segunda-feira, 10 de outubro de 2011

O projeto eugenista de Monteiro Lobato


(esse texto, escrito por mim, foi publicado no blog da Raposa Felpuda, no dia 05/11/2010)

Marcos Aurélio dos S. Souza


A polêmica em torno do livro “Caçadas de Pedrinho”, de Monteiro Lobato, continua. O Ministério da Educação, a despeito de sua resolução inicial em não recomendar (e isso não é proibição) a adoção do livro pelas escolas públicas por conter manifestações racistas, voltou atrás e resolveu colocá-lo em sua lista, ouvindo e cedendo ao contra-ataque de setores hegemônicos da sociedade brasileira e da sua classe culta, a exemplo da famigerada Academia Brasileira de Letras (ABL).
 
Um parêntese sobre essa instituição centenária, fundada por Machado de Assis, em 1897. Assim como os Institutos Históricos e as  Faculdades de Medicina, a ABL foi criada no auge prestigioso das teses biológicas, assimilou todo aquele contexto de negação da história negra e da propagação da tese do “branqueamento”,  no século XIX. Essa tese, defendida por figuras como Sílvio Romero e Oliveira Viana, pregava que a população brasileira “embranqueceria” através da mestiçagem. Machado, o fundador mulato da ABL, foi talvez o único reconhecidamente afro-descendente, ainda que ele nunca escrevesse uma linha sobre essa sua condição, ou seja, aceitou o branqueamento ideológico. Lima Barreto, contemporâneo de Machado, que se reconhecia mulato, tendo obra vultosa e reconhecida na época, candidatou-se algumas vezes, mas não conseguiu ultrapassar os umbrais dessa instituição. Lógico, sua obra, ao contrário da do autor de Dom Casmurro, batia de frente com o preconceito racial.
 
Não dá para acreditar em nenhuma academia, cujos membros se julgam imortais, como se fossem melhores que o resto da humanidade. Não dá para acreditar em uma academia da qual fazem parte “almas sebosas” como Oliveira Viana, José Sarney e Marco Maciel. A Academia de Letras não tem moral para tratar de questões intelectuais, que dirá de questões étnico-raciais...! Aliás, nunca teve e nunca terá. Pobre da sociedade ou da cidade que acredita em membros de Academia de Letras e em seus serões estéreis, como já bem acentuava Jorge Amado em seu livro Farda, fardão camisola de dormir.
 
O parêntese ficou imenso, mas vamos lá.
 
Monteiro Lobato não lança mão de seu racismo apenas no livro “Caçadas de Pedrinho” e em “Histórias de Tia Nastácia”. Emília, a boneca prepotente de Lobato, utiliza, a exemplo de “macaca cor de carvão” das histórias de Pedrinho, termos ofensivos dirigidos à negra cozinheira, como os de “negra beiçuda”, boba e insensata,  ameaçando-lhe cortar seus beiços, por contar histórias “ignorantes e burras”. Por mais que Dona Benta exigisse respeito da boneca aos mais velhos (deveria pedir que também respeitasse os negros) e Pedrinho deseje carinhosamente “espremer” (como se fosse um objeto) a tia negra, por achar que ela até sabe histórias bonitas do povo (visão ingênua de povo), a palavra de Emília é sempre a última, sem que ninguém retruque com veemência suas ofensas racistas, ofensas que não se dirigem apenas a tia Nastácia (isso é o mais importante), mas a todos os negros e negras.
 
Estava assistindo, na Globo News, a entrevista de Marisa Lajolo (uma professora da USP), tentando justificar essa postura de Emília, como algo psicanalítico e freudiano, já que  Nastácia é, na verdade, a mãe da boneca falante, pois ela confeccionou Emília com suas próprias mãos negras. Paciência. Agora, vamos justificar racismo como problema freudiano, ou, senão, achar que aquelas palavras de injúria racial não as eram no período de escrita dos livros (nas décadas de 1920 e 1930), como o Ministro Haddad afirmou, justificando a re-inclusão do livro. Paciência, novamente... O Senhor Ministro não tem nem noções de quinta-série da história do Brasil. Ele ignora fatos históricos, resultantes da opressão contra os negros libertos, como os movimentos de insurreição negra, a exemplo da revolta dos Malês, em Salvador, e da Chibata, no Rio. Nem sabe ou ouviu falar que Lima Barreto registrava o peso do racismo na primeira década do século XX, e Luís Gama, escritor mulato, já escrevia sobre isso no século XIX. Talvez não tenha lido nem o resumo das obras de Florestan Fernandes, nem tenha conhecido o trabalho de resistência de Abdias do Nascimento na década de 1930. Que ministro é esse?
 
Lobato estava praticando seu projeto racista e eugenista ao escrever o que poderia parecer meras histórias para crianças. Concomitantemente à escrita das Reinações de Narizinho, Histórias de Tia Nastácia, Caçadas de Pedrinho, ele se correspondia ardentemente com o maior eugenista do país, autor de “A cura da fealdade”, “Por que eu sou eugenista”, –  o médico paulista Renato Khel. O eugenismo, praticado e propagado por Khel, acreditava que só as raças humanas puras e superiores (brancas, arianas, europeias) deveriam e poderiam existir, algo parecido com o que acreditava Hitler. Dentre as pérolas desse suposto mestre da ciência, está a seguinte frase: “a população brasileira vai embranquecer, à custa de sabão de coco ariano”. Lobato tece rasgados elogios ao trabalho do médico que pregava a esterilização de pessoas deficientes, negros e mulatos. Numa carta a Khel, falando de seu livro “Choque das raças, ou o Presidente Negro”, Lobato declara:
 
Renato, Tu és o pai da eugenia no Brasil e a ti devia eu dedicar meu Choque, grito de guerra pró-eugenia. Vejo que errei não te pondo lá no frontispício, mas perdoa a este estropeado amigo.  [..] Precisamos lançar, vulgarizar estas ideias. A humanidade precisa de uma coisa só: póda. É como vinha. (Lobato Apud Diwan, 2007, p. 106)
 
O livro de Pierre Diwan, intitulado “Raça Pura” (São Paulo: Contexto, 2007), faz um panorama do contexto eugenista brasileiro, e dentre os maiores defensores do arianismo, figura o autor de “Urupês”. Lobato detestava os negros e os caboclos (ver sua descrição do Jeca Tatu), sua visão oscila entre a lástima inferiorizadora e a ofensa agressiva, como no conto em que uma menina negra é lembrada pelas sinhás, depois de sua morte, como uma “boa para aplicar cascudos”. Como no seu romance “O presidente Negro”, no qual a visão surreal prevê o fim de uma civilização, após a ascensão de um negro ao poder.
 
Não sou a favor de censura, mas não recomendaria a leitura de Lobato a nenhuma criança, branca ou negra: é isso que o Ministério da Educação está fazendo. Como negro, sinto-me ofendido pelo que escreve Lobato, exijo que as pessoas respeitem as histórias africanas e afro-americanas, não espezinhem demandas do Movimento Negro, porque elas resultam de 350 anos de trabalho forçado e de violência aplicados a pessoas que construíram as grandes e pequenas riquezas deste país. Essas demandas resultam ainda do racismo institucional, midiático, cultural que ainda persiste. Se Lobato contribuiu com alguma coisa foi para a persistência do racismo, pois nem o título de defensor patriota do petróleo lhe cabe tão bem, já que ele mesmo vendeu um poço particular para os americanos, e defendia em outros momentos a posse alemã do petróleo brasileiro (ver “Monteiro Lobato queria negociar petróleo”, artigo de Marcelo Bortoloti, publicado na Folha de S. Paulo, em 25/10/2010). Ingênuo e ignorante quando falava de cultura popular, sustentava uma visão fossilizada da mesma, como se não fosse algo dinâmico. Alguém ainda pode falar de saci-pererê, boitatá, lobisomem como elementos culturais contemporâneos? Falava do fim da capoeira, luta e arte negras, pelo simples fato de ser praticada pela ralé. Dizia que o futebol corrompia nossa língua, pelo uso à época de termos ingleses.
 
Lobato precisa de uma revisão urgente, sob pena de continuarmos acreditando na Rede Globo, que criticou a não recomendação (que é diferente de proibição) do livro “Caçadas de Pedrinho”, erigindo-o como “pai do petróleo” ou como grande folclorista. Sob pena, ainda, de darmos espaços para estudos hagiográficos (elogiosos) e “infantis” (no sentido mais pejorativo do termo) desse escritor, negando a nossa capacidade de pesquisa e de leitura, subestimando a nossa própria inteligência.

Um comentário:

  1. "[...] Nastácia é, na verdade, a mãe da boneca falante, pois ela confeccionou Emília com suas próprias mãos negras." Este parágrafo deixa claro que a verdadeira mãe da boneca Emília é a tia Anastácia, no entanto, a mesma rejeita suas origens, ou seja, sendo ela de pele branca, não aceita uma mãe negra. Podemos analisar também que o branqueamento já está internalizado na boneca devido a sua convivência com a Narizinho, o Pedrinho e Dona Benta, que por sinal eram todos de pelas claras deixando a boneca em delírio e acreditando que também é branca,porém um estudo mais minuciosos descobriremos que Emília é fruto do branqueamento,isto,porque fica explicito porque tendo ela ancestralidade materna negra conseqüentemente o lado materno é branco.Portanto,devido esses movimentos de branqueamentos propagados por aí, os brasileiros não reconhecem a sua própria identidade e terminam sempre iludidos pelas coisas que nunca lhe pertenceram... Abraço Rozenildo.

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