Publico este diálogo com o professor Braulino Santana sobre o episódio Charles Hebdo. O texto possibilita refletir sobre uma série de questões que envolvem a história do Ocidente, o colonialismo, a liberdade de expressão, o papel dos intelectuais, e o conflito Oriente e Ocidente.
Braulino: É sempre preciso haver um atentado terrorista para a gente saber disso (como árabes e negros vivem em países como a França e a Inglaterra). A Folha de S. Paulo nunca publica artigos de mulçumanos, pretos, marroquinos e árabes sobre suas questões.
Marcos: E fica pintando agora de “Je suis Charlie”.
Braulino: Bastou o atentado acontecer para a Folha traduzir e publicar um artigo de um intelectual dos estudos culturais ingleses, justamente pontuando a invisibilidade dessas comunidades na França e na Inglaterra.
Marcos: Aquele jornal satírico era racista; francês frio e racista é pior que homem bomba.
Braulino: Você sabe que vou assumir nesse debate a posição do liberal inglês Stuart Mill, ou seja, tudo deve ser dito, todas as posições precisam ficar explícitas, inclusive (como fez o Charlie) desenhar uma ministra negra francesa com a cara dela mesma e o resto do corpo de uma macaca, sem que se seja preso, processado, ou pague indenização por isso... Só assim temos chance de abrir piquetes de debate público, e empurrar racistas e homofóbicos para um canto reservado...
Marcos: Bom, enquanto mulçumanos forem racializados, humilhados, colocados como inferiores, enquanto negros forem maiores vítimas de racismo institucional, esse tipo de liberdade vai ter que assumir riscos e refluxos históricos. E isso é também uma forma de opressão: a violência religiosa é uma violência possível de resistência. A gente se cansa desse tipo de frieza em tratar de questões que ferem a dignidade humana: essa frieza de quem pode falar, pode rir... De quem sempre pode falar, quem sempre pode rir. Se um homem bomba não faz isso, fica tudo de boa...
Braulino: Estou colocando lentes pragmáticas sobre os discursos que circulam: é impossível impor aos outros os discursos que nós achamos que sejam os corretos, os que devem circular. Se eles imaginam um mundo em que preto pode ser comparado a um macaco, temos que enfrentar esses discursos não com a força, com algemas, indenizações ou bombas: temos que enfrentar esses discursos politicamente...
Marcos: Enfrentamos também discursivamente... O legal é que essa atitude bomba força a reação discursiva. (Eu) não faria isso porque não acredito em Maomé. (Eu) não vou ser príncipe de outro lado. Não seria bomba, a minha maneira: as tiras, a charge (isso) não era uma produção artística, porque não permitia aquela plurivalência, a autocrítica: as tiras e a charge eram de ódio. (Então é) ódio contra ódio. Seria bom um outro jornal fazendo charge do francesinho filósofo falando dos outros, cheio de problemas, e querendo resolver os problemas dos outros. Devem aparecer agora charges da tragédia, fazendo um contra discurso, tipo colocando os cartunistas numa posição ridícula também.
Braulino: Eu só espero não estar no lugar onde uma bomba islâmica seja detonada... Afinal, tudo fica como era antes, ou pior... Veja a reação do repórter preto que foi chamado de "negro de alma branca": ele entrou na Justiça, ganhou a indenização dele, caladinho ele estava, caladinho ele ficou.. (...) "fodam-se os outros negros em situação de vulnerabilidade social e racial", parece ele ter pensado... Ele não foi capaz de abrir um debate sobre racismo e limites discursivos... Assim funciona uma bomba: tudo regride, e reforça mais ainda o lado de “lá”: afinal, 3,5 milhões de pessoas foram às ruas para atender ao chamado "Eu sou Charlie"... Fundamentalistas da imprensa francesa alimentam terroristas, e vice-versa.
Marcos: Vejo força dos dois lados: uma resposta também de intelectuais que criticam esse tipo de humor destrutivo. O movimento “Je ne sui pas Charlie” apareceu e cresceu, pelo menos nas redes sociais. Isso força as instituições a assumirem políticas antirracistas.
Braulino: O preço é muito alto: morte de pessoas, encarceramento de seres humanos... Os conflitos devem ser filtrados por via política e discursiva...
Marcos: É bom fazer charge dos franceses como estas:
Braulino: É sempre preciso haver um atentado terrorista para a gente saber disso (como árabes e negros vivem em países como a França e a Inglaterra). A Folha de S. Paulo nunca publica artigos de mulçumanos, pretos, marroquinos e árabes sobre suas questões.
Marcos: E fica pintando agora de “Je suis Charlie”.
Braulino: Bastou o atentado acontecer para a Folha traduzir e publicar um artigo de um intelectual dos estudos culturais ingleses, justamente pontuando a invisibilidade dessas comunidades na França e na Inglaterra.
Marcos: Aquele jornal satírico era racista; francês frio e racista é pior que homem bomba.
Braulino: Você sabe que vou assumir nesse debate a posição do liberal inglês Stuart Mill, ou seja, tudo deve ser dito, todas as posições precisam ficar explícitas, inclusive (como fez o Charlie) desenhar uma ministra negra francesa com a cara dela mesma e o resto do corpo de uma macaca, sem que se seja preso, processado, ou pague indenização por isso... Só assim temos chance de abrir piquetes de debate público, e empurrar racistas e homofóbicos para um canto reservado...
Marcos: Bom, enquanto mulçumanos forem racializados, humilhados, colocados como inferiores, enquanto negros forem maiores vítimas de racismo institucional, esse tipo de liberdade vai ter que assumir riscos e refluxos históricos. E isso é também uma forma de opressão: a violência religiosa é uma violência possível de resistência. A gente se cansa desse tipo de frieza em tratar de questões que ferem a dignidade humana: essa frieza de quem pode falar, pode rir... De quem sempre pode falar, quem sempre pode rir. Se um homem bomba não faz isso, fica tudo de boa...
Braulino: Estou colocando lentes pragmáticas sobre os discursos que circulam: é impossível impor aos outros os discursos que nós achamos que sejam os corretos, os que devem circular. Se eles imaginam um mundo em que preto pode ser comparado a um macaco, temos que enfrentar esses discursos não com a força, com algemas, indenizações ou bombas: temos que enfrentar esses discursos politicamente...
Marcos: Enfrentamos também discursivamente... O legal é que essa atitude bomba força a reação discursiva. (Eu) não faria isso porque não acredito em Maomé. (Eu) não vou ser príncipe de outro lado. Não seria bomba, a minha maneira: as tiras, a charge (isso) não era uma produção artística, porque não permitia aquela plurivalência, a autocrítica: as tiras e a charge eram de ódio. (Então é) ódio contra ódio. Seria bom um outro jornal fazendo charge do francesinho filósofo falando dos outros, cheio de problemas, e querendo resolver os problemas dos outros. Devem aparecer agora charges da tragédia, fazendo um contra discurso, tipo colocando os cartunistas numa posição ridícula também.
Braulino: Eu só espero não estar no lugar onde uma bomba islâmica seja detonada... Afinal, tudo fica como era antes, ou pior... Veja a reação do repórter preto que foi chamado de "negro de alma branca": ele entrou na Justiça, ganhou a indenização dele, caladinho ele estava, caladinho ele ficou.. (...) "fodam-se os outros negros em situação de vulnerabilidade social e racial", parece ele ter pensado... Ele não foi capaz de abrir um debate sobre racismo e limites discursivos... Assim funciona uma bomba: tudo regride, e reforça mais ainda o lado de “lá”: afinal, 3,5 milhões de pessoas foram às ruas para atender ao chamado "Eu sou Charlie"... Fundamentalistas da imprensa francesa alimentam terroristas, e vice-versa.
Marcos: Vejo força dos dois lados: uma resposta também de intelectuais que criticam esse tipo de humor destrutivo. O movimento “Je ne sui pas Charlie” apareceu e cresceu, pelo menos nas redes sociais. Isso força as instituições a assumirem políticas antirracistas.
Braulino: O preço é muito alto: morte de pessoas, encarceramento de seres humanos... Os conflitos devem ser filtrados por via política e discursiva...
Marcos: É bom fazer charge dos franceses como estas:
Braulino: Mas, veja, é preciso historicizar as charges: elas não vieram do nada, imaginadas por mentes distorcidas. Nessas sociedades muçulmanas, mulheres são tratadas como animais de carga; homossexuais têm mãos e órgãos decepados; os discursos que circulam são somente aqueles autorizados pela Sharia. As charges são estúpidas, grosseiras e ofensivas? Sim. Devem ser enfrentadas? Sim. Mas o mérito daquilo que elas levantam deve ser enfrentado também. Eu irei à África, mas não sei se vou entender como aqueles países lidam com homossexuais.
Marcos: (...) Essas charges acima precisam ser divulgadas, sim, porque senão fica aquele discurso lá de cima, falando sobre a religião do outro, a cultura do outro, sem enxergar a si: esse é um tipo de doutrina também. As melhores charges são aquelas que conseguem enxergar o ridículo de suas próprias sociedades, as contradições. Os franceses acumulam uma história de estupros, grosserias, radicalismos terríveis também. Viveram grande parte de sua história cortando cabeça de gente e estuprando colonizadas, queimando mulheres na fogueira. Eles ergueram sua sociedade humanista na violência e pintam de humanizadores agora. Eles estão pagando pela barbárie que ergueram.
Braulino: Até que ponto devemos regressar no passado para vingar o nosso presente? Até que ponto as pessoas de hoje merecem ser punidas pelos crimes de pessoas no passado? Essas são questões que precisam aparecer no debate para torná-lo mais real e claro. Sei que, ao mesmo tempo em que a charge denuncia, ela também cria valores, e reinventa os estereótipos; ao mesmo tempo que faz militância em favor de uma causa, mobiliza a sociedade contra determinada cor de pele, cultura, comportamento ou religião. Elas são uma via de mão dupla. Não estou bem certo quanto aos meios de combater esse tipo de discurso ofensivo, só sei que a via judicial, da força física, do encarceramento ou da morte de pessoas é o caminho mais impróprio pra enfrentá-lo.
Marcos: Mas não foram crimes do passado, porque a história não funciona assim. A França ainda possui colônias, ainda possui políticas coloniais racistas em várias partes do mundo. A barbárie continua sob a farsa do discurso humanizador, como sempre foi: humanismo no discurso e barbárie nas atitudes políticas. O colonialismo é sempre o mesmo modus operandi. Um francês veio nos visitar. Ele teve a coragem de chamar os africanos de preguiçosos. Eu pedi que ele olhasse a imponência da cidade de Salvador, e falei que (quem) construiu essa imponência foi o trabalho dos africanos. E assim ficam repetindo isso o tempo todo: nos romances, nas charges, na TV, no cinema – doutrina eurocêntrica.
Braulino: Veja que essas questões que você levanta elas vêm de você, elas não vêm do discurso dos assassinos. Eles não pontuam essas questões. Sabemos que a França praticou atrocidades na Argélia, que soldados de origem argelina que lutaram pela França contra a invasão nazista nunca foram indenizados, como os franceses brancos da resistência, mas intelectuais árabes que pontuam essas questões não se sentem representados por uma bomba.
Marcos: Eu também não me sinto representado pela bomba, mas a bomba é uma espécie de mote para discutir muitas outras coisas que aconteceram e estão acontecendo. Esses soldadinhos franceses vão bombardear a Síria, a África, a Palestina e o Afeganistão se forem convocados. Mandam bomba de jato sem se importar com velho, crianças lá embaixo. A guerra é a religião mais fundamentalista e burra do mundo. O nacionalismo é pior que o hezbolá e o talibã.
Braulino: Eles são vítimas das próprias armas que vendem para matar outros fora do território deles. As armas que mataram reféns naquele mercado foram compradas na Bélgica. É algo sinistro estarmos aproveitando a bomba para dialogar sobre essas questões; e é trágico que uma bomba sirva como forma de refletir sobre pertinências que afetam a todos nós. Ademais, eles mataram mas também morreram. Assumir a posição daquele que precisa de uma bomba para refletir é o fim do mundo.
Marcos: (...) Essas charges acima precisam ser divulgadas, sim, porque senão fica aquele discurso lá de cima, falando sobre a religião do outro, a cultura do outro, sem enxergar a si: esse é um tipo de doutrina também. As melhores charges são aquelas que conseguem enxergar o ridículo de suas próprias sociedades, as contradições. Os franceses acumulam uma história de estupros, grosserias, radicalismos terríveis também. Viveram grande parte de sua história cortando cabeça de gente e estuprando colonizadas, queimando mulheres na fogueira. Eles ergueram sua sociedade humanista na violência e pintam de humanizadores agora. Eles estão pagando pela barbárie que ergueram.
Braulino: Até que ponto devemos regressar no passado para vingar o nosso presente? Até que ponto as pessoas de hoje merecem ser punidas pelos crimes de pessoas no passado? Essas são questões que precisam aparecer no debate para torná-lo mais real e claro. Sei que, ao mesmo tempo em que a charge denuncia, ela também cria valores, e reinventa os estereótipos; ao mesmo tempo que faz militância em favor de uma causa, mobiliza a sociedade contra determinada cor de pele, cultura, comportamento ou religião. Elas são uma via de mão dupla. Não estou bem certo quanto aos meios de combater esse tipo de discurso ofensivo, só sei que a via judicial, da força física, do encarceramento ou da morte de pessoas é o caminho mais impróprio pra enfrentá-lo.
Marcos: Mas não foram crimes do passado, porque a história não funciona assim. A França ainda possui colônias, ainda possui políticas coloniais racistas em várias partes do mundo. A barbárie continua sob a farsa do discurso humanizador, como sempre foi: humanismo no discurso e barbárie nas atitudes políticas. O colonialismo é sempre o mesmo modus operandi. Um francês veio nos visitar. Ele teve a coragem de chamar os africanos de preguiçosos. Eu pedi que ele olhasse a imponência da cidade de Salvador, e falei que (quem) construiu essa imponência foi o trabalho dos africanos. E assim ficam repetindo isso o tempo todo: nos romances, nas charges, na TV, no cinema – doutrina eurocêntrica.
Braulino: Veja que essas questões que você levanta elas vêm de você, elas não vêm do discurso dos assassinos. Eles não pontuam essas questões. Sabemos que a França praticou atrocidades na Argélia, que soldados de origem argelina que lutaram pela França contra a invasão nazista nunca foram indenizados, como os franceses brancos da resistência, mas intelectuais árabes que pontuam essas questões não se sentem representados por uma bomba.
Marcos: Eu também não me sinto representado pela bomba, mas a bomba é uma espécie de mote para discutir muitas outras coisas que aconteceram e estão acontecendo. Esses soldadinhos franceses vão bombardear a Síria, a África, a Palestina e o Afeganistão se forem convocados. Mandam bomba de jato sem se importar com velho, crianças lá embaixo. A guerra é a religião mais fundamentalista e burra do mundo. O nacionalismo é pior que o hezbolá e o talibã.
Braulino: Eles são vítimas das próprias armas que vendem para matar outros fora do território deles. As armas que mataram reféns naquele mercado foram compradas na Bélgica. É algo sinistro estarmos aproveitando a bomba para dialogar sobre essas questões; e é trágico que uma bomba sirva como forma de refletir sobre pertinências que afetam a todos nós. Ademais, eles mataram mas também morreram. Assumir a posição daquele que precisa de uma bomba para refletir é o fim do mundo.
Muito bom professores. Concordo plenamente. Liberdade de expressão é bom, mas o respeito aos outros é ótimo.
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