segunda-feira, 21 de novembro de 2011
domingo, 20 de novembro de 2011
A clínica de branqueamento
Para Gal Cavalcante, Claudinha Pacheco e Naionara Maia.
Para Aldri Anunciação e Lázaro Ramos
Daquele lado ali. Duas quadras depois, passando por uma rua estreita, naquele terreno baldio, onde funcionava um antigo posto de combustível da Pré-sal Ltda. Um casarão verde, com janelas amarelas, cheio de mato e com enormes palmeiras na frente. Você toca a sirene, vai soar um som de música antiga de Ary Barroso, uma moça vai atender, você diz logo que quer marcar consulta.
É simples assim? Será se eu posso marcar a consulta para o mesmo dia? Soube que eles pedem logo um cheque caução de 3 mil.
Pode, no ato. É só pressão psicológica. Eles querem saber se você tem condição mínima mental, mais do que financeira, para fazer o procedimento. Toma aqui, leva um cheque meu, é garantia, estou te dizendo! Mostre o checão, a moça da recepção vai logo abrir o sorriso. Outra coisa: um tipo como o seu, não vai ter dificuldade, é cliente mais fácil e comum. Talvez você sirva de modelo, se você não quiser passar pelo finalzinho da segunda fase do procedimento
Tem uma segunda fase?
Vou te explicar direitinho, tudo é muito sigiloso. A primeira fase eles chamam de “correção”, a segunda fase tem três etapas: negação, esquecimento e apagamento. Nessa primeira fase, é o básico, vão mexer nos seus cabelos, na sua pele...
Ah, eu quero!
Bom, eles têm os melhores profissionais dessa área. Mas, continuando... Depois de mexer nos seus cabelos, vão tirar um molde de seu nariz, uma imagem aparecerá no telão, sua foto já vai estar lá, com mudanças possíveis numa escala chamada pitariana, concebida pelo dono da clínica. Essa escala com alguns caracteres nacionais começa com o modelo Pitanga, baseado naquela atriz, e vai até o tipo Ariano, sueco e norueguês. É bem respeitada, foi desenvolvida durante 50 anos, em Salvador. O dono da clínica dirigia um desses blocos famosos e caros, que desfila no circuito Barra/Ondina, usava essa escala para selecionar pessoas para seu bloco. Mas depois, moveram um processo contra ele, e ele abriu essa clínica clandestina.
Mas eu pensei que a dona era uma mulher. Me disseram até que ela desenvolveu técnicas em si mesma. E que foi a partir dessas técnicas que ...
Sim, na verdade é esse casal quem manda na clínica: ele e ela. Ela tinha um grande salão de beleza no Corredor da Vitória e abriu uma filial na Liberdade. Você pode achar estranho a ideia de uma filial num bairro como aquele, você sabe, com aquele tipo de gente... Mas ela começou a fazer sucesso lá dentro, colocou um super anúncio num balão suspenso no Campo Grande, durante um carnaval: “Cabelo crespo tem solução”. Choveu mulher e também homem. O método era avançadíssimo e não tinha essas nomenclaturas orientais de tratamentos arcaicos: tipo chinesa, tailandesa, marroquina. Ela implantava, com uma seringa, no meio da cabeça das clientes, um gene, isolado por biólogos americanos, a partir de uma população no norte da Noruega. O processo é simples: uma sequencia especifica de ácidos nucleicos do gene fica sobre o couro cabeludo e outra atravessa o crânio em direção aos neurônios. A primeira sequência deixa o cabelo liso e louro, a outra sequencia muda a mente. O problema na Liberdade, é que a segunda sequencia não conseguia atravessar os crânios das meninas e muitas reclamavam por seu cabelo de volta. Resultado, faliu. No Corredor da Vitória, por outro lado deu certo, mas eram poucas clientes. Ela resolveu investir nessa clínica clandestina, o marido topou. Junto com o marido, que fez Medicina e se especializou em dermatologia estética, uma ciência nova do mercado, formularam esse conjunto de técnicas revolucionárias, que ainda não são reconhecidas, oficialmente, embora todo mundo saiba que existam.
Ah, mas em minha pele eu não quero mexer, só no cabelo...
Por isso mesmo que eu te disse: Você é uma cliente comum, fácil de tratar. Está num nível médio daquela escala que te falei. Vão fazer desconto e você divide no cartão, ficam bem leve as parcelas... Você faz a primeira fase, que é cabelo e pele, depois você ver a necessidade de fazer a segunda fase.
Tá, essa primeira fase eu entendi, mais ou menos. Mas a segunda fase...
Eu te explico. É uma abordagem multidisciplinar e radical, desenvolvida por esse casal, inicialmente por ela, uma mulher muito inteligente. Como eu te disse, quando ela percebeu que aquela sequencia de ácido nucleico não conseguia atravessar o crânio das meninas da Liberdade, ela foi a Faculdade de Medicina com o marido, que aliás tinha estudado lá. Um velho professor, explicou que só a injeção genética não seria suficiente, era preciso um investimento numa equipe multidisciplinar. Ela não entendeu e perguntou, se era preciso outros médicos de outras especialidades. O velho médico sorriu e disse: “não multidisciplinar dentro da medicina. Multidisciplinar dentro das ciências humanas, digo filosofia, sociologia, psicologia, linguística...” Dois dias depois o velho médico morreu, mas com a ajuda de manuscritos desse médico, dizem que achados, outros dizem que roubados, o casal desenvolveu essas técnicas...
Quer dizer que lá dentro tem filósofos, psicólogos, sociólogos e linguistas? Ah sim..uma vizinha minha, que sabe dessa clínica, me disse que um pastor evangélico, amigo dela, trabalha lá também.
Esse foi colocado pra fora. Começou a querer ser melhor do que o filósofo e daí enxotaram ele de lá! Mas, ele se deu bem, está com outra clínica, abriu concorrência, o diferencial do serviço dele é que, utilizando técnicas semelhantes, está conseguindo, através de um processo chamado reversão, fazer com que pessoas desempenhem, naturalmente, sua sexualidade original, tenho até uma propaganda da clínica dele, funciona no fundo da igreja mesmo, por isso não é considerada clandestina. No folheto diz assim: “volte a ser homem, volte a ser mulher, Deus quis assim, você também quer”. O problema dele, segundo me contou a dona da clínica, é que parece com Rousseau, acredita num homem único, numa mulher única, para ser mais preciso: seu homem único e sua mulher única. O historiador e o sociólogo, além do filósofo, logo o rechaçaram, ele não só atrapalhava o trabalho de todo mundo, como queria se meter no que não era de sua conta, no que não sabia.
Ainda bem que não preciso desse serviço de reversão, eu nasci assim, eu cresci assim: sempre mulher que gosta de homem. Mas me fala mais sobre essa segunda fase do procedimento, dessa equipe multidisciplinar...
Bom, melhor do que contar o que acontece lá dentro, eu vou contar o que aconteceu comigo, quando entrei lá. Eu passei por esse processo, e me interessei por tudo. Eu fui até o último nível da segunda fase, que é o mais radical, eles chamam simplesmente de apagamento, mas antes disso passei por vários outros processos. Aconteceu há três anos. Fui lá, marquei a consulta para o mesmo dia, uma moça muito simpática me atendeu, li alguns termos, inclusive o do cheque caução. Ela me trouxe duas profissionais, uma olhou meu cabelo e a outra trouxe um estojo com pós diferentes de cores, como um estojo de maquiagem. Eles me explicaram a escala pitariana, exibiram as possibilidades, e eu escolhi essa que hoje eu sou.
Nossa! Quando te encontrei no mercado, falando sobre essa clínica para aquela moreninha, nem imaginava que você mesma tinha passado por isso. Você está outra coisa, realmente muito linda...
Estou não, querida, eu sou outra coisa. Uma das coisas que eles ensinaram na clínica depois de todo o procedimento foi evitar palavras provisórias como o verbo estar, ou que indiquem passado. Em vez do verbo estar, usar o verbo ser, sempre no presente, especialistas que trabalham lá conseguiram fazer com que evitasse palavras como essas, eu aprendi rápido. Eu sou branca e sou brasileira, passei por todo o processo e venci todas as etapas, sou outra. Estava fora da escala pitariana, agora sou quase ariana.
Estou vendo, olhe esses cabelos, quanta mudança! Certamente o tal ácido nucleico entrou na sua cabeça também.
Eles disseram que eu era muito obediente, o ácido facilmente atravessaria o coro cabeludo. Mas eu quis garantir, depois daquela experiência frustrada da Liberdade, sei lá... As meninas com cabelo mudado, liso, mas a cabeça continuava a mesma, era uma coisa estranha e desafiadora. Depois que passei pelo tratamento de pele, pois não precisei mudar muita coisa no rosto, já estava uma outra. Você precisa ver, é uma técnica eficaz, desenvolvida a partir de uma mudança na cadeia genética, que produz o vitiligo e o albinismo, fez toda a diferença.
Parece a pele daqueles atores brancos de Malhação, sem uma mancha...
Perfeita, não é? Fui para o segundo andar do casarão verde (é assim como chamam a clínica), o andar do TENA, setor de terapias de negação, esquecimento e apagamento. No fundo uma enorme pintura de um espanhol, chamado Modesto y Brocos, a original de “A rendenção de Cã”, adquirida pelo pastor que foi expulso. Muitas salas, distribuídas em um enorme corredor, parece até uma escola. Na primeira sala um psicólogo e um linguista me atenderam, eram bem joviais e simpáticos, usavam camisa de gola polo e tênis da Nike, pareciam gêmeos. Atuavam no nível mental e da linguagem, segundo eles. Perguntaram com quem eu andava, eles gostaram muito das minhas respostas. Disse que andava mais com pessoas que não pareciam comigo, e que eu queria parecer com elas, elas eram o que eu queria ser, depois de passar por aquele procedimento. O linguista acentuou que era preciso falar como elas, agir como elas, evitar qualquer outra história de vida, modelo de beleza, que não sejam os delas. Usar os mesmos cosméticos, gostar do mesmo tipo de rapazes, frequentar os mesmos espaços, professar a mesma religião etc. Disse assim: “Esta etapa se chama negação: evite, por favor, esse português canhoto que você aprende em casa com seus pais, evite qualquer referencia de origem dos seus pais, seus avós... qualquer história que te contarem de sofrimento ou de vitória, que tenha como referencia um mundo fora do hemisfério norte. No setor de história e filosofia você vai aprender mais sobre isso, mas, de antemão, evite qualquer referencia linguística, ou seja, ditos, provérbios, expressões, sintaxes, que não sejam do mundo lá de cima”. Ofereceu-me uma lista de palavras que chamou de “variantes de prestígio” e pediu que estudasse todos os dias.
Vixe... vão mexer no meu português também... é uma limpeza geral!
Bota geral nisso. O psicólogo diferente do linguista começou com aquele jeito de perguntas. Colocou-me diante de um espelho, perguntou como eu me via, quem era eu, como era a minha relação com a família. Pedia que me identificasse com coisas positivas. Respondi que não queria ser mais aquilo que alguns poucos teimosamente me chamavam, custava ver no espelho isso, queria ser uma outra. Ele sorria, dizia sempre assim, com voz calma de psicólogo: “o objetivo é esse, o objetivo é esse”. A partir de hoje você é apenas brasileira e branca, está caminhado pra isso, mas já saia daqui, dessa sala, pensando assim. Disse que eu evitasse qualquer referência outra e no máximo eu admitisse ser mestiça e brasileira, essas palavras são possíveis, porque no fundo negam as indesejáveis, aquelas referentes ao lado de baixo do hemisfério global, o coração das trevas, “segundo o velho e bom Conrad” dizia ele, sorrindo no canto da boca e batendo os dedos no joelho. Depois disso, fez olhar sério, foi mais profundo e me apresentou a seguinte conclusão: “quando você admite se constituir de coisas positivas e negativas, tudo misturado, você destitui qualquer possibilidade de identificação com as negativas, já que todo mundo desejará ver em você apenas as primeiras. Portanto, ser mestiço e ser brasileiro é como ser branco, no fundo é uma coisa boa”. Ele dizia estar me ensinando o esquecimento.
Então, para aquelas meninas da Liberdade, faltou justamente isso: um psicólogo e um linguista, machos de verdade, que ensinassem a negação e o esquecimento!
Sim, o método estava dando certo por isso. As meninas da Liberdade, aquelas malucas, estavam dando volta na cabeça delas mesmas, inicialmente, e a dos outros depois: transformavam as tais coisas negativas em coisas positivas, era uma inversão total das técnicas da clínica, chamavam essa loucura de políticas afirmativas. Eu, não, segui tudo à risca, depois que saí da sala do linguista e do psicólogo fui para a sala do filósofo e do historiador. O filósofo vestia uma roupa antiga, parecia um traje grego, igualzinho ao de Eric Bana intepretando Heitor no filme Tróia. O historiador usava um guarda-pó e estava diante de um mapa múndi esquisito, era o mundo, mas faltava pedaços dele, estava distorcido. Não via o grande continente do meio, aquele que não ouso dizer o nome, desde quando saí da clínica. Não vi as ilhas do Caribe. A Índia e a China estavam com seus territórios diminuídos. O Brasil era maior que todos os países, parecia mais unificado, mais compacto e imponente, sem buracos e sem fronteiras, a Europa despencava lá de cima e Portugal chegava a tocar na costa brasileira, numa curvatura esquisita. O filósofo recitou trechos do Ilíada de Homero, pensamentos socráticos, foi me explicando a história da Grécia, berço do pensamento ocidental, falou sobre o homem universal, cósmico, com enormes pernas de astronauta, pisando em todas as diferenças. Filosofia, pensamento, Europa, na fala dele, constituíam uma síntese completa que resumia e explicava o mundo. O historiador entregou-me um livro de história, pediu que rasgasse todas as páginas antes do ano de 1888, mais de 350, só restaram bem pouquinhas. Falou de símbolos nacionais do colorido vitorioso da nação, e fez uma grande concessão aos anos anteriores, ao lembrar de figura como Pedro Álvares Cabral, Tomé de Souza e Martim Soares Moreno. No final, disse que o melhor mesmo era entender a história a partir do meu nascimento, não importava o que veio atrás, a história atrapalhava a vida das pessoas. O nascimento depois de tudo aquilo era o final do procedimento na clínica, eu nasceria de novo quando saísse dali. Ele me conduziu a uma outra sala, a última. Um sociólogo de cabelo desgrenhado, vestindo uma roupa puída e suja me recebeu, na mão de unhas enormes e imundas, uma almofada de tinta para tirar a impressão digital, na outra uma folha de papel. Sua sala parecia uma oficina: maquinário de impressão e de gráfica. No fundo da sala, num canto sujo: livros antigos de Florestan Fernanes, Artur Ramos e Gilberto Freire, seu diploma da USP em Ciências Sociais estava lá também, amarelado e roído de traças. Disse pra mim, em tom de ordem. “Escolha aqui um nome”.
Ui... não acredito, que até de nome você mudou.
Sim, mudei, mas deixa eu te contar o restante. Na lista dos sobrenomes mais caros estavam os alemães, cheios de h, de w e de y. Depois empatados, os ingleses e os franceses, os russos também, mas ninguém escolhiam esses, era muito difícil soletrar. Alguns nomes em espanhol e italiano estavam lá. Havia o que eles chamavam de nomes portugueses raros, entre eles Abranches, Botica, Candal, Cardim etc. Eu sonhava em ter sobrenome italiano, tipo Matarazzo, Corleone, Borgia, até nomes obscuros de uns anarquistas que chegaram na época da imigração. Daí o que eu fiz: comprei uma preposição italiana baratinha “di”, no desconto, e juntei com um sobrenome português raro: Alencastro. De forma que meu novo nome, bem europeu, é Maria Clara di Alencastro. Nada desses nomes “pés rapados”, Silva, Santos, Souza, Pereira. Bem chique, não é? O sociólogo me disse que era boa escolha. Chamou-me a atenção dizendo assim: “com esse cabelo, com essa pele, não há como dizer que você é originária daquele continente esquisito”. E lembrou: “está vendo aí nem precisou casar com europeu, ou descendente, para ter nome chique, só nessa clínica a senhora poderia fazer isso”.
Chiqueza mesmo, parece nome de condessa nórdica, daquelas que quase não toma sol. Talvez uma vez por ano, no máximo.
Pois é. O sociólogo pegou minha mão violentamente, foi lambuzando na almofada e pressionando, num papel, dizendo e resmungando: “Essa é sua nova identidade, você está passando por um processo de apagamento. Nós sociólogos cansamos de tentar efetivar esse processo, por décadas, com livros, produção de teorias, ideias mirabolantes, estamos pegando no pesado agora, ninguém acredita mais em sociólogo, minha filha! Não precisamos mais dizer que todo problema é social, que tudo vai se resolver com a distribuição de renda. A gente resolve agora na força”. Ele mandou eu sair, pegar minha identidade e meu novo endereço na recepção. Ele era bruto, deu uma olhada na minha bunda,lascivamente, e se despediu.
Você mudou de endereço?
Sim, eu mudei da minha cidade, não tenho mais o contato de minha família. Sou outra pessoa, digo sempre ser a última pessoa, e que toda minha família morreu, como eles me orientaram. Bom, mas nossa conversa acaba por aqui. Venha comigo, vou te levar até aquela esquina... Pronto, daqui você pode seguir sozinha, não quero que eles me vejam. Vá, vá minha filha, não fique com medo, só existe esse caminho.
(A mulher seguiu meio hesitante no caminho obscuro, por dentro dos matos, em direção a clínica, que exibia agora um enorme letreiro colorido, onde se lia “Brasil”. Enquanto a outra, de longe, acompanhava seus passos, com enorme tristeza no coração).
quinta-feira, 3 de novembro de 2011
O discurso fundacional americano e a eleição de Obama
(Nota do blogueiro: esse texto faz parte de algumas de minhas reflexões sobre a ideia de origem nacional e o cenário político mundial. Analisa a representação da eleição de um presidente negro nos Estados Unidos, e como ela configura ao mesmo tempo continuidade e descontinuidade do conhecido discurso fundacional americano. O cinema e os símbolos da nacionalidade americana são também elementos contemplados na produção desse texto.)
Por: Marcos Aurélio dos S. Souza
A primeira eleição de um afro-americano à presidência dos Estados Unidos oferece um cenário para a compreensão da relação de forças, operada no discurso da origem nacional. Origem que se quer contínua, mas se depara com fenômenos históricos descontínuos e imprevisíveis.
O discurso de fundação, reproduzido na história oficial dos Pilgrins Fathers ou na recorrente lembrança política dos “presidentes fundadores”, cujas faces gigantescas foram “eternizadas” no Monte Rushmore, encontrou sua versão mais desconcertante não apenas na figura do filho de um queniano com uma americana branca, ostentando o nome islâmico de Barak Hussein Obama, mas também na imagem de toda uma família negra ocupando a Casa Branca. Sem enfatizar a história de luta dos negros americanos (uma luta contra a segregação que lhes vetavam, por exemplo, a presença em espaços ordinários como banheiros, assentos de ônibus etc.), e também sem negá-la, foi especialmente com uso rasurado e estratégico da retórica fundacional que Obama construiu sua singular e incômoda marca discursiva na política americana contemporânea.
O cinema e televisão americanos têm demonstrado a ambivalência que causa a idéia de um político negro ocupando o mais alto cargo político dos Estados Unidos. Em um episódio de uma das séries americanas mais populares House (2005), um fictício senador negro tem sua doença desvendada pela inteligência sarcástica de Gregory House, o médico protagonista dessa série homônima. Num dos diálogos desse episódio ao falar de suas aspirações à Casa Branca, o senador e candidato a presidência dos Estados Unidos ouve com descrença a declaração de House: “a Casa Branca não é conhecida assim por causa de sua pintura”, sugerindo uma conotação segregacionista desse emblemático locus do poder político americano. Entretanto, apesar do pessimismo de House, outras produções cinematográficas já anteciparam presidentes negros em suas narrativas fictícias, por exemplo, nos filmes O presidente negro (filme de 1972, cujo protagonista foi interpretado pelo ator negro James Earl Jones), Impacto profundo (filme com Morgan Freeman, interpretando o papel principal), e em outra série, intitulada “24 h.”, cujo personagem, David Palmer, vivido pelo ator Dennis Haysbert, ficou popularmente conhecido. Todos esses presidentes fictícios, entretanto, não produzem em si, nenhuma rasura no discurso fundacional americano, já que nessas produções cinematográficas não se expõem, por exemplo, o persistente teor racial e segregacionista de uma fundação.
A idéia de rasura significa aqui, ao mesmo tempo, reprodução e o deslocamento desse discurso, do seu domínio ideológico, de seu controle e de sua autoridade, por um acontecimento aleatório e imprevisivelmente descontínuo, que escapa a essa contenção permanente da origem e acompanha, por outro lado, à emergência de demandas específicas em situações históricas e culturais diversas. Para o discurso ultra-nacionalista e quase folclórico da herança branca americana, defendido pela Ku Klux Klan, e também para o conhecido padrão fundador WASP (White, Anglo-Saxon and Protestant), racista e anti-imigracionista, a vitória de um negro criou impacto curioso e desconcertante, porque ela aconteceu sob a mesma pompa da retórica americana, esperada nas grande sucessões presidenciais, quando o candidato eleito assume uma espécie de missão original de seus fundadores.
Entretanto, ao suscitar constantemente em seus discursos o nome de Abrahan Lincoln, personalidade emblemática de fundação da democracia americana, Obama ao tempo em que granjeava certa simpatia de alguns setores mais conservadores com sua lembrança, acionava a seu favor a ambivalência daquele que também se pronunciou contra a escravidão negra. Como político e presidente, Lincoln foi responsável no século XIX pelo fim do sistema escravocrata no sul do país, evitando sua definitiva secessão geopolítica, entre os estados do sul defensores da escravidão, e os estados industriais do norte contrários a ela, num episódio histórico sangrento, conhecido como a Guerra Civil Americana ou Guerra da Secessão.
Ainda que fosse inconcebível a eleição de um negro a presidência americana no século XIX e na percepção do ex-dono de escravos, Lincoln, pois sua posição pelo fim da escravidão se explicava menos na defesa de uma igualdade entre as raças do que nas injunções econômicas de uma sociedade que se industrializava, o ideal democrático constituído nessa época forneceu importantes elementos para o reforço da luta negra na América e no mundo, em sua feição diaspórica e transnacional. Essa luta que teve seus momentos nacionalistas, mas se fortaleceu e se configura até hoje como força dispersiva e multicultural, produz rasuras na perspectiva de um país cuja idéia de legado fundador e nacionalista ainda tem forte apelo na história de seus peregrinos e na perspectiva de uma herança e uma “pureza de sangue” provindas dos mesmos. Essa rasura teve como um dos pontos mais altos, a defesa negra pacífica e nacionalista do pastor Martin Luther King, que acionara uma rede de solidariedades negras na América, Caribe e África, possibilitando e reforçando uma abertura crescente em relação à aquisição por parte dos negros americanos de direitos, bens simbólicos e materiais nos Estado Unidos, cuja culminância nos dias de hoje foi certamente a eleição de Barak Obama.
Lincoln é suscitado, portanto, no discurso de Obama não como um ponto fixo na contínua linha da narrativa fundacional americana no seu sentido etnocêntrico, mas como o seu “melhor anjo”, uma disfarçada linha de fuga da presença fundacional, constituída dentro das possibilidades de sua formação discursiva. Lincoln está dessa forma como presença e ausência na imagem descontínua, evocada pelo presidente negro. Advogado e político de Ilinois, assim como Obama, a imagem desse fundador, aparece ainda no contexto de um país mergulhado numa crise econômica, associada à trágica gestão Bush, e sua iniciativa bélica desastrosa no Iraque e Afeganistão, que entra numa lista de fatos políticos igualmente malfadados, protagonizadas por figuras presidenciais que estão de um padrão WASP. - só para citar os mais conhecidos e emblemáticos: a Guerra do Vietnã e o escândalo Waltergate protagonizados respectivamente pelos ex-presidentes Truman e Nixon. Essas cenas e seus atores de certa forma reforçaram a conhecida “paranóia branca masculina” americana, expressos em filmes do “tipo Rambo e outros de Stallone-Norris”, em que, segundo Douglas Kellner (2001: p. 88): “os homens são vítimas de inimigos externos, de outras raças, do governo e da sociedade em geral”.
Ainda que seguisse a um protocolo nacionalista e retórico na referência ao “pai fundador”, Obama constitui seu discurso em torno de elementos de descontinuidade, reforçado por forças históricas dispersas, e conclamando uma nova (ou uma outra) declaração da independência. Por outro lado, a imagem da família Obama na Casa Branca também se apresentou como uma rasura e uma descontinuidade no discurso do “american way of life", que se deslocou de um ethos do nacionalismo americano, individualista e burguês, para a esteira coletiva e política das populações marginalizadas nos grandes centros urbanos. Um havaiano, filho de africano, e sua mulher filha de um operário de Chicago alcançaram na América não apenas uma vida confortável de classe média ou alta, mas uma posição política de destaque que promoveu uma resposta entusiástica de públicos em situações históricas diferentes: como a de milhares de imigrantes moradores de subúrbios nas grandes cidades européias, a exemplo de Paris e Londres, e de grande parte da população pobre do Quênia, orgulhosa da ascendência comum com o novo presidente americano, cujo slogan de campanha representava uma possibilidade de representação positiva para populações periféricas desprivilegiadas: “yes, we can.” A figura descontínua de um presidente americano negro no contexto contemporâneo convoca para o jogo em que se expõe e se subverte o discurso da presença fundacional, não apenas as demandas transnacionais e diásporicas da luta negra, mas também as resistências políticas da imigração contemporânea.
No lado inverso dessa possibilidade, a defesa de uma continuidade do discurso etnocêntrico da presença apareceu no cenário das eleições de Obama na sua forma mais explícita e também mais violenta, em pelo menos duas ameaças de atentados contra a vida do candidato negro e numa onda de crimes raciais no país, como registra o jornal inglês The Daily Telegraph (2009). Na matéria, intitulada “Barack Obama's election spurs race crimes around the USA” [A eleição de Obama incita crimes raciais em todos os Estados Unidos], datada no dia 16 de novembro de 2008, o jornal lista uma série e manifestações racistas, expressas durante as eleições presidenciais americanas, desde graffitis com clichês racistas como “Go Back To Africa", até atentados físicos sofridos por negros e manifestantes pró-Obama.
A matéria trazia também a opinião de William Ferris, diretor do Centro de Estudos da América do Sul na Universidade da Carolina do Norte, afirmando que os Estados Unidos vivia com a eleição de Obama: "the most profound change in the field of race this country has experienced since the Civil War,"[a mais profunda mudança no campo racial deste país, desde a Guerra Civil]. E: "It's shaking the foundations on which the country has existed for centuries" [Tremendo as fundações sobre as quais o país existiu por séculos]. A idéia expressa pelo verbo shake (em português tremer, sacudir, abalar) aplicado às idéias de fundação ou origem (“foundations”) traz aqui um sentido próximo ao que estamos definindo como um jogo e rasuras promovidas por novas situações e sujeitos histórico-culturais sobre o discurso da presença fundacional. A emergência dessas situações e sujeitos promove uma espécie de abalo, rearticulando antigos e novos caracteres desse discurso e fomentando impactos sociais tão diversos, assim como agenciando novas formas culturais e políticas de resistência.
Mesmo seguindo o protocolo presidencial ao reverenciar os “pais fundadores” (através da figura, nesse caso, controvertida de Lincoln) e o velho espírito da liberdade americana, nenhum presidente americano mobilizou uma atenção tão plural e imprevisível, quanto a que mobilizou o senador negro por Ilinois: o contexto e o sujeito histórico eram outros. Por outro lado, o impacto sobre aqueles ameaçados por esse tremor, por esse jogo discursivo também se manifestou com algumas surpresas, a exemplo da contraditória declaração do pastor Thomas Robb (2008), líder da Ku Klux Klan. Ao tentar dirimir esse impacto, Robb afirmou em seu blog ter sido um mulato, ou um mestiço (“only half black”) e não um negro que ganhou a eleição, depois declarou não estar zangado com os negros americanos, pois na verdade eles votaram em um deles, quanto aos brancos, imprecou-os alertando sobre um futuro não desejável: “As more and more non-whites come into this country the hatred for the founding people will grow” [Com mais e mais não-brancos vindo para esse país, o ódio pelo povo fundador crescerá] .
A fala confusa de Thomas Robb, sobre a condição e a não condição de Obama como negro (um não-negro que na verdade é negro, um mulato, metade negro, metade branco, mas que não é branco) parece querer confundir a posição americana tradicional que não compreende a categoria mestiço como uma condição racial, ou pelo menos como condição de duplo pertencimento, mas como um não-branco, categorizado assim por sua descendência como negro. Sendo que em qualquer outra situação cotidiana e social seu biotipo lhe apresentaria sua condição de negro - passível inclusive de violência por membros da Ku klux klan, em tempos mais agressivos desse grupo - a fala de Robb revela, a tentativa de manutenção do discurso da presença branca (original), com emendas escandalosas que, mesmo sem esse intuito, rasuram-lhe ainda mais. Demonstra, assim, o artificialismo e a produção perniciosamente inventiva do discurso da origem, das narrativas de fundação, dos registros coloniais que apesar de tudo ainda funcionam como justificativas para a permanência dos diversos tipos de segregação e racismo existentes nas sociedades contemporâneas.
Para o discurso da origem metafísica, entendido aqui como essa presença fundacional inventada, a história é um contínuo, iniciada num ponto temporal definido pela escrita e pela narrativa dos que proclamaram a si como “primeiros” e legítimos, em contraposição aos outros ilegítimos, nessa perspectiva, incapazes de narrar sobre si ou agir por si. Entretanto, esse discurso que ainda se apresenta de forma agressiva na atualidade, está cada vez mais sujeito ao confronto e diálogo com movimentos históricos imprevisíveis das relações, e das novas demandas culturais e políticas. As perspectivas historiográficas na contemporaneidade acerca das nações ocidentais não podem ser levadas a sério, sem se considerar a constituição efetiva dessas irregularidades históricas e das violências simbólica e física praticadas em nome do desejo de continuidade e de poder dos discursos de fundação das nações modernas.
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quinta-feira, 20 de outubro de 2011
QUESTÃO SEM NEXO
(Nota do blogueiro: Fui surpreendido com a afirmação de um estudante de Letras: "Estou escrevendo um texto pra colocar no seu blog". E a condicional que soava como pergunta e desafio "claro, se você aprovar". Gostei da afirmação e da condicional desafiadora e decidi que publicaria independente do que se tratasse. Quando li, tive a certeza que os leitores desse blog gostariam. Um texto sensível e corajoso, com reticências que inquietam. Embora, acredite que o mais importante numa pessoa é o seu exterior, porque o interior é mistério, obrigado pelo texto, Lucas!)
Familiares, amigos e conhecidos costumam me questionar qual seria a minha orientação sexual. Nunca compreendi bem porque minha orientação atrai mais atenção das pessoas do que meu caráter e minhas atitudes. Hoje já me acostumei com esse tipo de questionamento (ou dúvida?) e não vejo mais problemas em responder quando me perguntarem: Lucas, qual é a sua orientação sexual?
Por: Lucas Rodrigues Almeida
Familiares, amigos e conhecidos costumam me questionar qual seria a minha orientação sexual. Nunca compreendi bem porque minha orientação atrai mais atenção das pessoas do que meu caráter e minhas atitudes. Hoje já me acostumei com esse tipo de questionamento (ou dúvida?) e não vejo mais problemas em responder quando me perguntarem: Lucas, qual é a sua orientação sexual?
Irei te responder sem receios. Ainda não fiz essa pergunta a mim mesmo. Te juro que nunca me questionei. Risos. Por isso, só posso te responder que sou bem resolvido e bem feliz nas minhas escolhas. Não gosto de qualificar ninguém quanto à orientação sexual. Acho tão imaturo quem é adepto dessa prática.
Digamos que não sou devoto de rótulos apesar de achar essenciais em supermercados. O que seria dos produtos nas prateleiras sem os rótulos? Iríamos comprar leite para o café da manhã e quando chegássemos às nossas casas descobriríamos que compramos extrato de tomate. Não se desespere caro consumidor, pelo menos o molho da macarronada do almoço estaria garantida naquele dia. Concordo que seria uma completa confusão nas compras de produtos nos supermercados, mas acho desnecessário rotular seres humanos. Qual seria a finalidade? Separar pessoas por grupos como os produtos são organizados nas prateleiras dos supermercados? Enfim, não vejo utilidade em classificar pessoas.
Depois acredito que exista nas pessoas algo mais interessante para ser observado do que sua orientação sexual, ou seja, o interior do ser humano. Não compreendo o porquê que os indivíduos se preocupam e oferecem certa importância aos interesses afetivos alheios. Deve ser porque essas pessoas não conseguem resolver os problemas da sua própria vida afetiva e acreditam que questionando a dos outros adquiram experiência para os seus dilemas amorosos. Enfim, existem tantas coisas a serem observadas e comentadas, mas as pessoas se atentam com coisas tão fúteis quanto à preocupação pela orientação sexual de alguém. Ou a resposta vai interferir em alguma coisa?
Acredito também que pessoas bem resolvidas tem escolhas bem definidas. Por isso, considero a minha sexualidade bem resolvida e, assim, não preciso ficar me questionando para suprir a curiosidade de ninguém. Não vejo necessidade nisso.
Acredito ainda que tenho escolhas bem definidas. Faço Licenciatura em Letras, porque acabei me afeiçoando pelo curso e não pela quantidade de dinheiro que acredito que devo ganhar. Quero ser bom no que faço e o dinheiro é a consequência do meu trabalho e decorrente da minha boa administração. Outro fator que me considero bem resolvido é em relação às amizades que adquirir. Tenho amigos de todos os tipos: que usam drogas lícitas e ilícitas; morenos, loiros e ruivos; escuros e claros; virgens e sexualmente ativos; ateus, católicos, evangélicos e que frequentam o candomblé; heterossexuais, gays e lésbicas... não vejo problemas nisso e nem tenho vergonha dos amigos que tenho. Se os escolhi é porque existe algo neles que me cativou. Atenção! Sinto muito, mas não irei destruir a minha amizade com nenhum deles porque você não gostou de uma dessas descrições e também não me preocupo com o que a você está pensando agora de mim.
Sou vacinado, pago minhas contas e sei onde estou pisando. Sei que ninguém influência ninguém. Porque se alguém já se embragou, fumou cigarro, usou machona ou já teve uma relação homoafetiva, não significa dizer que essa pessoa foi influenciada por maus amizades. Ninguém é obrigado a fazer algo que não senti vontade de fazer. Ou você defende aquele ditado preconceituoso que diz: diga-me com quem tu andas que direi quem tu és? Se, de fato, esse ditado for verdadeiro, eu sou a exceção. Tenho as minhas necessidades próprias e acredito que você também deve ter as suas. Pergunte a um heterossexual se ele beijaria alguém do mesmo sexo? Ou a um homossexual se ele transaria com uma mulher? Ou ainda a um dependente químico se quando ele usou primeira vez não foi por curiosidade? Finalmente, chegamos a palavra-chave a curiosidade. A resposta está na curiosidade e não na influência de alguém. Ou você nunca foi jovem e não teve as suas curiosidades?
Digamos que não sou devoto de rótulos apesar de achar essenciais em supermercados. O que seria dos produtos nas prateleiras sem os rótulos? Iríamos comprar leite para o café da manhã e quando chegássemos às nossas casas descobriríamos que compramos extrato de tomate. Não se desespere caro consumidor, pelo menos o molho da macarronada do almoço estaria garantida naquele dia. Concordo que seria uma completa confusão nas compras de produtos nos supermercados, mas acho desnecessário rotular seres humanos. Qual seria a finalidade? Separar pessoas por grupos como os produtos são organizados nas prateleiras dos supermercados? Enfim, não vejo utilidade em classificar pessoas.
Depois acredito que exista nas pessoas algo mais interessante para ser observado do que sua orientação sexual, ou seja, o interior do ser humano. Não compreendo o porquê que os indivíduos se preocupam e oferecem certa importância aos interesses afetivos alheios. Deve ser porque essas pessoas não conseguem resolver os problemas da sua própria vida afetiva e acreditam que questionando a dos outros adquiram experiência para os seus dilemas amorosos. Enfim, existem tantas coisas a serem observadas e comentadas, mas as pessoas se atentam com coisas tão fúteis quanto à preocupação pela orientação sexual de alguém. Ou a resposta vai interferir em alguma coisa?
Acredito também que pessoas bem resolvidas tem escolhas bem definidas. Por isso, considero a minha sexualidade bem resolvida e, assim, não preciso ficar me questionando para suprir a curiosidade de ninguém. Não vejo necessidade nisso.
Acredito ainda que tenho escolhas bem definidas. Faço Licenciatura em Letras, porque acabei me afeiçoando pelo curso e não pela quantidade de dinheiro que acredito que devo ganhar. Quero ser bom no que faço e o dinheiro é a consequência do meu trabalho e decorrente da minha boa administração. Outro fator que me considero bem resolvido é em relação às amizades que adquirir. Tenho amigos de todos os tipos: que usam drogas lícitas e ilícitas; morenos, loiros e ruivos; escuros e claros; virgens e sexualmente ativos; ateus, católicos, evangélicos e que frequentam o candomblé; heterossexuais, gays e lésbicas... não vejo problemas nisso e nem tenho vergonha dos amigos que tenho. Se os escolhi é porque existe algo neles que me cativou. Atenção! Sinto muito, mas não irei destruir a minha amizade com nenhum deles porque você não gostou de uma dessas descrições e também não me preocupo com o que a você está pensando agora de mim.
Sou vacinado, pago minhas contas e sei onde estou pisando. Sei que ninguém influência ninguém. Porque se alguém já se embragou, fumou cigarro, usou machona ou já teve uma relação homoafetiva, não significa dizer que essa pessoa foi influenciada por maus amizades. Ninguém é obrigado a fazer algo que não senti vontade de fazer. Ou você defende aquele ditado preconceituoso que diz: diga-me com quem tu andas que direi quem tu és? Se, de fato, esse ditado for verdadeiro, eu sou a exceção. Tenho as minhas necessidades próprias e acredito que você também deve ter as suas. Pergunte a um heterossexual se ele beijaria alguém do mesmo sexo? Ou a um homossexual se ele transaria com uma mulher? Ou ainda a um dependente químico se quando ele usou primeira vez não foi por curiosidade? Finalmente, chegamos a palavra-chave a curiosidade. A resposta está na curiosidade e não na influência de alguém. Ou você nunca foi jovem e não teve as suas curiosidades?
Agora, eu me pergunto: você ainda está ansioso(a) para saber a minha orientação sexual? Ela está bem resolvida e eu, hoje, me considero feliz nas minhas escolhas. Sim, eu estou feliz. Então, isso é suficiente pra mim. Agora, tenho certeza que pra você também...
Tentei te responder. Juro! Risos. Desculpa, se caso não foi a resposta que você esperava, mas nem toda pergunta deve ser respondida. Ou você já conseguiu responder a célebre pergunta: quem nasceu primeiro o ovo ou a galinha?
Tentei te responder. Juro! Risos. Desculpa, se caso não foi a resposta que você esperava, mas nem toda pergunta deve ser respondida. Ou você já conseguiu responder a célebre pergunta: quem nasceu primeiro o ovo ou a galinha?
A literatura brasileira e os estudos culturais
Imigração, nacionalismo, racismo, feminismo, política e história. Esses são alguns temas pelos quais os chamados Estudos Culturais se interessam, ao investigar textos literários. Tais estudos, que começaram a gozar de prestígio no mundo, durante a década de 50 do século XX, a partir de publicações vigorosas de pesquisadores britânicos das ciências humanas e sociais da chamada Escola de Birmighan (onde se destacam os trabalhos de Stuart Hall, Richard Hoggart, Raymond Williams, entre outros), não se configuram exatamente uma novidade ao chegarem às universidades brasileiras, no final desse mesmo século e início do século XXI.
Por aqui, apesar de recentemente essa rubrica constar nos programas de graduação e pós-graduação na área de letras, parte de suas preocupações - sua atenção à cultura, à religião, às questões de gênero e etnia - já estava na pauta de críticos brasileiros do século XIX, como Silvio Romero e José Veríssimo.
O que mudou, entretanto, com a chegada desses Estudos Culturais estrangeiros na academia brasileira do século XXI, já que os praticávamos de alguma forma, foi a construção nos dias de hoje de discursos comprometidos com demandas periféricas e lutas históricas das chamadas “minorias”, diferentes daqueles praticados pelos intelectuais do final do século XIX e início do século XX, preocupados com a manutenção de um status quo hegemônico, e com seu eurocentrismo.
A força do questionamento de centrismos culturais e políticos dos teóricos anglófonos, dialogando com uma crítica cultural, praticada por intelectuais latino-americanos, incluindo nesse grupo professoras e professores de graduação e pós-graduação de universidades brasileiras (a exemplo de Cornejo Polar, Nestor Garcia Canclini, Eneida Cunha, Eneida Souza, Florentina Souza, Cornejo Polar, Walter Mignolo, Silviano Santiago, entre outros) permite colocar em cheque certa tendência neolocolonialista de acreditar que o melhor da produção literária é sempre produto de movimentos ditados por “iluminados”, situados em centros econômicos, ou em países do chamado primeiro mundo. Permite, ainda, valorizar produções de artistas marginalizados, comprometidos com uma estética inovadora e com lutas históricas e políticas da contemporaneidade.
segunda-feira, 10 de outubro de 2011
O projeto eugenista de Monteiro Lobato
(esse texto, escrito por mim, foi publicado no blog da Raposa Felpuda, no dia 05/11/2010)
Marcos Aurélio dos S. Souza
A polêmica em torno do livro “Caçadas de Pedrinho”, de Monteiro Lobato, continua. O Ministério da Educação, a despeito de sua resolução inicial em não recomendar (e isso não é proibição) a adoção do livro pelas escolas públicas por conter manifestações racistas, voltou atrás e resolveu colocá-lo em sua lista, ouvindo e cedendo ao contra-ataque de setores hegemônicos da sociedade brasileira e da sua classe culta, a exemplo da famigerada Academia Brasileira de Letras (ABL).
Um parêntese sobre essa instituição centenária, fundada por Machado de Assis, em 1897. Assim como os Institutos Históricos e as Faculdades de Medicina, a ABL foi criada no auge prestigioso das teses biológicas, assimilou todo aquele contexto de negação da história negra e da propagação da tese do “branqueamento”, no século XIX. Essa tese, defendida por figuras como Sílvio Romero e Oliveira Viana, pregava que a população brasileira “embranqueceria” através da mestiçagem. Machado, o fundador mulato da ABL, foi talvez o único reconhecidamente afro-descendente, ainda que ele nunca escrevesse uma linha sobre essa sua condição, ou seja, aceitou o branqueamento ideológico. Lima Barreto, contemporâneo de Machado, que se reconhecia mulato, tendo obra vultosa e reconhecida na época, candidatou-se algumas vezes, mas não conseguiu ultrapassar os umbrais dessa instituição. Lógico, sua obra, ao contrário da do autor de Dom Casmurro, batia de frente com o preconceito racial.
Não dá para acreditar em nenhuma academia, cujos membros se julgam imortais, como se fossem melhores que o resto da humanidade. Não dá para acreditar em uma academia da qual fazem parte “almas sebosas” como Oliveira Viana, José Sarney e Marco Maciel. A Academia de Letras não tem moral para tratar de questões intelectuais, que dirá de questões étnico-raciais...! Aliás, nunca teve e nunca terá. Pobre da sociedade ou da cidade que acredita em membros de Academia de Letras e em seus serões estéreis, como já bem acentuava Jorge Amado em seu livro Farda, fardão camisola de dormir.
O parêntese ficou imenso, mas vamos lá.
Monteiro Lobato não lança mão de seu racismo apenas no livro “Caçadas de Pedrinho” e em “Histórias de Tia Nastácia”. Emília, a boneca prepotente de Lobato, utiliza, a exemplo de “macaca cor de carvão” das histórias de Pedrinho, termos ofensivos dirigidos à negra cozinheira, como os de “negra beiçuda”, boba e insensata, ameaçando-lhe cortar seus beiços, por contar histórias “ignorantes e burras”. Por mais que Dona Benta exigisse respeito da boneca aos mais velhos (deveria pedir que também respeitasse os negros) e Pedrinho deseje carinhosamente “espremer” (como se fosse um objeto) a tia negra, por achar que ela até sabe histórias bonitas do povo (visão ingênua de povo), a palavra de Emília é sempre a última, sem que ninguém retruque com veemência suas ofensas racistas, ofensas que não se dirigem apenas a tia Nastácia (isso é o mais importante), mas a todos os negros e negras.
Estava assistindo, na Globo News, a entrevista de Marisa Lajolo (uma professora da USP), tentando justificar essa postura de Emília, como algo psicanalítico e freudiano, já que Nastácia é, na verdade, a mãe da boneca falante, pois ela confeccionou Emília com suas próprias mãos negras. Paciência. Agora, vamos justificar racismo como problema freudiano, ou, senão, achar que aquelas palavras de injúria racial não as eram no período de escrita dos livros (nas décadas de 1920 e 1930), como o Ministro Haddad afirmou, justificando a re-inclusão do livro. Paciência, novamente... O Senhor Ministro não tem nem noções de quinta-série da história do Brasil. Ele ignora fatos históricos, resultantes da opressão contra os negros libertos, como os movimentos de insurreição negra, a exemplo da revolta dos Malês, em Salvador, e da Chibata, no Rio. Nem sabe ou ouviu falar que Lima Barreto registrava o peso do racismo na primeira década do século XX, e Luís Gama, escritor mulato, já escrevia sobre isso no século XIX. Talvez não tenha lido nem o resumo das obras de Florestan Fernandes, nem tenha conhecido o trabalho de resistência de Abdias do Nascimento na década de 1930. Que ministro é esse?
Lobato estava praticando seu projeto racista e eugenista ao escrever o que poderia parecer meras histórias para crianças. Concomitantemente à escrita das Reinações de Narizinho, Histórias de Tia Nastácia, Caçadas de Pedrinho, ele se correspondia ardentemente com o maior eugenista do país, autor de “A cura da fealdade”, “Por que eu sou eugenista”, – o médico paulista Renato Khel. O eugenismo, praticado e propagado por Khel, acreditava que só as raças humanas puras e superiores (brancas, arianas, europeias) deveriam e poderiam existir, algo parecido com o que acreditava Hitler. Dentre as pérolas desse suposto mestre da ciência, está a seguinte frase: “a população brasileira vai embranquecer, à custa de sabão de coco ariano”. Lobato tece rasgados elogios ao trabalho do médico que pregava a esterilização de pessoas deficientes, negros e mulatos. Numa carta a Khel, falando de seu livro “Choque das raças, ou o Presidente Negro”, Lobato declara:
Renato, Tu és o pai da eugenia no Brasil e a ti devia eu dedicar meu Choque, grito de guerra pró-eugenia. Vejo que errei não te pondo lá no frontispício, mas perdoa a este estropeado amigo. [..] Precisamos lançar, vulgarizar estas ideias. A humanidade precisa de uma coisa só: póda. É como vinha. (Lobato Apud Diwan, 2007, p. 106)
O livro de Pierre Diwan, intitulado “Raça Pura” (São Paulo: Contexto, 2007), faz um panorama do contexto eugenista brasileiro, e dentre os maiores defensores do arianismo, figura o autor de “Urupês”. Lobato detestava os negros e os caboclos (ver sua descrição do Jeca Tatu), sua visão oscila entre a lástima inferiorizadora e a ofensa agressiva, como no conto em que uma menina negra é lembrada pelas sinhás, depois de sua morte, como uma “boa para aplicar cascudos”. Como no seu romance “O presidente Negro”, no qual a visão surreal prevê o fim de uma civilização, após a ascensão de um negro ao poder.
Não sou a favor de censura, mas não recomendaria a leitura de Lobato a nenhuma criança, branca ou negra: é isso que o Ministério da Educação está fazendo. Como negro, sinto-me ofendido pelo que escreve Lobato, exijo que as pessoas respeitem as histórias africanas e afro-americanas, não espezinhem demandas do Movimento Negro, porque elas resultam de 350 anos de trabalho forçado e de violência aplicados a pessoas que construíram as grandes e pequenas riquezas deste país. Essas demandas resultam ainda do racismo institucional, midiático, cultural que ainda persiste. Se Lobato contribuiu com alguma coisa foi para a persistência do racismo, pois nem o título de defensor patriota do petróleo lhe cabe tão bem, já que ele mesmo vendeu um poço particular para os americanos, e defendia em outros momentos a posse alemã do petróleo brasileiro (ver “Monteiro Lobato queria negociar petróleo”, artigo de Marcelo Bortoloti, publicado na Folha de S. Paulo, em 25/10/2010). Ingênuo e ignorante quando falava de cultura popular, sustentava uma visão fossilizada da mesma, como se não fosse algo dinâmico. Alguém ainda pode falar de saci-pererê, boitatá, lobisomem como elementos culturais contemporâneos? Falava do fim da capoeira, luta e arte negras, pelo simples fato de ser praticada pela ralé. Dizia que o futebol corrompia nossa língua, pelo uso à época de termos ingleses.
Lobato precisa de uma revisão urgente, sob pena de continuarmos acreditando na Rede Globo, que criticou a não recomendação (que é diferente de proibição) do livro “Caçadas de Pedrinho”, erigindo-o como “pai do petróleo” ou como grande folclorista. Sob pena, ainda, de darmos espaços para estudos hagiográficos (elogiosos) e “infantis” (no sentido mais pejorativo do termo) desse escritor, negando a nossa capacidade de pesquisa e de leitura, subestimando a nossa própria inteligência.
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quinta-feira, 6 de outubro de 2011
Marcha das vadias sacode o chão de cacau
No dia 08 de outubro desse ano, em Itabuna, será realizada a Marcha da Vadias. Quem não conhece esse movimento, é uma boa oportunidade para conhecê-lo. Estou publicando esse texto, escrito pelo Coletivo Marcha das Vadias Itabuna, a pedido da minha amiga, a professora Daniela Galdino, uma das organizadoras desse evento.
POR QUE MARCHA DAS VADIAS?
“A vida só é possível reinventada” (Cecília Meireles)
No próximo dia 08 de outubro estaremos em marcha pela principal avenida de Itabuna-Bahia. A nossa cidade sairá na vanguarda, sendo uma das poucas do interior brasileiro a realizar a Marcha das Vadias. Com isso, nos vinculamos a um movimento internacional denominado Slut Walk, iniciado em Toronto, no Canadá, no mês de abril deste ano, em protesto à atitude de um policial que, em uma palestra, advertiu estudantes universitárias da possibilidade de estupro, por estas usarem roupas de “vagabundas” (slut, em inglês). Depois do Canadá, outros países realizaram, em 2011, a Slut Walk: Argentina, Estados Unidos, Grã-Bretanha, Holanda, Nova Zelândia, França. No Brasil, o movimento recebeu o nome de Marcha das Vadias e vem sendo realizado nas principais cidades do país, a exemplo de Recife, Salvador, Belo Horizonte, Brasília, Rio de Janeiro, São Paulo, Florianópolis, Natal, Juiz de Fora (MG) e Campinas (SP).
Considerando que o episódio ocorrido em Toronto não é um fato isolado, a principal motivação da Slut Walk / Marcha das Vadias é o protesto contra as formas de violência que atingem as mulheres. Segundo dados do Relatório da Anistia Internacional, de cada 5 mulheres, 1 será vítima ou sofrerá uma tentativa de estupro até o fim da vida; mais de 1 bilhão de mulheres já foram espancadas ou forçadas a manter relações sexuais (estupro); 1 em cada 3 mulheres no planeta foi submetida a algum tipo de abuso; 20% das mulheres são alvo de estupro.
No Brasil, de acordo com dados do Conselho Estadual de Direitos da Mulher (Cedim), da ONG Cfêmea e do Instituto Patrícia Galvão, a cada 12 segundos uma mulher é violentada; 54% dos estupros são cometidos pelos maridos; 69% das mulheres já foram agredidas ou violentadas por homens, sendo que apenas 7 % dos estupros são cometidos por desconhecidos; apenas 14% das vítimas de agressão sexual notificam a ocorrência do crime; 1 em cada 10 mulheres sofre ao menos um estupro. Eis uma infeliz realidade: 1,3 milhões de mulheres são agredidas, por ano, neste “Brasil varonil”. São 150 agressões a cada hora e, por dia, 10 mulheres mortas, segundo dados do Mapa da Violência no Brasil.
Em Itabuna, de acordo com informações fornecidas pela Delegacia Especializada em Atenção à Mulher (DEAM), entre o início de janeiro e o dia 03 de outubro de 2011 foram registrados 1.305 casos de violência contra mulheres, meninas e jovens. A maioria desses casos é de ameaça (435) e de lesão corporal (394). Entendemos que todos esses índices (locais, nacionais e internacionais) representam, lamentavelmente, a ponta de um imensurável iceberg, afinal, a maioria das vítimas não registra as denúncias, em virtude das ameaças empreendidas pelos agressores, majoritariamente representados pelos seus próprios companheiros, familiares ou conhecidos.
Como se não bastassem tais índices, as mulheres, no mais das vezes, ainda são culpabilizadas pelas violências que sofrem. Daí as idéias circulantes: “aquela mulher foi estuprada porque se veste como uma vagabunda/vadia”, “apanhou porque pediu”, dentre tantas outras. Analisando esse contexto de normalização da violência, chegamos à seguinte constatação: as sociedades deveriam educar os homens para não violentar, em vez de transformar as mulheres, de vítimas, a culpadas por essas agressões.
Se ainda existem números assustadores com relação à violência praticada contra mulheres no Brasil, tais índices não dão conta das manifestações de machismo que se ocultam no bojo de um pretenso discurso de igualdade. Não existe igualdade nos espaços sociais nos quais ainda se reproduzem práticas discriminatórias e agressivas: assédio moral e sexual no trabalho, a tese da legítima defesa da honra para inocentar homens assassinos de mulheres consideradas adúlteras, insinuações sobre a baixa capacidade intelectual feminina, deboches quando mulheres precisam ir à delegacia para denunciar algum tipo de abuso.
Então, por que o nome Marcha das Vadias? O movimento se faz necessário na medida em que a sociedade precisa ser provocada a repensar os seus valores e práticas. A estratégia da provocação encontra ancoragem na reapropriação do termo “vadia”, palavra não neutra utilizada costumeiramente para imputar negatividade(s) à conduta feminina. Por conta disso, a Marcha das Vadias se constitui como uma ação política, um protesto irreverente às formas de condenação de todas as mulheres que conseguem ultrapassar as margens impostas por arbitrariedades sociais, ou que são subjugadas por essas mesmas regras. Para isso, lançamos o incômodo ao enfatizarmos a palavra “vadia” para que, a partir daí, possamos repensar o contexto de onde emergem tais formas de violência.
Em Itabuna, formamos um grupo aberto composto por mulheres, LGBT e também homens de todas as idades, profissões e classes sociais. Estamos junt@s numa grande mobilização e decidimos também nos denominar VADIAS, para denunciar e protestar contra toda sorte de violência que as mulheres sofrem. A Marcha das Vadias é um ato que não se esgota no momento mesmo em que vamos às ruas, o dia 08 de outubro representa o início da nossa mobilização política, que possui o caráter permanente e, justamente por isso, prevê ações formativas realizadas a paritr do diálogo com outros movimentos sociais e instituições representativas ou responsáveis pela defesa dos direitos das mulheres. Fazemos nossas as palavras do artista pernambucano Chico Science: “um passo a frente e você não está mais no mesmo lugar”. É com esse espírito que convocamos a comunidade local a se engajar nessa luta que, antes de tudo, é coletiva.
COLETIVO MARCHA DAS VADIAS ITABUNA
05 de outubro de 2011
ver também matéria no Atarde
Marcha das Vadias denuncia violência contra a mulher
Manifesto iniciado no Canadá acontece pela primeira vez em uma cidade do interior no NE
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segunda-feira, 3 de outubro de 2011
As academias de letras II
Para Nicinha
A maior vergonha para qualquer escritor é ser apresentado como membro de uma academia de letras. Quando meu avô estava quase para morrer, ele me revelou um segredo. Disse que seu verdadeiro sonho era me ver vestido num fardão, fazendo discurso numa academia de letras. “De Ilhéus ou de Jequié, que seja, mas numa academia de letras!” Eu entendi meu pobre avô, ele havia nascido quase no século XIX, faltou pouco para ele ser contemporâneo de Olavo Bilac. Ele seria escravo nessa época, mas tudo bem.
Disse para ele (meu avô era gracioso e fino) que esse era um sonho muito bonito, mas não era pra mim, por dois motivos. Primeiro, nunca quis ser escritor, tornei-me professor de literatura, porque era a maneira de estar numa distância segura dessa classe perigosa. Segundo, que eu tinha um problema de rinite alérgica crônica, o fardão é uma fantasia de feltro, alguma coisa parecida com veludo ou camurça. Seja lá o que for, aquilo sempre acumulava pó e ácaro. Espirro convulsivamente, só de imaginar-me vestido num fardão.
Vou explicar melhor o primeiro motivo, porque o segundo, nem os próprios médicos conseguem fazê-lo. Antes da explicação, um parêntese.
(Já está virando tema frequente, nesse blog, a academia de letras, esse é o segundo ou terceiro texto. Já mencionei a academia também num texto sobre Monteiro Lobato. Um engraçadinho já me disse, num comentário, que eu bem gostaria de estar numa academia de letras. Chamou-me de ressentido, invejoso, ou coisa parecida, e imaginava porque eu não estava nesse “templo da intelectualidade” - o aposto aqui é meu - deixou as reticências, o peralta. Certamente, ele não via talento, não via garbo de escritor em mim, nem inteligência. Eu admiti mesmo ser invejoso e ressentido, e que um dia teria pelo menos um soneto dedicado a minha pessoa. Seria uma pequena ironia, nessa vida, a flor vermelha sobre meu túmulo. Tenho amigos sonetistas, vai ser fácil pedir isso. Do resto, eu vivo às gargalhadas. Eu bato na academia de letras, porque é “cachorro morto”, não vai me morder. Nenhum membro de academia de letras se colocou contra minhas posições e nunca se colocará abertamente - a não ser Nicinha, uma tal anônima, num depoimento comovente no blog da Raposa Felpuda: www.bp.santana.zip.net. Acredito que ela, ou ele, faça parte de uma academia de letras qualquer no interior da Bahia, talvez seja até sua presidenta. Ninguém se coloca abertamente, sabe por quê? Porque, no fundo, todos sabem que estou certo.)
Vamos à explicação. Como professor de literatura, eu posso gozar de certa autoridade, certa aura de respeito e, ao mesmo tempo, de certa distância em relação a essa classe, a de escritor, que, na América Latina, nunca foi flor cheirosa. Minha posição é tática, toda vez que alguém me diz ser escritor ou escritora, que escreve e publica literatura, romance ou poema, eu já olho com desconfiança e me distancio. Meu afastamento faz com que ele ou ela não me ataque, furiosamente, em seguida. As ideias escritas são as mais perigosas, para o bem ou para o mal. Toda ação desastrosa ou redentora, uma guerra ou revolução, tem como origem palavras pintadas no papel. Mas, se o escritor ou a escritora disser que faz parte de uma academia de letras, piora. Minha desconfiança se transforma em certeza, é como se a pessoa já dissesse como ela é, e como pensa, numa única frase.
Preconceito meu? Eu até gostaria que fosse, seria mais fácil, nem precisaria escrever um texto. Ficava o dito pelo dito. Mas, é custoso acreditar em alguém que diz pensar o mundo, ou escrever para o mundo, fazendo parte de uma instituição tão arcaica, tão positivista, tão blasé, tão retrógrada, tão fechada dentro de si, como um bueiro, uma cloaca, hermeticamente tapada. A academia de letras é a última trincheira (pobre, lamacenta e precária, como toda trincheira) da cidade escriturária de Angel Rama. O crítico literário uruguaio, em sua obra La ciudad letrada, identificava vários tipos de cidades constituídas na América Latina, que representavam as formas coloniais de hierarquização e de poder por meio da escrita e da lei real. A escriturária é a cidade mais excludente, que segrega as pessoas pelo domínio da palavra impressa ou pintada, pela arrogância e pela ignorância do uso da língua culta, padrão, só para humilhar e separar as pessoas. A academia de letras surge numa época de imposição da cidade escriturária sobre as demais cidades, a revolucionária e a modernizada, por exemplo. É nesse momento também que surgem os grandes jornais e os escritores de literatura. A cidade escriturária é um espécie de estado de sítio, onde aqueles que detém a escrita prendem, matam e execram as outras pessoas, em nome da lei e da “boa cultura”. E a academia de Letras é o clubinho dos carrascos. Eu fico arrepiado, morrendo de medo, quando vou a conhecida academia de letras da Bahia, em Salvador. Passeio pelos seus salões, com pinturas dos seus membros ilustres (médicos, advogados, coronéis do início do século XX) gente rica, que escreveu teses e tornara-se “doutora”, inferiorizando negros e mulheres.
A ignorância dos que usam a escrita para separar vem de longe. Patricia Seed, historiadora americana, em seu livro Cerimônias de Posse na Conquista Europeia do Novo Mundo, registra que os espanhóis colonizadores acreditavam, ingenuamente, que lendo um decreto, escrito pelo rei, toda a população indígena iria se submeter ao julgo da coroa espanhola. Todo escritor ingênuo, acredita que sua escrita tem algum tipo de poder mágico sobre as pessoas, de dominação e de docilização.
Muitos já caíram no canto da sereia e se filiaram a uma academia de Letras na Bahia, tenho colegas, amigos, inclusive, escritores que respeito e aprecio muito, nessa situação. Ferreira Gullar, o último escritor do século XX, vive se esquivando dos convites da ABL do Rio, quase escorregou na boca de lobo. Na última vez, recebeu ligações de amigos acadêmicos, chorosos, ele aceitou, mas desistiu no outro dia. Num depoimento, publicado no Terra ("Ferreira Gullar: A Academia não corresponde ao que eu sou" por Cláudio Leal), o autor do “Poema sujo” revela:
"Fui consultado por alguns amigos meus da Academia, perguntando se eu aceitaria me candidatar, desde que um número muito grande de acadêmicos me enviasse um documento pedindo que me candidatasse. Diante disso, me senti constrangido de dizer não. (...) Quando acordei, me senti muito mal porque aquilo não correspondia ao que sou. Não quero entrar para a Academia. Então, eu acordei: 'Estou fazendo uma coisa contra o que eu sou'. Liguei para os amigos e desfiz. Nunca pretendi entrar para a Academia (…) Não sou uma pessoa com espírito acadêmico, com espírito institucional. Sou um questionador, não me sinto bem em instituições. Concordei com uma proposta muito generosa. Se eu dissesse 'não' ali, eu ia me sentir arrogante, pretensioso".
Gullar sabe bem que a ABL do Rio (a brasileira, a oficial) é um antro de toda sorte de conservadorismo, bajulação, politicalha e falta de criatividade. Toda academia de letras na Bahia, a de Salvador e a desses interiores mais obscuros do Nordeste e do Brasil, é refugo disso.
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domingo, 2 de outubro de 2011
Vizinho
Chamou minha atenção quando vizinho chegou. Nunca consegui chamar pelo nome, acho que era Marcos ou Paulo, nem lembro. Vizinho era melhor, eu só chamava assim, virou quase um apelido pra mim. Chegou todo atrapalhado com a mudança dele para o prédio do lado, estava na cara que não era homem de carregar peso, outro filhinho da mamãe. Mas, com uma bundinha linda. Fiquei olhando da janela, dando psiu, escondida. Aquele desajeito, aquele olhar perdido, fui logo tomando boca, queria só me divertir um pouco, porque nem gosto muito de homem mole. Ele estava carregando uma televisão das antigas. Aquele trambolho três andares acima, achei engraçado, dei psiu novamente, me escondi, apareci de novo. Ele com uma cara de assustado. Foi assim que a gente se conheceu.
Daí em diante, vizinho ficou na minha cola. Apaixonou logo, parece que nunca tinha visto mulher na vida. Não sou de se jogar fora, aliás me acho até gostosa, mas vizinho quando me via parece que dava de cara com a Gisele Bite, aquela modelo. Presentinho pra cá, xaveco pra lá, estava na cara que ele queria me comer.
Cismou com meu nome, não acreditava que alguém poderia chamar Lubinha. Eu, claro, nunca que ia revelar meu nome de batismo. Lubinha é muito melhor do que Lurdinete. Teresa, minha irmã me deu esse nome de Lubinha, e eu era bem pequena, foi a minha salvação. Todo mundo me conhece assim. Onde chego, é Lubinha que faz sucesso. Boto um shortinho, uma bermuda apertada... Vizinho é um pouco mais discreto, mas não é diferente dos outros homens do bairro, olha mesmo. Só que ele ia ter que ralar muito pra chegar no material aqui.
E ele ralou. Foi dia de finado, ia com mamãe visitar o túmulo do padastro. Antes desci a ladeira da rua pra comprar flores. Vi vizinho de longe, lendo jornal na banca, mas fiz que não vi. Passei por ele, e na barraca do lado pedi meia dúzia de flores. Não falei com ele, fiz cara de luto. Ele estava até mais bonitinho, mas com a mesma cara de perdido. Perguntou se eu não falava mais com os pobres. Não vou mentir, nem gostei da frase, fechei a cara. Quem já se viu, ele mais pobre do que a gente? Vive de boa, parece que nem trabalha, deve receber pensão gorda de papai, só vejo ele pedindo comida no China in Box. Mesmo assim falei bom dia, não pra ele, mas pra todo mundo que estava na banca. Ele comprou uma flor bem bonita, e quando virei pra ir embora, ele me chamou e me deu, dizendo: “Você esqueceu essa, é a mais bonita, parece contigo”. Até que gostei da cantada, peguei a flor, dei um sorriso pra ele e fui embora.
Noutro dia chamei vizinho, fiquei com dó. Pedi desculpa, disse que estava zangada naquele dia. Não revelei o motivo, mas disse que a gente podia tomar uma cerveja depois, se ele quisesse. Ele ficou de outra cor, parecia que nunca tinha recebido convite de mulher, vi que estava feliz. Marcamos naquela tarde mesmo, ele tinha carro e me levou para o Rio Vermelho. Comemos acarajé e ele pediu a cerveja. Enrolei em dois copos e ele bebia muito. A cerveja no meu copo ficava quente, ele jogava fora e enchia, ficava quente de novo, ele enchia. Eu disse que estava alta, meio tonta, ele me levou pra casa.
Na despedida, achei que ele ia me dar um beijo, mas nada. Chamei ele pra debaixo da escada e dei uma colada, no meu estilo, quente, ele ficou louco. A boca dele era boa. Perguntou se queria subir para ver umas fotos de família. Lembro que ri da cara dele, mas subi. O apartamento era arrumado e cheiroso, cheiro bom de perfume de homem. Fui logo dizendo que queria tomar um banho, disse que era uma mania minha, ele me ofereceu uma toalha e um sabonete, todo envergonhado. Tirei a roupa na frente dele, caminhei só de calcinha para o banheiro. O bichinho ficou nervoso, e eu me divertia com aquele sem jeito dele. Banheiro limpo, sem cheiro de xixi, sem sujeira, papel higiênico do bom. Fiz do meu estilo, novamente, chamei ele para tomar banho. Ele parecia não me ouvir, ou não acreditava no que estava ouvindo, chamei duas vezes, e de novo. Ele botou a cabeça na porta aberta e perguntou sem graça se eu estava chamando. Disse para ele entrar. Perguntei se nunca tinha visto uma mulher nua, puxei pela gola da camisa dei outro beijo e trouxe ele para o chuveiro, vestido mesmo. Foi uma delícia aquele primeiro encontro com vizinho.
Depois disso, ele ficou viciado, todo dia era um jantar novo, um prato que ele preparava para mim, um vinho estrangeiro, até charuto cubano me fez fumar com ele. Noutro dia ele estava um bagaço, de ressaca, ria do seu sono de manhã e do seu ronco. Passei uns bons dias assim, até levei roupa íntima pra casa dele.
Eu usava a mesma tática, fingia que bebia, mas não bebia quase nada, fingia que fumava, mas não tragava. Nunca fui boa pro lado do álcool, nem pra droga nenhuma. Lá em casa, bastava meu irmão, viciado em crack, mas esse já estava curado. Vizinho quando bebia ficava todo sentimental, recitava poesia, falava da família, eu adorava isso, depois pedia que eu falasse da minha vida. Comecei a inventar meus dramas só para acompanhar ele. Eu não mentia só aumentava, trocava personagens. Disse que minha irmã fazia vida na orla, isso era verdade, mas que eu não queria saber de vender meu corpo, isso era mentira. Disse que saía todo dia a tarde para trabalhar na Renner, mas ia se encontrar na Orla com minha irmã, fazíamos programa juntas. Disse que minha mãe trabalhava num subemprego, mas minha mãe não trabalhava, recebia uma pensão miserável. Disse que meu irmão dormia o dia todo por causa dos remédios para curar do vício, mas ele só dormia pela manhã. Que fui violentada por meu padastro na infância, mas meu padastro até era legal, não fedia e nem cheirava, pelo menos nunca me bateu. Realmente, quem me bolinou foi o escroto do meu irmão, isso foi na adolescência, já passou. Mas isso eu escondi.
Eu me divertia, porque ele prestava bastante atenção em tudo que eu falava, e fazia uma boquinha muito engraçada. Quando falei que iriamos mudar do apartamento, ele ficou bem triste. Eu tinha inventado sobre a falta de dinheiro para o aluguel, que iríamos morar num barraco. Na verdade iríamos mudar sim, mas o motivo era que estava grávida de um antigo cliente, um homem casado. Resolvi ter o bebê e não queria morar num apartamento miúdo, com mais uma criança. A ideia era morar com um tio viúvo, num apartamento maior no Cabula. Chorei por vizinho e por mim. Ele ficou calado, dei um beijo. Arrependi depois das mentiras, mas vizinho gostava de dramas. Antes de ir embora, disse que daria tudo pra saber o que estava passando na cabeça dele. Ele me disse uma frase muito bonita, que até hoje lembro: “os pensamentos são incomunicáveis”.
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