Ao autor de “Pai contra
mãe”, Machado de Assis.
É previsível que num país em que
muitas pessoas leem a revista Veja e assistem a programas sensacionalistas como Brasil Urgente (em que se destilam
ódio contra pretos e pobres), a redução da maioridade penal seja defendida
veementemente.
Para essas pessoas, a voz de um apresentador machão bradando contra a criminalidade de moleques traficantes e a de uma repórter loira, que fez valer seu diploma do curso de comunicação, numa faculdade particular, com entrevistas toscas a assaltantes de estabelecimentos comerciais, representam o pináculo heroico, a maior expressão intelectual dos novos tempos .
A lógica desses veículos de
comunicação segue a fantasia maniqueísta da velha classe média, pagadora dos
seus impostos, do cidadão de bem contra a maldade das drogas e do
assaltante favelado, que lhe rouba relógio e carro, financiado em 60 meses. Tentador
é entender a cabeça de quem apóia a redução da maioridade penal com uma cena do
nosso mais brutal cotidiano.
Tiago faz parte dessa fauna. Ele tem 30 anos, é representante comercial e se orgulha em fazer curso sobre a bíblia com sua família. Tem mulher, filho de três anos e outro para
nascer. Defende o direito a ter uma arma
para se defender, assegurando seu único patrimônio, um carro financiado. Vai
atirar para matar, se preciso for. Com muito esforço está pagando também sua
faculdade de administração, sonha em ter sua própria empresa. Viveu em
condomínio fechado numa cidade do interior, teve boa infância. O pai o
incentivou a se inserir no meio social, foi para a igreja e para a maçonaria. Acha que
teve vida difícil. É gordo e feio. Não entende porque existem cotas para se entrar na universidade, nem porque tem gente que tem prioridade nas filas dos
bancos, aeroportos e estacionamentos. Esbravejou um dia numa fila de embarque
aéreo: “Nesta sociedade, nós é que somos
discriminados, nós cidadãos de bem, homens comuns”.
Dr. Júlio
Caldas, velho médico obstetra e triste, porque há dez anos não consegue terminar seu
livro de poesia, também faz parte dessa fauna. Ele se acha sensível. É membro da
academia de Letras de sua cidade, com um livro sempre “no prelo”. Quando jovem,
a família tirou de onde não podia para pagar a faculdade dele, o único filho
médico. A primeira vez que tentou fazer um parto normal, foi frustrante, acabou
desistindo, optando pela cesárea. Os colegas em reuniões particulares gozam
dele e da história, dizendo que a paciente saiu com dois cortes: um no períneo
e outro no abdômen. Obstetra, atende a todos os planos, em clínica particular,
e rede pública também. Chega a fazer 10 partos
por mês, o que lhe garante boa renda. Não suporta a presença de médicos cubanos
no Brasil. “Vieram para tomar nosso lugar e nem cara de médicos eles têm”.
Também não entende o porquê dessa nova onda de “humanização do parto”. Em reunião
com outros médicos perguntou estupefato: “como as mulheres vão parir, se não
posso pedir que façam força ou que fiquem tranquilas?”. Dr. Júlio é conhecido pela grosseria com que trata suas pacientes, especialmente as mais pobres.
Depois de ter
visto, na TV da sala de espera, um apresentador descabelado noticiar que um
ciclista médico foi assassinado, Tiago entra com a esposa no consultório de Dr.
Júlio.
- Bom dia, doutor,
meu herdeiro quando vem?
- Vamos marcar
esse parto? Seu filho está bem e vai nascer saudável. Respondeu firmemente o médico.
Tiago respondeu,
antes de qualquer reação da mulher:
- Vamos sim.
O marido folheava
uma revista da bancada, enquanto o médio finalizava o atendimento. Tentando
impressionar o doutor, mostrando que estava atualizado com as notícias da manhã,
disse:
- E o médico,
colega seu, morto a facadas por um pivete, doutor? Essa meninada marginal tem que
ser colocada na cadeia...
O rapaz engrolou
sua defesa da pena de morte para crimes hediondos, prisão perpétua para assassinos
menores. Argumentou a favor de uma sociedade armada e evocou os valores da
família tradicional.
O médico estava
absorto, lembrando do malogrado parto do dia anterior, no hospital público. A
mocinha pobre chorou desesperada ao ver algo parecido com um bebê, todo cheio
de sangue, sem vida na mesa cirúrgica, o feto havia engolido mecônio. Parto
difícil, sabe como é, em hospital público nunca é a mesma coisa, vai à sorte. Ele
nunca se sentia culpado ou ficava triste quando algo assim acontecia. Aquela
menina, naquela situação, era melhor não ter o filho mesmo.
Tiago perguntou
ao médico se concordava com a redução da maioridade penal no Brasil.
- Sim, sim,
concordo.
O doutor pensou
que aquele marginalzinho, assassino do médico ciclista, poderia não ter nascido e não
nasceria se dependesse de suas mãos. Achou seu trabalho mais importante do que qualquer poesia. Porque nem todas as crianças vingam, ainda bem.
verdades necessárias
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