Ontem fizemos amor e foi muito
bom. Ele acordou com um brilho diferente nos olhos, raramente isso acontece,
somente quando seu time vence. Ele está confiante. Um momento raro, eu gosto
disso. Só que não. Parece ter esperança, mas não sei exatamente em que, ou em
quem.
Estou com medo, durmo com ele
todos os dias, numa vida de liberdade vigiada. Ele falou para mim que ama nossa
família, que vai cuidar dos nossos filhos e vai conseguir um emprego decente, “botar
um rango melhor na nossa mesa”. E uma
esperança sombria: declarou voto em Bolsonaro. Tremi.
Há algum tempo está estranho
comigo. Um jeito grosseiro de me abraçar, batendo em minha bunda. Há anos quando
um dia me chamou de patroa, dei-lhe um esporro, no meio de uma reunião, em casa
com colegas da faculdade: “eu não te pago, não sou sua patroa”.
Mas, ontem, ao chegar do futebol
da praia trouxe peixe fresco e o amigo do trabalho, o Juraci. Veio conversando
alto, para eu ouvir: “Minha patroa que vai fazer o peixe, Jura, eu não sei nem
assar um ovo”. Tremi novamente.
Estava na cozinha limpando a pia.
Ele encostou suado e repetiu o gesto infame, um tapa na bunda. Subiu-me um
sentimento de raiva desesperada.
- Puta que pariu, Afonso, para de
me bater, eu não gosto disso. E não vou fazer esse peixe, já almocei. Você se
vira.
E mais baixo, sussurrei-lhe no
ouvido:
- Você traz alguém para almoçar sem
nem me avisar, e logo o Juraci?
Pegou no meu cabelo (nunca havia
feito isso), num ímpeto grosseiro com a mão de areia e o bafo de cerveja:
- Merda, faça esse peixe, para de
reclamar, dou duro no trabalho e você só reclama, trouxe o peixe, faça essa
porra, não me faça passar vergonha...
Jogou o peixe no lavatório, me
empurrou contra a pia e saiu da cozinha para conversar com o Juraci, como se
nada tivesse acontecido.
- Jura, diga aí, se o Bahia não é pauleira
mesmo, venceu o Paraná... Vamo “bebemorar” nessa porra, o peixe já vai sair...
A cozinha me pareceu um inferno,
uma sala de tortura. Enxerguei facas imensas, instrumentos perfurantes, panelas
pesadas e escuras, minhas mãos seguravam a bucha ensaboada. Tinha veneno em tudo.
O sal grosso, o inseticida, água sanitária e o sabão em pó.
O que aconteceu com aquele homem,
alguém autorizava sua soberba repentina. Ele comentava o cenário político e nem
esperava minhas resposta, interrompia: “Você fez faculdade do PT, sua opinião não conta”. Ele
me considerava uma militante fora de moda. “O mundo agora é o outro e o PT já
era”. “As feminazis já eram. Bandidagem e o mimimi dos direitos humanos também”.
“O capitão vem aí”. “Bandido bom é bandido morto”. Blá, blá, blá.
Concentro-me na tarefa. É muito
fácil preparar um peixe. Sou formada em química. A primeira da minha família
com diploma universitário. A cozinha é um laboratório. Juntei 300 sementes de
maçã, para uma experiência na universidade com os alunos. Produzir cianeto, em
seu composto exato para produção de plástico. A amigdalina extraída da semente
da maçã se converte nesse produto altamente tóxico através de uma manipulação
caseira muito simples, desenvolvida por mim. Soldados alemães, capturados em guerra, ingeriam pequenas doses do cianeto para cometer suicídio.
O atum parecia sorri, até que a
faca lhe decepa a cabeça. Corte preciso no bucho, vísceras retiradas, reentrâncias na carne escura em que se pode espalhar uma substância qualquer como tempero. O sabor suave da
maçã sintetizada. Atum adocicado. Depois o alho, o tomilho, batatas, brocólis
cenouras recheadas de betacaroteno e monocrotofos.
Ele me fez passar vergonha semana
passada. Tive vergonha dele. Não quis que concluísse minha conversa, entre
amigos, sobre o risco dos agrotóxicos. Repetiu desdenhando, no alto de uma
sabedoria que nem completou o ginásio. “É vem você com esse blá blá blá
ecologista, o capitão vem aí, vai acabar com MST e transformar nosso território
numa potência agrícola”. Não adiantou argumentar que o mercado europeu está
cada vez mais exigente em relação aos nossos produtos, da necessidade do selo
de orgânicos. Ele arrotou bazófia e todo mundo riu.
Eu ganho três vezes mais do que
ele, sou doutora em Química, professora universitária. Casei com uma
cavalgadura, que agora está confiante no futuro do país.
O peixe cheira e invade a
cozinha. Cheiro assassino. Os homens sentem o prazer de uma cozinha eficiente.
Eles trazem a caça e eu preparo o alimento, manufaturado por minhas mãos ágeis.
Sobre a mesa, o atum na assadeira,
aguçando as papilas gustativas dos machos, em postas com formatos indecentes.
Eles me olham com prazer. Falar de futebol, do peixe, do capitão, da boa
cozinha, do cheiro bom. O vinho derramado em golfadas sonoras nas taças. O
homem a quem jurei amor ergue-se e faz um brinde: “Ao capitão”. Eu sorrio
discretamente e baixo a taça, o brinde é deles somente. Eles sabem minha
posição. Sorvo o vinho de
uma só vez até o último gole.
A rapidez do alimento ingerido,
as poucas espinhas separadas. O meu prazer em ver o almoço, inesperado, concluso
com prazer. Juraci está suando, não se sente bem, diz que precisa ir para casa.
Deve ser o calor. Eles se abraçam e eu suspiro aliviada com fim momentâneo
daquela cumplicidade masculina, estranha.
Arrota, me abraça, faz um carinho
no meu cabelo, pede desculpa e me chama para descansar um pouco na cama, as
crianças estão na casa da avó. O resto do domingo só nosso. Eu vou com ele.
Deita como um porco e adormece em minutos.
Fico acordada, olhando aquele ser inerte que tanto amei e tanto me deu
prazer. Agora o silêncio. No delírio último do sono, uma frase meio bêbada meio
sonho: “Agora é a vez do capitão”.