segunda-feira, 22 de junho de 2015

Nem todas as crianças vingam

Ao autor de “Pai contra mãe”, Machado de Assis.

É previsível que num país em que muitas pessoas leem a revista Veja  e assistem a programas sensacionalistas como Brasil Urgente (em que se destilam ódio contra pretos e pobres), a redução da maioridade penal seja defendida veementemente. 

Para essas pessoas, a voz de um apresentador machão bradando contra  a criminalidade de moleques traficantes e a de uma repórter loira, que fez valer seu diploma do curso de comunicação, numa faculdade particular, com entrevistas toscas a assaltantes de estabelecimentos comerciais, representam o pináculo heroico, a maior expressão intelectual dos novos tempos .

A lógica desses veículos de comunicação segue a fantasia maniqueísta da velha classe média, pagadora dos seus impostos, do cidadão de bem contra a maldade das drogas e do assaltante favelado, que lhe rouba relógio e carro, financiado em 60 meses. Tentador é entender a cabeça de quem apóia a redução da maioridade penal com uma cena do nosso mais brutal cotidiano.

Tiago faz parte dessa fauna. Ele tem 30 anos, é representante comercial e se orgulha em fazer curso sobre a bíblia com sua família. Tem mulher, filho de três anos e outro para nascer. Defende o direito a ter uma arma para se defender, assegurando seu único patrimônio, um carro financiado. Vai atirar para matar, se preciso for. Com muito esforço está pagando também sua faculdade de administração, sonha em ter sua própria empresa. Viveu em condomínio fechado numa cidade do interior, teve boa infância. O pai o incentivou a se inserir no meio social, foi para a igreja e para  a maçonaria. Acha que teve vida difícil. É gordo e feio. Não entende porque existem cotas para se entrar na universidade, nem porque tem gente que tem prioridade nas filas dos bancos, aeroportos e estacionamentos. Esbravejou um dia numa fila de embarque aéreo:  “Nesta sociedade, nós é que somos discriminados, nós cidadãos de bem, homens comuns”.

Dr. Júlio Caldas, velho médico obstetra e triste, porque há dez anos não consegue terminar seu livro de poesia, também faz parte dessa fauna. Ele se acha sensível. É membro da academia de Letras de sua cidade, com um livro sempre “no prelo”. Quando jovem, a família tirou de onde não podia para pagar a faculdade dele, o único filho médico. A primeira vez que tentou fazer um parto normal, foi frustrante, acabou desistindo, optando pela cesárea. Os colegas em reuniões particulares gozam dele e da história, dizendo que a paciente saiu com dois cortes: um no períneo e outro no abdômen. Obstetra, atende a todos os planos, em clínica particular, e  rede pública também. Chega a fazer 10 partos por mês, o que lhe garante boa renda. Não suporta a presença de médicos cubanos no Brasil. “Vieram para tomar nosso lugar e nem cara de médicos eles têm”. Também não entende o porquê dessa nova onda de “humanização do parto”. Em reunião com outros médicos perguntou estupefato: “como as mulheres vão parir, se não posso pedir que façam força ou que fiquem tranquilas?”. Dr. Júlio é conhecido pela grosseria com que trata suas pacientes, especialmente as mais pobres.

Depois de ter visto, na TV da sala de espera, um apresentador descabelado noticiar que um ciclista médico foi assassinado, Tiago entra com a esposa no consultório de Dr. Júlio.

- Bom dia, doutor, meu herdeiro quando vem?

- Vamos marcar esse parto? Seu filho está bem e vai nascer saudável.  Respondeu firmemente o médico.

Tiago respondeu, antes de qualquer reação da mulher:
- Vamos sim.

O marido folheava uma revista da bancada, enquanto o médio finalizava o atendimento. Tentando impressionar o doutor, mostrando que estava atualizado com as notícias da manhã, disse:

- E o médico, colega seu, morto a facadas por um pivete, doutor? Essa meninada marginal tem que ser colocada na cadeia...

O rapaz engrolou sua defesa da pena de morte para crimes hediondos, prisão perpétua para assassinos menores. Argumentou a favor de uma sociedade armada e evocou os valores da família tradicional.

O médico estava absorto, lembrando do malogrado parto do dia anterior, no hospital público. A mocinha pobre chorou desesperada ao ver algo parecido com um bebê, todo cheio de sangue, sem vida na mesa cirúrgica, o feto havia engolido mecônio. Parto difícil, sabe como é, em hospital público nunca é a mesma coisa, vai à sorte. Ele nunca se sentia culpado ou ficava triste quando algo assim acontecia. Aquela menina, naquela situação, era melhor não ter o filho mesmo.

Tiago perguntou ao médico se concordava com a redução da maioridade penal no Brasil.
- Sim, sim, concordo.  

O doutor pensou que aquele marginalzinho, assassino do médico ciclista, poderia não ter nascido e não nasceria se dependesse de suas mãos. Achou seu trabalho mais importante do que qualquer poesia. Porque nem todas as crianças vingam, ainda bem.







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