segunda-feira, 21 de outubro de 2019

Estamos perdidos há muito tempo e a direita (não bolsonarista) “descobriu” isso agora.




A direita tradicional brasileira, os vestígios do que sobrou do PSDB, os Frias, a VEJA, a velha imprensa marrom, o clubinho "moderado" pmedebista, os ciristas, podem estar dando um passo mais sensato ao fazer as devidas críticas ao governo bolsonárico, só agora. Pelo menos, melhor do que fizeram quando se enfiaram na lama do antipetismo e ajudaram a eleger o coiso, para a desgraça geral da nação.

Li  em uma reportagem da Época, revista escrotinha (ex?)sócia dos tucanos, um artigo sobre as aulas de filosofia do Olavo de Carvalho,  mentor intelectual de Bozo. Aulas ministradas via EAD, lá de Michigan, onde o guru, com pose e charuto de filósofo europeu, mora. O jornalista da dita acompanhou as aulas de filosofia do mestre dos coxinhas, que nem primeiro grau possui, para concluir que aprendeu o “nada”. Eu me pergunto, precisou cursar todo o curso para concluir o óbvio, e depois de descrever suas aulas, intitular sua matéria de “Tudo sobre o nada”?

Jornalista intelectualmente moroso, como a direita que só chega atrasada. Eles torcem para tudo quebrar, quebra bolsonaro, quebra PT, e eles descansam sobre as ruínas putrefatas do país, com o perfume francês de Fernando Henrique Cardoso. Esquecem, entretanto, sua promiscuidade absoluta cúmplice e comparsa de tudo que vem acontecendo de ruim nos 500 últimos anos, inclusive dando margem a ultra direita mais esdrúxula. Os Maias, os Mendes, os Toffolis vão ter que sambar miudinho quando o povo arrancar a carapuça geral dessa direita, que chegou ao seu extremo para revelar a todos, em alto e bom som, que nunca prestou. Nunca prestará.

quarta-feira, 17 de abril de 2019

O cabelo de Belinha


Todo mundo da família queria dar conta do cabelo de Belinha. E ela começou a achar que havia nascido com algum defeito congênito, um problema que estava, literalmente, em sua cabeça.

Influenciada pelas colegas da universidade, resolveu deixar o fluxo natural dos seus fios, embolando um no outro, como amantes pervertidos, dando a sua cabeça um aspecto majestoso, semelhante a coroa de uma rainha. Chamaram isso de transição, para ela era a descoberta de outro mundo dentro de si.

Percebeu no espelho que o seu rosto assumiu uma espécie de voluntariedade, diria até certa soberba e se achou realmente bela, pela primeira vez em sua vida. Um nojo da família que a pedia que “domasse o cabelo”, um nojo da irmã, empurrando-lhe produtos caros, misturando discurso de auto-ajuda ao de marketing de venda. Tudo para ela conseguir bater a meta de vendas no mês e para que o seu cabelo ficasse mais sedoso “porque a aparência influencia os negócios”.  Gastou todo dinheiro da primeira bolsa de iniciação científica com o engodo estético, daquela que se dizia sua melhor amiga. Não gostou do resultado, parecia “uma cara lambida”, com tanto creme e mais creme.

“Filha, você tem pele branca, esse cabelo não combina contigo. Dá uma escova”. Não soube o que dizer à mãe, numa certa manhã, e só respondeu, com indisfarçado espanto: “eu gosto”. Estava atrasada demais para pegar o ônibus. Mais tarde, no coletivo, observando os transeuntes, uma tristeza lhe invadiu o peito. Tentava decifrar o enigma da frase proferida por aquela que lhe era uma referência, aquela que, em todo aniversário, presenteava-lhe com romances e livros de contos. Ela mesma, a mãe, acostumada a reclamar do preço dos salões, ela mesma, tentando “tratamentos” miraculosos para o cabelo, em casa.

O pai de pele branca, cabelo crespo, já quase careca, a mãe pele bronzeada, como se auto classificava, com a cabeleira vasta contida com grampos, ou passada a ferro, lisinha e batida. Aquela família meio branca tentava amaciar-lhe o pecado por ter nascido com um cabelo que desafiava a lei da gravidade, incutindo-lhe valores que, agora, lhe pareciam estranhos, para não dizer violentos.

Lembrou da primeira vez, quando completara cinco anos, que sua avó a levou num salão de beleza. A mulherada riu quando ela desmontou o cabelo, que vivia sempre diligentemente trançado, com lacinhos na ponta. Foi a primeira vez que percebeu como adultos podiam destruir a subjetividade de crianças, com preconceitos, e “frases despretensiosas”. Escovou o cabelo da pequena para ficar liso e assim foi, até a adolescência.

Pensou em abandonar a casa, viver em república, com as colegas igualmente crespas. O pai, percebendo a tristeza da filha, diante de outra discussão feia com a mãe, só disse, “deixa ela, está cada vez mais parecida com a tia Flora”.  Tia Flora, irmã do pai, era considerada, por todos, “a mais preta da família”.

Saiu desolada com aquele cenário recôndito, que agora se revelava, a família negava sua origem negra, disfarçada sob o olhar de censura da mãe, a indiferença do pai e os conselhos estéticos e interesseiros da irmã mais velha.

Um dia, novamente cedo, a mãe falou alto da cozinha, como se conversando consigo, fazendo questão, no entanto, de que todos a ouvissem em casa:

 - Não vejo a hora dessa moda de cabelo duro passar!

Subiu-lhe uma fúria, porque sabia que a fala era para ela.  Na cozinha, olhou para a mãe, que no momento cortava um tomate na pia. Disse, em tom engasgado, como num choro contido:

- Pena que burrice não passa como as coisas da moda, não é mãe?

Bateu a porta, saiu triste, sem tomar café. Nunca havia chamado sua mãe de burra e no ônibus não conseguia pensar em nada. Entrou na sala de aula, duas meninas brancas elogiou seu cabelo, artificiais como toda menina de cabelo liso. Outra amiga, de cabelo escovado, preta retinta, disse-lhe não ter coragem de assumir o crespo, porque nela “não ficava tão bonito assim”.

“Você está mais bonita e eu não sei, exatamente, porque estou achando isso”. Foi a frase mais sensível que ouviu naquele dia, dita por um colega, a quem começara, naquele momento, prestar a atenção. Ele sentava isolado: pele clara, igual à dela, cabeleira vasta, com rodopios cacheados na frente, mechas crespas nos lados e atrás. Pensou que poderiam ser irmãos, pelo menos parentes. Ficou mais achegada e passou a fazer trabalhos com ele.

Durante uma festa de república, o colega contou sua história pessoal. A mãe era negra e o pai branco. A família do pai vivia fazendo piada do cabelo do menino e a mãe incomodada o queria sempre cortado. “Tipo de soldado, é mais bonito, dizia”. Depois uma impaciência acumulada com o tio que chegava na sua casa e, a primeira coisa que fazia, puxava o cabelo do sobrinho, meio agressivo, sem perceber. Dizia coisas como: “que cabelo lindo”. Exotizava-o como um animal raro: “olha que cabelão!”. E o puxava novamente.

A avó, mãe do pai, quase esquizofrênica, arrumava seu cabelo pra lá e pra cá, enrolava com o dedo, passava creme. Dizia que estava bonito em um dia, e, no outro, queria cortar. Via-se uma impaciência, aparentemente controlada de alguém que, por trás do discurso politicamente correto (“meu neto tem que deixar o cabelo crescer, gosto dele grande e natural”), queria mesmo que ele não fosse tão preto como a família da nora. Queria um filho mais branco como seu pai que vinha de uma família de “recém brancos, com um monte de pretos ancestrais, via-se isso nas fotos antigas”.

O menino ria com ironia do drama familiar, contado para a colega, agora confidente e cúmplice.

Depois da narrativa, movidos pelo álcool, pela música e pelos hormônios que dançavam em seus corpos, eles se beijaram. E seus cabelos se uniram e seus cheiros se casavam. Sentiam-se mensageiros de um mundo novo, peles negras sob as peles claras. Juntos resistiam, simplesmente porque lhes era negada e tripudiada sua ascendência não branca, exibidas nitidamente nas suas cabeças de monarcas.

Belinha tirou do bolso o celular e fez uma self com seu colega, irmão crespo, agora amante. No story do instagram da menina, todos seus seguidores podiam ler a frase, “quem ama não controla o cabelo de ninguém”.  E ver, em vintage, a foto: o sorriso e abraço dos dois, mãos erguidas para cima, gesticulando felicidade momentânea e lutas futuras.