramado em golfadas sonoras nas taças. O homem a quem jurei amor ergue-se e faz um brinde: “Ao capitão”. Eu sorrio discretamente e baixo a taça, o brinde é deles somente. Eles sabem minha posição. Sorvo o vinho de uma só vez até o último gole.

A rapidez do alimento ingerido, as poucas espinhas separadas. O meu prazer em ver o almoço, inesperado, concluso com prazer. Juraci está suando, não se sente bem, diz que precisa ir para casa. Deve ser o calor. Eles se abraçam e eu suspiro aliviada com fim momentâneo daquela cumplicidade masculina, estranha.

Arrota, me abraça, faz um carinho no meu cabelo, pede desculpa e me chama para descansar um pouco na cama, as crianças estão na casa da avó. O resto do domingo só nosso. Eu vou com ele. Deita como um porco e adormece em minutos.  Fico acordada, olhando aquele ser inerte que tanto amei e tanto me deu prazer. Agora o silêncio. No delírio último do sono, uma frase meio bêbada meio sonho: “Agora é a vez do capitão”.

sexta-feira, 1 de junho de 2018

APL - Academia Preta de Letras




Tendo em vista um movimento de corrente a favor da eleição da escritora Conceição Evaristo para uma vaga na ABL, Academia Brasileira de Letras, que pode também ser chamada Academia Branca de Letras, proponho a criação de uma outra Academia, equânime no número de homens e mulheres e que reconheça a produção intelectual, literária e política de negros e negras brasileiras.

A ABL, essa sinhá de 120 anos, salvo raríssimas exceções como a de Machado de Assis e José do Patrocínio, apenas inseriu gente branca ou gente que seguiu a política da casa grande, ligada às oligarquias e famílias escravocratas do país. Por não considerar tipos como José Sarney, Marco Maciel, Josué Montello, Oliveira Vianna, Silvio Romero, Getúlio Vargas, dignos representantes da produção social e intelectual brasileira (a academia é acéfala, politiqueira, racista e misógina) proponho a criação da:

Academia Preta de Letras

Abaixo, nossas patronesses e patronos. Os 40 nomes estão dispostos em ordem alfabética. São 20 homens e 20 mulheres que sintetizam muito bem uma vigorosa produção intelectual e política do nosso país.


1. Abdias do Nascimento

2. Afonso Henriques de Lima Barreto

3. Alberto Guerreiro Ramos

4. André Rebouças

5. Antonieta de Barros

6. Antonio Gonçalves Teixeira e Sousa

7. Aqualtune

8. Carolina de Jesus

9. Clovis Moura

10. Dandara

11. Edson Carneiro

12. Esperança Garcia

13. Eva Maria do Bonsucesso

14. Francisco de Paula Brito

15. Ganga Zumba

16. Hilária Batista de Almeida (Tia Ciata)

17. João Cândido Felisberto

18. João da Cruz e Souza

19. Joaquim Maria Machado de Assis

20. Joel Rufino dos Santos

21. José Carlos do Patrocínio

22. Laudelina de Campos Melo

23. Lélia Gonzáles

24. Luisa Mahin

25. Luiza Helena de Bairros

26. Manuel Raimundo Querino

27. Maria Beatriz Nascimento

28. Maria Escolástica da Conceição Nazaré (Mãe Menininha do Gantois)

29. Maria Felipa de Oliveira

30. Maria Firmina dos Reis

31. Maria Isaura Bruno

32. Marielle Francisco da Silva

33. Mauro Mateus dos Santos (Sabotage)

34. Milton Almeida dos Santos

35. Pedro Militão KilKerry

36. Pulchéria Maria da Conceição 

37. Teodoro Fernandes Sampaio

38. Theresa de Benguela

39. Yvonne Lara da Costa

40. Zumbi dos Palmares

terça-feira, 30 de janeiro de 2018

O DILEMA DO INTELECTUAL NEGRO

WEST, Cornel. O dilema do intelectual negro. In: WEST, Cornel. The Cornel West: reader. Nova York: Basic Civitas Books, 1999, p. 302-315 [Tradução e notas de Braulino Pereira de Santana,Guacira Cavalcante e Marcos Aurélio Souza].



O DILEMA DO INTELECTUAL NEGRO

Cornel West

Este ensaio, escrito em 1985, é uma transcrição mais ampla, de um artigo controverso que publiquei. Tem sido reeditado muitas vezes em variados lugares, especialmente por uma geração mais jovem de intelectuais de todas as matizes. Sua popularidade reflete uma crise profunda de vocação entre intelectuais negros. “Black women intellectuals” de bell hooks - em nosso livro Breaking Bread (1991) - é uma crítica devastadora a este artigo. Recomendo que as pessoas leiam esses dois trabalhos juntos.
 
As peculiaridades da estrutura social americana, e a posição da classe intelectual dentro dela,
fazem do papel funcional do negro intelectual um caso especial. O negro intelectual necessita lidar
intimamente com a estrutura de poder branco, e seu aparato cultural, e com as realidades no
interior do mundo negro de uma só vez e ao mesmo tempo. Mas, para que seja bem sucedido nesse
papel, ele tem de estar ciente de maneira aguda da natureza da dinâmica social americana e como
essa dinâmica monitora os ingredientes de estratificações de classe da sociedade americana.
Consequentemente, o papel funcional do intelectual negro exige dele não poder estar separado
absolutamente nem do mundo branco nem do mundo negro.
Harold Cruse .The Crisis of the negro intellectual.


Tornando-se um intelectual negro

A escolha por se tornar um intelectual negro é um ato de marginalidade auto-imposta, assim como garante-lhe um status periférico dentro e para a comunidade negra. A busca pelo letramento é necessariamente um tema fundamental da história afro-americana e um impulso básico da comunidade negra. Para os negros, porém, assim como para muitos americanos, os usos do letramento são geralmente percebidos mais como benefícios pecuniários substantivos, do que os usos da escrita, da arte e do ensino. As razões pelas quais muitos negros escolhem tornar-se intelectuais sérios são diversas. Em muitos casos, porém, essas razões podem ser traçadas como tendo uma raiz em comum. Uma conversão, tipo experiência com um professor muito influente; ou
seus próprios pares, que o convencem a se dedicar a uma vida de atividades em leitura e escrita; ou a conversão para propósitos de prazer individual, riqueza pessoal, ou melhoria política do povo negro (e com freqüência para outros oprimidos).

A forma como alguém se torna um intelectual negro é altamente problemática. Isso acontece porque os caminhos tradicionais trilhados para se tornar intelectual na sociedade americana, somente há muito pouco têm sido abertos – mas permanecem ainda difíceis. As avenidas principais são a academia e as subculturas letradas: a arte, a cultura e a política. Antes de os estudantes de pós- graduação negros serem aceitos pelas faculdades e universidades brancas de elite, no final dos anos 60, instituições negras seletas serviam como estímulo inicial para o potencial dos intelectuais negros. Mas, com toda honestidade, havia relativamente mais e melhores intelectuais negros antes do que agora. Depois de uma instrução decente numa faculdade negra, onde a auto-estima e auto- confiança eram constituídas, intelectuais negros brilhantes, que se matriculavam em instituições brancas de ponta, eram treinados para serem acadêmicos liberais simpáticos, muitas vezes de estatura renomada. Figuras estelares como W. E. B. Du Bois, E. Franklin Frazier e Jonh Hope Franklin foram produtos desse sistema . Para aqueles intelectuais negros que perdiam oportunidades nessas instituições por razões financeiras ou pessoais, restavam, então, as atividades das subculturas letradas – especialmente em grandes centros urbanos – como escritores, pintores, músicos e políticos, como melhoria educacional não formal. Grandes personalidades, tais como Richard Wright, Ralph Ellisson, James Baldwin foram produtos desse processo.

Ironicamente, a academia e as subculturas letradas contemporâneas apresentam mais obstáculos para jovens negros intelectuais hoje do que há décadas atrás. Isso acontece por três razões básicas. Primeira: as atitudes de acadêmicos brancos na academia diferem daquelas dos seus pares do passado. É muito mais difícil para estudantes negros, especialmente estudantes da graduação, ser levados a sério como intelectuais e acadêmicos em potencial. Contribuem para isso, o ethos administrativo de nossas universidades e faculdades (em que menos tempo é gasto com os estudantes) e as percepções vulgares (racistas), estimuladas pelos programas de ação afirmativa que
contaminam as relações entre estudantes negros e professores brancos.

Segunda: as subculturas letradas estão menos abertas agora para os negros do que estavam há três ou quatro décadas atrás. Isso acontece não porque jornais de vanguarda ou grupos de esquerda são mais racistas hoje, mas, sobretudo, por causa das saídas culturais e políticas radicais, legado do movimento black power; o conflito israelo-palestino e a invisibilidade da África no discurso político americano criaram limites rígidos de demarcação e de distância entre intelectuais negros e brancos. Não é preciso dizer, a presença negra em jornais liberais de maior circulação como New York Review of Books e New York Times Book Reviews é negligente – ou quase não existe. E muitos periódicos de esquerda, tais como Dissent, Socialist Review, The nation e Telos ou publicações acadêmicas de vanguarda, como Diacritics, Salmagundi, Partisan Review e Raritan não são muito melhores. Somente Monthly Review, Boundary 2 e Social Text realizam persistentes esforços em cobrir os assuntos da comunidade negra ou em ter nelas, negros contribuindo de maneira regular. A questão aqui não é meramente apontar a negligência desses jornais (embora isso possa ser feito), mas, sobretudo, tentar focalizar o separatismo racial desses modelos de publicação e as práticas da vida intelectual americana, que são características do abismo entre intelectuais negros e brancos.

Intelectuais negros e a comunidade negra

A falta de infra-estruturas negras para a atividade intelectual resulta em parte da inabilidade dos intelectuais negros em angariar respeito e apoio da comunidade negra – especialmente da comunidade negra de classe média. Além do sentido anti-intelectual da sociedade americana, há uma profunda desconfiança e uma suspeita da comunidade negra em relação aos intelectuais negros.Essa desconfiança e essa suspeita provêm não simplesmente de uma disposição arrogante e soberbados intelectuais em relação às pessoas comuns, mas, mais importante, da recusa generalizada dos intelectuais negros em permanecer de alguma forma visíveis e originalmente ligados à vida culturalafro-americana. As relativas altas taxas de casamentos inter-raciais, o abandono das instituições negras e as preocupações dos produtos intelectuais euro-americanos são frequentemente percebidos pela comunidade negra como esforços intencionais para escapar do estigma negativo da negritude ou como sintomas de auto-rejeição. E o impacto imediato mínimo da atividade intelectual negra sobre a comunidade negra e a sociedade americana consolida percepções comuns da impotência e até mesmo da inutilidade intelectual dos negros. À boa moda americana, a comunidade negra louva esses intelectuais negros que se desdobram em atividades políticas, artísticas e culturais; a atividade intelectual é vista como não possuindo virtudes intrínsecas nem como possibilidade de refúgio e emancipação - mas unicamente como ganho político de curto prazo e status social.

Esta percepção truncada da atividade intelectual é amplamente sustentada pelos próprios intelectuais negros. Dados os constrangimentos da imobilidade social para os negros e as pressões por status e ascendência entre seus pares de classe média, muitos intelectuais procuram principalmente ganho material e prestígio intelectual. Já que esses intelectuais são membros de uma classe média negra, ansiosa por reconhecimento e com fome de status, suas pendências são entendíveis e, por extensão, justificadas, já que muitos intelectuais estão à procura de reconhecimento, poder, status, e, o mais das vezes, riqueza. Para os intelectuais negros essa busca exige deles imersão, volta para si mesmo, ao direcioná-los para uma cultura, e uma sociedade, que degrada e desvaloriza a comunidade negra de onde eles provêm. E, colocando isso de maneira crua, muitos intelectuais negros tendem a cair dentro de dois campos criados por essa situação desagradável: os “bem-sucedidos”, distantes da (e geralmente condescendente com a) comunidade negra e os “mal-sucedidos”, arrogantes dentro do mundo intelectual branco. Ambos os campos, porém, permanecem marginais para a comunidade negra – pendendo entre dois mundos com pouca ou nenhuma base infra-estrutural negra. Entretanto, o intelectual negro “bem-sucedido” capitula, frequentemente de modo acrítico, os paradigmas predominantes e os programas de pesquisa da academia burguesa branca, e o intelectual negro “mal-sucedido” permanece encapsulado dentro dos discursos paroquiais da vida intelectual afro-americana. As alternativas ao pseudo-cosmopolitismo promíscuo e ao provincianismo tendencioso e catártico tomam conta da vida dos intelectuais negros. E a comunidade negra visualiza ambas as alternativas com desprezo e desdém, e com boa razão. Nenhuma dessas alternativas tem tido impacto positivo na comunidade negra. Grandes intelectuais negros, de W. E. B. Du Bois e St Clair Drake a Ralph Ellison e Toni Morrison têm se esquivado de ambas alternativas.

Essa situação tem resultado num maior obstáculo confrontando intelectuais negros: a inabilidade em transmitir e sustentar a exigência de mecanismos institucionais para a persistência de uma tradição intelectual clara, o racismo da sociedade americana, a relativa falta de apoio da comunidade negra e, por isso, o status oscilante dos intelectuais, têm evitado a criação de uma rica herança de trocas, diálogos e intercursos intelectuais. Tem havido grandes avanços para intelectuais negros, mas tais avanços não tomam o lugar da tradição.

Eu sugeriria que há duas tradições de intelectuais orgânicos na vida americana: a tradição da pregação cristã negra e a tradição musical negra performática. Ambas essas tradições, embora indubitavelmente relacionadas à vida intelectual, são de natureza oral, improvisada e histriônica. Elas têm raízes na vida negra e possibilitam precisamente que as formas literárias de atividade intelectual negra careçam de: matrizes institucionais durante muito tempo, e espaciais, dentro das quais há regras de procedimentos aceitas, critérios para julgamentos, critérios para performances avaliativas, modelos de conquistas passadas e emulações presentes e uma sucessão de conhecimento, assim como uma acumulação de realizações soberbas. A riqueza, a diversidade, e a vitalidade da pregação negra e da música negra compartilham fortes contrastes com escassez, até mesmo com a pobreza, da produção intelectual negra letrada. Não há, simplesmente, intelectuais negros que conheçam a fundo habilidades extensivas aos avanços conseguidos por Louis Armstrong, Charlie Parker ou Rev. Manuel Scott – simplesmente como não há intelectuais negros letrados hoje em dia, como Miles Davis, Sarah Vaughan ou Rev. Gardner Taylor. Isso não existe não porque tem havido ou não tem havido intelectuais negros de primeira ordem, mas, antes de tudo, porque sem canais fortes para sustentar as tradições e as grandes conquistas, fica impossível.

E, pra ser honesto, a América negra tem ainda que produzir um intelectual letrado e poderoso, com exceção de Tonni Morrison. Há, de fato, alguns soberbos - Du Bois, Frazier, Ellison, Baldwin, Hurston - e muitos outros bons. Mas nenhum pode se comparar aos grandes pregadores negros, especialmente os músicos.

O que é mais perturbador sobre a atividade intelectual negra letrada é que, como ela envolveu, bem devagar, a tradição cristã negra e interagiu mais intimamente com os estilos e formas euro-americanos seculares, parece que com isso, no final do século XX, a maturação pudesse ter acontecido. Como estamos nos referindo aos últimos anos deste século, a atividade intelectual negra letrada tem declinado tanto em quantidade como em qualidade, e como eu notei logo antes, isso acontece primeiramente por causa da relativa grande integração negra dentro da América capitalista pós-industrial, com suas universidades burocratizadas, de elite, faculdades “meia-boca” insensíveis, escolas secundárias decadentes que pouco têm a ver e pouco confiam no potencial dos estudantes negros como intelectuais de fato. Não é preciso dizer, a situação difícil do intelectual negro é inseparável daquela da comunidade negra – especialmente da comunidade negra de classe média – na sociedade americana. E somente uma transformação fundamental da sociedade americana pode possibilitar uma mudança de situação da comunidade negra e do intelectual negro. Não obstante o meu próprio ceticismo cristão quanto aos sistemas totalizantes para a mudança, disciplinado pelos meus profundos sentimentos socialistas, quanto a uma democracia radical e a arranjos culturais e socioeconômicos libertários, eu prossigo dizendo que é preciso focar questões mais amplas sobre formas, e questões mais específicas, ao acentuar a quantidade e a qualidade da atividade intelectual negra letrada nos EUA. Esse foco pode tomar a forma de um esboço em quatro modelos para a atividade intelectual negra que pretende promover a cristalização de infra-estruturas para a atividade intelectual. 

O modelo burguês: o intelectual negro como humanista

Para os intelectuais negros, o modelo burguês de atividade intelectual é problemático. Por um lado a herança racista – aspectos dos efeitos de exclusão e repressão das instituições acadêmicas brancas e das bolsas de estudos humanísticas – coloca os intelectuais negros na defensiva: há sempre a necessidade de afirmar e defender a humanidade do povo negro incluindo sua habilidade e capacidade para raciocinar logicamente, pensar coerentemente e escrever lucidamente. O peso dessa fronteira, inescapável para estudantes negros na academia branca, tem sempre determinado o conteúdo e o caráter da atividade intelectual negra. De fato, a vida intelectual negra permanece muito preocupada com tal defensiva, com os intelectuais negros bem sucedidos sempre orgulhosos, por ser aprovados pelos brancos e aqueles não bem sucedidos, geralmente desprezados pela rejeição branca. Isso diz respeito especialmente de maneira aguda à primeira geração de intelectuais negros aceita como professores e acadêmicos dentro de universidade e faculdades da elite branca, fenômeno amplo pós-1968. Somente com a publicação de memórias íntimas desses intelectuais negros e de seus estudantes teremos narrativas absorventes de como essa defensiva minava por dentro a sua atividade intelectual e a sua criatividade dentro dos contextos acadêmicos brancos.

Apesar dessas batalhas ainda terem sido pessoalmente dolorosas, eles têm lutado, dado o meio racista da vida acadêmica intelectual americana. Essas batalhas continuarão, mas com menos conseqüências negativas para a geração jovem por causa das lutas empreendidas pelos primeiros desbravadores negros.

Por outro lado, o estado de sítio que violenta a comunidade negra requer dos intelectuais negros uma dimensão prática de seu trabalho intelectual. O prestígio e o status, tanto quanto habilidades e técnicas fornecidas pela academia burguesa branca, resultaram num atrativo para que a tarefa estivesse a seu alcance e na ênfase na dimensão prática abraçada por muitos intelectuais negros, descuidada da sua persuasão ideológica – muito mais do que o estereótipo do intelectual americano pragmático. Isso acontece não simplesmente por causa dos estilos de vida e da busca pelo poder ou das disposições orientadas para o status de muitos intelectuais negros, mas por causa do seu relativo pequeno número, que os força a desempenhar múltiplos papéis, em face da comunidade negra além de intensificar sua necessidade por auto-afirmação – a tentativa de justificar para eles mesmos que dadas tais oportunidades únicas e privilégios, eles estão passando seu tempo como podem – que sempre resultam em interesses ativistas e pragmáticos. 

A chave do modelo burguês é a legitimação e a titulação acadêmica. Sem certificados próprios, grau e posição, o modelo burguês perde a razão de ser. A influência e o atrativo do modelo burguês sustentam o sistema acadêmico americano; os intelectuais negros ainda acreditam na efetividade do modelo burguês: somente se eles possuírem titulação e legitimidade suficientes, isso dará acesso para seletivas redes e contatos que podem facilitar o impacto negro nas políticas públicas. Isso parece ter sido o objetivo-alvo da primeira geração de intelectuais negros treinados pelas instituições brancas de elite (embora não se permitisse a esses intelectuais ensinarem lá), dados seus interesses predominantes nas ciências sociais. O problema básico do modelo burguês é que ele é existencial e intelectualmente ridicularizado por intelectuais negros. É existencialmente desacreditado por não gerar somente ansiedades defensivas por parte de intelectuais negros, como também serve para que eles prosperem. 

A necessidade do topo na hierarquia e o racismo profundamente arraigado funcionam através de bolsas humanísticas burguesas, que não podem oferecer aos intelectuais nem ao seu próprio ethos os recortes conceituais, por direcioná-los a uma postura defensiva. E os fardos da inferioridade intelectual nunca podem ser colocados no terreno do oponente – por tentar fazer somente intensificar as ansiedades de um lado. Por conseguinte, o próprio terreno deve ser visualizado como parte e parcela de uma forma antiquada de vida empobrecida, colocada nos termos do discurso contemporâneo. O modelo burguês limita o intelectual naquilo que é propenso a adotar paradigmas que prevaleçam predominantemente acríticos na academia burguesa, por causa das pressões das tarefas práticas e dos tratamentos diferenciados. Todos os intelectuais passam de alguma forma por um estágio de treinamento, no qual eles aprendem à língua e o estilo das autoridades, mas são sempre vistos como talentosos marginalizados, podendo ser excessivamente encorajados, ou enganosamente desencorajados, a examinar paradigmas cuidadosamente. Julgados marginais pelas autoridades, esse meio ambiente hostil resulta na supressão de suas análises críticas e limita o uso de suas habilidades de uma forma considerada legítima e prática.

Apesar de suas limitações, o modelo burguês é inescapável para muitos intelectuais negros. Por causa dos discursos pedantes e iluminados sobre a nação, que se dão em instituições acadêmicas brancas e por causa de muitos intelectuais significativos que ensinam nesses lugares. Muitas das universidades e faculdades de elite permanecem ainda como escolas de alto poder educacional, aprendizado e treinamento, principalmente, devido a amplas pesquisas de tradições civis que proporciona o tempo de ócio e atmosfera necessária para sustentar o empenho de intelectuais sérios. Por outro lado, há alguns intelectuais negros autodidatas sérios, que sempre têm um escopo que impressiona, mas lhe faltam chão e profundidade. Os intelectuais negros precisam ser legitimados pela academia burguesa (ou por seus pares negros).

A titulação e a legitimação negra podem proporcionar uma posição segura na vida intelectual americana, e infra-estruturas negras para a atividade intelectual podem ser criadas. Hoje em dia, há uma pequena, mas significativa, presença negra dentro das organizações acadêmicas burguesas brancas, e essa presença está apta a produzir jornais e pequenos periódicos. O passo seguinte é por institucionalizar amplamente a presença de intelectuais negros, como a sociedade de filósofos negros de Nova Iorque tem feito, ao publicar jornais amparados nessa disciplina (cruciais para as carreiras de professores promissores), ainda que relevantes para outras disciplinas. É necessário ser notado que uma infra-estrutura para atividade intelectual negra precisa atrair personalidades de qualquer matiz ou cor. A crítica literária negra e especialmente os psicólogos negros estão a frente dos outros intelectuais negros no que diz respeito a jornais tais como Black American Literature Forum, College Language Association e o Journal of Black Psychology.

A legitimação e o lugar acadêmico negro também podem resultar no controle negro sobre uma porção ou participação significativa dentro de infra-estruturas brancas mais amplas para a atividade intelectual. Isso ainda não ocorre em grande escala. É necessária mais representação negra nos editoriais de amplos jornais significativos, como a presença do intelectual negro também deve ser permitida. Esse processo é mais lento e tem menos visibilidade, dada a hegemonia ainda do modelo burguês, ele precisa ser perseguido por aqueles que são inclinados a isso.

O modelo burguês é, de alguma maneira, fundamental e definitivamente mais parte do problema do que da solução em relação aos intelectuais negros. Já que vivemos de alguma forma nossas vidas diárias e paulatinamente dentro desse sistema, todos nós que fazemos crítica ao modelo burguês precisamos tentar transformá-lo de alguma forma de dentro da academia burguesa branca – para intelectuais negros aliados a intelectuais progressistas não negros isso não significa criar e aprimorar infra-estruturas para atividades intelectuais negras.

O modelo marxista: o intelectual negro como revolucionário

Entre muitos intelectuais negros há uma reação radical às limitações severas do modelo burguês (e da sociedade capitalista) – ao adotar, a saber, o modelo marxista. A adoção desse modelo, certamente, satisfaz necessidades básicas da inteligência negra: a necessidade por prestígio social, por engajamento político e envolvimento organizacional. O modelo marxista também proporciona adentrar as subculturas intelectuais xenofóbicas, disponíveis contra os intelectuais negros. Esse modelo privilegia a atividade dos intelectuais negros e promove seu papel profético. Como Harold Cruse pontuou, tal prerrogativa é altamente circunscrita, e raramente acentua a dimensão teórica da atividade intelectual negra. Em resumo, o marxismo, privilegiado pelos intelectuais negros, cheira a condescendência, que confina os papéis proféticos dos negros a somente porta-vozes e organizadores, e raramente para aqueles que se permitem essas funções, como pensadores criativos que autorizam atenção crítica séria. Não é acidental que um relativo e amplo número de intelectuais negros, atraídos pelo marxismo do final dos anos 60, ainda não produziram uma grande teoria marxista negra. Somente Black Reconstruction de W. E. B. Du Bois (1935), Caste, Class and Race de Oliver Cox (1948), e, em algum grau, The Crisis of the Negro Intellectual (1967) de Harold Cruse são também candidatos a tal designação. Isto acontece, não por causa da ausência de talento do intelectual negro no campo marxista, mas sim por causa da ausência do tipo de tradição e comunidade (incluindo uma intensa troca crítica) que permitiria que tal talento florescesse.

Contrastando rigidamente com o modelo burguês, o modelo marxista nem gera defesa para o intelectual negro nem proporciona um aparato analítico adequado para políticas públicas de curto prazo. O modelo marxista, certamente, rende auto-satisfação ao intelectual negro, que com freqüência inibe seu crescimento; isso também acentua os contrastes da estrutura social com direção de maneira pouco prática, ao assegurar oportunidades conjunturais. Esta auto-satisfação resulta mesmo na submissão dogmática e uma mobilidade ascendente dentro de formações partidárias sectárias ou pré-partidárias, ou uma colocação marginal numa academia burguesa equipada por uma retórica marxista perversa e, às vezes, uma análise insatisfatória, discursivamente divorciada de dinâmicas integrais, realidades concretas e possibilidades progressistas para a comunidade negra. A preocupação com os contrastes da estrutura social tende a produzir projeções irracionais e frias ou discursos pessimistas e paralisantes. Ambas as projeções, e pronunciamentos, têm muito a ver com
a auto-imagem dos intelectuais negros marxistas, tanto quanto com o prognóstico para a libertação
negra.

Sempre se afirmou que o “marxismo é a falsa consciência da inteligência burguesa radical”. Para os intelectuais negros, o modelo marxista funciona de uma maneira mais complexa do que a sua formulação loquaz permite. Por um lado, o modelo marxista é libertário para os intelectuais negros naquilo que proporciona uma consciência crítica e uma atitude de superação aos paradigmas burgueses dominantes e aos programas de pesquisa. O marxismo proporciona papéis atrativos para os intelectuais negros – papéis de liderança ampla e geralmente visíveis, e incute novos sentidos e uma urgência ao seu trabalho. Por outro lado, o modelo marxista está debilitado para os intelectuais
negros, por causa das necessidades catárticas por satisfazer a tendência por sufocar os primeiros desenvolvimentos da consciência e das atitudes críticas dos negros.

O modelo marxista, apesar de suas imperfeições, é mais parte da solução do que parte do problema para os intelectuais negros. Isso porque o Marxismo é um “rio de fogo” – o purgatório – em nossos tempos pós-modernos. Os intelectuais negros necessitam ultrapassá-lo e chegar a bom termo com ele e, criativamente responder para ele se a atividade intelectual é uma busca de nível de reconhecimento, de sofisticação, e de refinamento. 

O modelo foucaultiano: o intelectual negro como céptico

Como a vida intelectual ocidental está mergulhada em uma crise profunda, e como os intelectuais negros estão se tornando muito mais profundamente integrados dentro da vida intelectual - ou dentro de “uma cultura de cautela e discurso crítico” (como disse o saudoso Alvin Gouldner ) - um novo modelo parece despontar no horizonte. Este modelo, baseado no trabalho influente do saudoso Michel Foucault, rejeita inequivocadamente o modelo burguês e evita o modelo marxista. Isso constitui uma das mudanças intelectuais mais entusiastas dos nossos dias: o projeto foucaultiano de nominalismo histórico. Esta investigação detalhada das relações complexas de conhecimento e poder, discurso e política, cognição e controle social, impulsiona os intelectuais a repensar e a redefinir sua auto-imagem e sua função na contemporaneidade.

O projeto e o modelo foucaultianos são atraentes para os intelectuais, primeiramente porque tocam nas dificuldades pós-modernas para os negros, configuradas pela xenofobia excessiva do humanismo burguês, predominante em toda a academia, a minguada atração para o reducionismo ortodoxo e para as científicas versões do marxismo e a necessidade de reconceitualização, concernente à especificidade e à complexidade da opressão afro-americana. Os sentimentos profundamente anti-burgueses explicitados pelas convicções pós-marxistas e por profundas preocupações com esses sentimentos, vistos como uma outra radicalidade pelos discursos dominantes e tradições, são pouco sedutores para intelectuais negros politizados, cautelosos com as panacéias antiquadas para a libertação negra.

As análises específicas de Foucault da “economia política da verdade” – o estudo das formas discursivas, nas e os meios institucionais pelos quais “os regimes de verdade são constituídos pelas sociedades no espaço e no tempo – resultam numa nova concepção de intelectual. Essa concepção não mais resulta numa transmissão suave “naquilo que de melhor tem sido pensado e dito”, como no modelo humanista burguês ou sem as energias utópicas do modelo marxista. A situação pós- moderna, certamente, requer o “intelectual específico”, que foge das etiquetas da cientificidade, da civilidade e da profecia e, ao invés, aprofunda a especificidade das matrizes das políticas econômicas culturais, dentro das quais os regimes de verdade são produzidos, distribuídos, disseminados e consumidos. Os intelectuais não podem mais se iludir por crenças – tais como os intelectuais marxistas e humanistas - pelas quais eles lutaram em nome da verdade; o problema, certamente é a luta por alcançar um status de verdade e por vastos mecanismos institucionais que dêem conta desse status. As estimadas palavras-código como “ciência”, “gosto”, “tato”, “ideologia”, “progresso” e “liberdade” do humanismo burguês e do marxismo não mais se aplicam a auto-imagem dos intelectuais pós-modernos. Ao invés disso, termos-chave novos tais como “regime de verdade”, “poder/conhecimento” e “práticas discursivas” devem estar na agenda.

A noção foucaultiana do intelectual específico resulta na desmistificação das retóricas conservadoras, liberais e marxistas, as quais restabelecem, restituem e reconstroem as auto- identidades intelectuais, tanto quanto permanecem cativas e apoiadas por formas institucionais de dominação e controle. Essas retóricas autorizam e legitimam, de diferentes maneiras, o status privilegiado dos intelectuais que não somente reproduzem divisões ideológicas entre o trabalho intelectual e manual, mas também reforça mecanismos disciplinares de sujeição e subjugação. Esta auto-legitimação é mais bem exemplificada pelas assertivas feitas por “intelectualóides” que “salva-guardam” as conquistas da cultura intelectual ou “representam” os “interesses universais” de grupos e classes particulares. Na história intelectual afro-americana, idéias tais como “um décimo de talento”, “profetas da incultura”, ”articuladores da estética negra”, “criadores de uma renascença negra” e “a vanguarda de um movimento revolucionário” são disseminadas.

O modelo foucaultiano promove uma forma pós-moderna de esquerdismo e isso encoraja um questionamento intenso e incessante dos discursos do poder carregados à serviço, não da restauração da reforma nem da revolução, mas, de preferência, da revolta. E o tipo da revolta desempenhado pelos intelectuais consiste de uma dirupção do privilégio dos “regimes de verdade” que prevalecem - incluindo seus esforços repressivos nas sociedades dos dias de hoje. Esse modelo engloba inquietações críticas, céticas e históricas de intelectuais negros progressistas e proporciona uma adesão sofisticada pelas distâncias social e ideológicas dos movimentos negros por libertação insurgente. Por conceber o trabalho intelectual como uma prática política de oposição, esse modelo satisfaz a auto-imagem de esquerda dos intelectuais negros, e, ao fazer um fetiche da consciência crítica, aprisiona a atividade intelectual negra dentro da acomodada academia burguesa da América pós-moderna.

O modelo insurgente: o intelectual negro como catalisador crítico e orgânico

Os intelectuais negros podem aprender muito com cada um dos três modelos anteriores, mesmo assim não adotar uma postura crítica em relação a eles. Isto porque os modelos burguês, marxista e foucaultiano necessariamente se relacionam entre si, mas não são discursos adequados para a singularidade das dificuldades dos intelectuais negros. Esta singularidade permanece relativamente inexplorada, e permanecerá assim até que intelectuais negros articulem um novo “regime de verdade” que sejam ligados a eles, que não sejam confinados por eles, que não sejam práticas institucionais indignas, permeadas pela oralidade. Apesar de nosso esforço, eles são constituídos pela física emocional e pela síncope rítmica, pela improvisação multiforme e pelos elementos religiosos, retóricos, antífona da vida afro-americana. Tal articulação depende, em parte da elaboração de infra-estruturas negras que premiem um pensamento negro culto e criativo. Isso demanda um conhecimento íntimo das prerrogativas dos “regimes de verdade” euro-americanos, que podem ser desmistificados, desconstruídos, decompostos de formas tais que fascinem e enriqueçam a vida intelectual negra no futuro. Por ser pioneiro para os pensadores negros, esse novo regime de verdade não pode ser um discurso hermético ou um conjunto de discursos que salvaguardem uma produção negra intelectual e não seja a última moda da escrita negra, que é sempre motivada pelo desejo alardeado pelo establishment branco, intelectual e burguês. Isso é certamente inseparável da emergência de novas formas culturais que prefigurem (e apontem) uma pós-(não anti-) civilização ocidental. No presente, hoje, tal discurso pode parecer mero sonho e fantasia. Nós devemos, então, dar o primeiro passo: insurgência negra e o papel do intelectual negro.

A maior prioridade dos intelectuais negros deve ser a criação ou a reativação das redes institucionais que promovam hábitos críticos de alta qualidade para propósitos, primeiramente de insurgência negra. Uma intelligentsia sem uma consciência crítica institucionalizada é cega, e a consciência crítica que não sirva à insurgência crítica é vazia. A tarefa central dos intelectuais negros pós-modernos é estimular, proporcionar e permitir percepções alternativas e práticas que desloquem discursos e poderes prevalecentes. Isso pode ser feito somente por um trabalho intelectual intenso e por uma prática insurgente e engajada.

O modelo insurgente fundamenta a atividade intelectual negra e vai além dos três modelos anteriores. Do modelo burguês, recupera a herança humanística e o esforço heróico. O modelo intelectual insurgente se recusa ainda a conceber essa herança e esse esforço em termos elitistas e individualistas. Ao invés do herói solitário abarcado pelo gênio isolado e exilado – o intelectual como estrela, celebridade, acomodado – esse modelo privilegia o trabalho coletivo intelectual que contribuí para uma luta e uma resistência comum. Em outras palavras, acentua criativamente o voluntarismo e o heroísmo do modelo burguês, mas rejeita a ingenuidade profunda da sociedade e da história. Do modelo marxista recupera a tensão dos contrastes estruturais, formações de classes eos valores democráticos radicais. O modelo insurgente não tem esses objetivos, formações e valores da economia e dos termos deterministas como meta. Ao invés disso, uma prerrogativa a priori de classe e trabalho industrial, de um posicionamento metafísico, e de uma sociedade socialista relativamente harmoniosa, há uma investida em bloco sob as variedades da hierarquia social e a mediação democrática radical (e libertária) sem a eliminação da heterogeneidade social. Em resumo, o modelo insurgente incorpora, de forma não ingênua, os objetivos estruturais de classe e democráticos do modelo marxista, ainda que admita uma ingenuidade abundante da cultura.

Por último, do modelo foucaultiano, o modelo insurgente capta a preocupação com o ceticismo mundial e a constituição histórica do “regime de verdade” e as operações multifacetadas da relação poder/conhecimento. O modelo insurgente, ainda, não se confina a essa constituição da verdade e essas questões genealógicas, detalhadas para as micro-redes de poder. Ao invés disso capta a ubiqüidade do poder (que simplifica e nivela os conflitos sociais e multidimensionais) e a paralisação das utopias ilimitadas do passado. Proporciona uma possibilidade de resistência efetiva e transformação social significativa. O modelo insurgente focaliza acuradamente a suspeita 9nietszchiana profunda e as descrições opositivas iluminadas pelo modelo foucaultiano, embora reconheça a profunda ingenuidade do conflito social, a luta e a insurgência – uma ingenuidade primeiramente causada pela rejeição de qualquer forma de utopia de qualquer posição teleológica. 

O trabalho intelectual negro e a insurgência negra podem estar enraizados na especificidade da história e na vida afro-americana. Mas eles estão também ligados indissociavelmente a elementos americanos, europeus e africanos que os moldam e os englobam. Tanto o trabalho, quanto a insurgência, está explicitamente particularizado, embora não sejam excludentes – por isso eles são internacionais em delineamentos e práticas. Como seus primeiros precursores históricos – pastores negros e artistas da música negra (com todas as suas forças e fraquezas) – os intelectuais negros precisam se dar conta de que a criação de práticas novas e alternativas resulta do esforço heróico e do trabalho intelectual coletivo e da resistência comum, que englobam e são moldados pelos contrastes estruturais presentes, trabalhos do poder e modo de função cultural. As distintivas formas culturais afro-americanas, tais como os estilos de prece e sermão negros, gospel, blues e jazz, necessitam inspirar, mas não obrigar a produção intelectual negra futura; isto é, o processo pelo qual eles vêm a ser insights valorativos, como também podem servir como modelos não de imitação ou emulação. Não é necessário dizer, essas formas prosperam para uma incessante inovação crítica e uma insurgência concomitante.

O futuro do intelectual negro

A situação difícil do intelectual negro não precisa ser inflexível e lúgubre. Apesar do racismo difuso da sociedade americana e do anti-intelectualismo da comunidade negra, um espaço crítico e uma atividade insurgente podem ser ampliados. Essa ampliação vai ocorrer mais prontamente quando os intelectuais negros se olharem de maneira mais condescendente, focarem as forças históricas e sociais que os constituem, apesar dos meios significativos, porém limitados, da comunidade de onde eles provêm. Uma crítica “auto-relativa” – esquematizada neste ensaio em quatro pontos – que escrutina as posições sociais, os localismos de classe e as socializações culturais dos intelectuais negros, é imperativa. Tal escrutínio não pode ser motivado pela auto- piedade ou auto-satisfação. Essa “auto-relação” certamente pode corporificar o sentido de crítica e de resistência aplicável à comunidade negra, à sociedade americana e à civilização ocidental como um todo. James Baldwin pontuou que o intelectual negro é “um tipo de bastardo do ocidente”. O futuro do intelectual negro não subjaz numa disposição de deferência aos seus pais do ocidente, nem numa busca nostálgica dos antepassados africanos, reside, certamente, numa negação crítica, numa preservação inteligente, e numa transformação insurgente dessa linhagem híbrida que protege a terra e projeta um mundo melhor.