Todo mundo da família queria dar conta do cabelo de Belinha.
E ela começou a achar que havia nascido com algum defeito congênito, um
problema que estava, literalmente, em sua cabeça.
Influenciada pelas colegas da universidade, resolveu deixar
o fluxo natural dos seus fios, embolando um no outro, como amantes pervertidos,
dando a sua cabeça um aspecto majestoso, semelhante a coroa de uma rainha.
Chamaram isso de transição, para ela era a descoberta de outro mundo dentro de
si.
Percebeu no espelho que o seu rosto assumiu uma espécie de
voluntariedade, diria até certa soberba e se achou realmente bela, pela
primeira vez em sua vida. Um nojo da família que a pedia que “domasse o cabelo”, um nojo da
irmã, empurrando-lhe produtos caros, misturando discurso de auto-ajuda ao de
marketing de venda. Tudo para ela conseguir bater a meta de vendas no mês e
para que o seu cabelo ficasse mais sedoso “porque a aparência influencia os negócios”. Gastou todo dinheiro da primeira bolsa de
iniciação científica com o engodo estético, daquela que se dizia sua melhor
amiga. Não gostou do resultado, parecia “uma cara lambida”, com tanto creme e mais creme.
“Filha, você tem pele branca, esse cabelo não combina
contigo. Dá uma escova”. Não soube o que dizer à mãe, numa certa manhã, e só
respondeu, com indisfarçado espanto: “eu gosto”. Estava atrasada demais para
pegar o ônibus. Mais tarde, no coletivo, observando os transeuntes, uma
tristeza lhe invadiu o peito. Tentava decifrar o enigma da frase proferida por
aquela que lhe era uma referência, aquela que, em todo aniversário,
presenteava-lhe com romances e livros de contos. Ela mesma, a mãe, acostumada a
reclamar do preço dos salões, ela mesma, tentando “tratamentos” miraculosos
para o cabelo, em casa.
O pai de pele branca, cabelo crespo, já quase careca, a mãe
pele bronzeada, como se auto classificava, com a cabeleira vasta contida com
grampos, ou passada a ferro, lisinha e batida. Aquela família meio branca
tentava amaciar-lhe o pecado por ter nascido com um cabelo que desafiava a lei
da gravidade, incutindo-lhe valores que, agora, lhe pareciam estranhos, para não
dizer violentos.
Lembrou da primeira vez, quando completara cinco anos, que sua
avó a levou num salão de beleza. A mulherada riu quando ela desmontou o cabelo, que vivia sempre diligentemente trançado, com lacinhos na ponta. Foi a primeira
vez que percebeu como adultos podiam destruir a subjetividade de crianças, com
preconceitos, e “frases despretensiosas”. Escovou o cabelo da pequena para ficar
liso e assim foi, até a adolescência.
Pensou em abandonar a casa, viver em república, com as
colegas igualmente crespas. O pai, percebendo a tristeza da filha, diante de outra discussão feia com a
mãe, só disse, “deixa ela, está cada vez mais parecida com a tia Flora”. Tia Flora, irmã do pai, era considerada, por
todos, “a mais preta da família”.
Saiu desolada com aquele cenário recôndito, que agora se
revelava, a família negava sua origem negra, disfarçada sob o olhar de censura
da mãe, a indiferença do pai e os conselhos estéticos e interesseiros da irmã
mais velha.
Um dia, novamente cedo, a mãe falou alto da cozinha, como se
conversando consigo, fazendo questão, no entanto, de que todos a ouvissem em
casa:
- Não vejo a hora dessa
moda de cabelo duro passar!
Subiu-lhe uma fúria, porque sabia que a fala era para
ela. Na cozinha, olhou para a mãe, que no
momento cortava um tomate na pia. Disse, em tom engasgado, como num choro contido:
- Pena que burrice não passa como as coisas da moda, não é
mãe?
Bateu a porta, saiu triste, sem tomar café. Nunca havia chamado
sua mãe de burra e no ônibus não conseguia pensar em nada. Entrou na sala de
aula, duas meninas brancas elogiou seu cabelo, artificiais como toda menina de
cabelo liso. Outra amiga, de cabelo escovado, preta retinta, disse-lhe não ter
coragem de assumir o crespo, porque nela “não ficava tão bonito assim”.
“Você está mais bonita e eu não sei, exatamente, porque
estou achando isso”. Foi a frase mais sensível que ouviu naquele dia, dita por
um colega, a quem começara, naquele momento, prestar a atenção. Ele sentava
isolado: pele clara, igual à dela, cabeleira vasta, com rodopios cacheados na
frente, mechas crespas nos lados e atrás. Pensou que poderiam ser irmãos, pelo
menos parentes. Ficou mais achegada e passou a fazer trabalhos com ele.
Durante uma festa de república, o colega contou sua história
pessoal. A mãe era negra e o pai branco. A família do pai vivia fazendo piada
do cabelo do menino e a mãe incomodada o queria sempre cortado. “Tipo de
soldado, é mais bonito, dizia”. Depois uma impaciência acumulada com o tio que
chegava na sua casa e, a primeira coisa que fazia, puxava o cabelo do sobrinho,
meio agressivo, sem perceber. Dizia coisas como: “que cabelo lindo”. Exotizava-o como um
animal raro: “olha que cabelão!”. E o puxava novamente.
A avó, mãe do pai, quase esquizofrênica, arrumava seu cabelo
pra lá e pra cá, enrolava com o dedo, passava creme. Dizia que estava bonito em
um dia, e, no outro, queria cortar. Via-se uma impaciência, aparentemente
controlada de alguém que, por trás do discurso politicamente correto (“meu neto
tem que deixar o cabelo crescer, gosto dele grande e natural”), queria mesmo que
ele não fosse tão preto como a família da nora. Queria um filho mais branco
como seu pai que vinha de uma família de “recém brancos, com um monte de pretos
ancestrais, via-se isso nas fotos antigas”.
O menino ria com ironia do drama familiar, contado para a colega,
agora confidente e cúmplice.
Depois da narrativa, movidos pelo álcool, pela música
e pelos hormônios que dançavam em seus corpos, eles se beijaram. E seus cabelos
se uniram e seus cheiros se casavam. Sentiam-se mensageiros de um mundo novo,
peles negras sob as peles claras. Juntos resistiam, simplesmente porque lhes
era negada e tripudiada sua ascendência não branca, exibidas nitidamente nas suas cabeças de monarcas.
Belinha tirou do bolso o celular e fez uma self com seu
colega, irmão crespo, agora amante. No story
do instagram da menina, todos seus seguidores podiam ler a frase, “quem ama não
controla o cabelo de ninguém”. E ver, em
vintage, a foto: o sorriso e abraço dos dois, mãos erguidas para cima,
gesticulando felicidade momentânea e lutas futuras.
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