Neste mês, uma enxurrada
de lamúrias nas redes sociais e na grande mídia pela passagem de
dois representantes da cultura e da literatura brasileiras: João
Ubaldo Ribeiro e Ariano Suassuna. Vou contar por que não chorei, nem
postei frase saudosa, dedicada a esses dois “próceres” das
letras e das artes nacionais.
Porque, a despeito dessa
veneração emotiva e irracional de muita gente ao intelectual de voz
grave, cheio de erudição vazia, defensor varonil da cultura
brasileira e nordestina (bem retrô para as épocas atuais),
veneração, inclusive, de pessoas que não conhecem uma obra sequer
dos finados, eu nunca vi tanto conservadorismo e visão estreita
sobre arte, cultura e política, reunidos em apenas dois indivíduos.
Ainda bem que morreram.
Ariano Suassuna era um
pensador do século XIX, teimando viver até os dias de hoje,
devotado a uma imagem fossilizada de cultura, que não se
movimenta, engessada a uma ideia essencialista, fantasiosa de
origem única, pura, e de propriedade interpretativa, exclusivamente,
dos iluministas intelectuais. Acreditava num Nordeste medieval, cheio
de gibões de couros, de música trovadoresca. Demagógico e
colonialista, vivia encastelado numa visão de brasões e heráldicas,
defendendo, por tabela, uma raiz etnocêntrica, europeia e
medievalesca, da cultura brasileira.
Cultura para Suassuna,
tem o sentido pitoresco e estereotipado de folclore e só pode ser
interpretada por almas como a dele e, depois, tombada pelo
dicionário de Câmara Cascudo (certamente, Suassuna e Cascudo
filaram as melhores aulas de antropologia). Inventou um movimento,
armorial, que não dizia nada para ninguém e só servia para ele e
José de Alencar. Com uma
grande diferença, o autor de O sertanejo e Iracema
morreu em 1877.
Para mim, quem defende
uma chamada arte tradicional e a impõe como a única arte possível,
é um lunático, mora lá em cima e não aqui. O embate que
Suassuna, na década de 1990, teve com a música mais genial do
Brasil, o Manguebeat, mostrou sua perspectiva anacrônica e
descontextualizada de tudo, inclusive da vida.
Ele não podia suportar
uma guitarra junto com a zabumba, ele queria a zabumba com o pífano
e a rabeca. Vá ele ficar ouvindo música provençal arcaica, deixe
os outros em paz. Se saiu mal, porque a música de Science continua
vendendo, vigorosa e produtiva, influenciando novas tendências
musicais contemporâneas, e as ideias de música e literatura que
Ariano propaga, mofadas na sua cabeça, só empolgam a quem se acha
intelectualmente superior, culto. No geral, pessoas deslumbradas com
o conhecimento livresco corroído pela traça. Suassuna era contra a
juventude e a oxigenação das artes, seria líder de uma marcha
contra o rock e toda música que não fosse do seu nordeste mal
inventado. O texto teatral “O auto da compadecida” originalmente
de 1955, nunca fez sucesso até virar minissérie da Rede Globo, em
1999. O texto de teatro tem pouco a ver com a minissérie. Embora,
chatos os dois. Teatro enfadonho, minissérie cheia de estereótipos
bufões, tipo Zorra Total.
Outro barítono de ideias
estúpidas era João Ubaldo Ribeiro. Esse escreveu as linhas mais
reacionárias que já li nos últimos anos. Basta dizer, que era o
namoradinho da mídia embusteira, a mais viciada do mundo, composta
pela revista Veja, os jornais O Globo e a Folha de São Paulo. E todo
mundo sabe da sua relação com a família Marinho. Era o intelectual
a serviço da direita raivosa, espinafrando asneiras contra qualquer
tipo de política pública. Antes, ele fosse franco e declarasse
logo seu conservadorismo, a sua filiação ordinária aos grupos
dominantes desse país. Mas, pousava de intelectual independente,
defendendo o indefensável, a “liberdade” de uma mídia
golpista.*
Ora, qualquer pessoa
sensata, que conhece um pouco de história, sabe como funcionam os
grandes grupos de comunicação, em sua relação com a poder, sabe
que golpes políticos e ideológicos são arquitetados nas redações
e relações espúrias são construídas entre políticos e donos de
emissoras de TV. A quem João Ubaldo quis convencer sobre uma mídia
crítica e independente? Perdeu as aulas de história e política na
faculdade: ou era muito ingênuo, ou bastante maldoso, ou as duas
coisas juntas.
Signatário de um
manifesto intitulado “Centro e treze cidadãos não racistas contra
as leis raciais”, enviado ao STF em abril de 2008, contra as cotas
para indígenas e afrodescendentes, João Ubaldo teimava em reeditar
o mito da democracia racial, da feliz harmonia gilbertofreiriana das
raças, desfazendo-se de dados sérios que mostram claramente as
desigualdades de oportunidades de trabalho e estudo entre negros,
pardos, indígenas e brancos no Brasil**. Justificava sua posição
dizendo que as cotas criariam uma linha de cor, que, segundo ele,
nunca existiu no Brasil. Nunca existiu? É estranho, parece até que
João Ubaldo não escreveu o seu próprio romance Viva o Povo
Brasileiro.
Nesse livro, um
personagem chamado Amleto, um "mulato sarará", de pai
inglês e mãe preta passa toda noite uma camada espessa de caldo de
babosa no cabelo e põe uma touca para amaciá-lo. Na sua quinta
geração, um de seus herdeiros, rico banqueiro de São Paulo,
contempla com orgulho o retrato desse trisavô: “sisudo, colarinho
alto, pescoço empertigado, sobrancelhas cerradas. Branco que parecia
leitoso, o cabelo ralo e muito liso, escorrendo pelos lados da
cabeça, podia perfeitamente ser um inglês, como, aliás, quase era,
só faltou nascer na Inglaterra. Traços nórdicos visíveis"
(1984, p 642)***. A negação de Amleto mostra que existe uma linha
de cor bem perversa, sim, introjetada por esse personagem mestiço e
pelos estereótipos racistas, evocados por ele para determinado povo
brasileiro: “Que será aquilo que chamamos de povo? Seguramente,
não é essa massa rude, de iletrados enfermiços, encarquilhados
impaludados, mestiços e negros”. (idem, p.245)
Academia Brasileira de
Letras não deveria chorar seus mortos, pois, afinal de contas eles
são imortais. No caso desses dois, há de se imaginar que estejam
numa dimensão astral dos seres superiores, contando uma para o
outro as suas ideias mais mirabolantes. E, como expectadores desses dois
falastrões, o imenso vazio da orbe celeste e um boi dormindo
profundamente.
*Ver artigo do Estadão:
“Que elites, que esquerda?” Disponível em:
http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,que-elites-que-esquerda-imp-,1009789.
Acesso em: 20 de jun. de 2014.
** Ver entrevista da
Revista Veja: "Somos um país corrupto". Disponível em:
http://veja.abril.com.br/180505/entrevista.html.
Acesso em: 10 de jul. de 2014.
***RIBEIRO, João Ubaldo.
Viva o povo brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.
De se phuder...
ResponderExcluirAté que enfim alguém posiciona os eminentes defuntos na escala antropológica do pensamento brasileiro: demagógico e coronelista, Suassuna às vezes se assumia até ingênuo, como se zabumba, pífano e rabeca não fossem instrumentos importados da Europa. Encostado nas benesses do Estado, é fácil impor um nostálgico Nordeste passadista, e polemizar com quem dialoga com a cultura dos recantos reais (manguebeat), produzida em condições adversas e sem subvenções públicas. A era do nordestino "humano", "esperto" e "inteligente" (João Grilo e Chicó), mas que não sai do lugar, está enterrada já há um certo tempo. Ninguém mais acredita nesse engodo. O texto de Marcos é corajoso na medida em que produz uma espécie de contra-obituário, e no mundo politicamente correto, em que uma pessoa pode ser processada por uma vírgula, só nos resta "falar mal" - mas falar a verdade - de quem já morreu mesmo. Abraço, Braulino.
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