sexta-feira, 16 de maio de 2014

O comando paramilitar da língua

“O português é difícil”. Ouvi essa triste afirmação numa roda de amigos e, como não foi a primeira vez que tinha ouvido tal frase, encarei com doçura (e não com susto) o meu interlocutor.

- Mas, você é de onde mesmo?
- Sou daqui, de Salvador.
- Digo, nasceu onde?
- Aqui mesmo, Salvador....
- Então porque vocês está falando isso, que o português é difícil?
- Assim, é difícil de falar... de escrever...
     - Falar? Escrever?  Você está comparando o português com outra língua, que você conhece? Porque, mesmo comparando com outra língua, você vai ter que argumentar direitinho o que faz uma língua ser mais difícil do que outra.... Qualquer criança de 3 anos, seja ela alemã, francesa, italiana, tcheca, chinesa ou brasileira fala o seu próprio idioma com desenvoltura, não fica chorando pelos cantos, muda, porque sua língua é difícil.

A conversa acabou ali, porque daí por diante ouvi um gaguejar, uma série de frases engroladas, que tentavam montar um argumento, em vão... Meu interlocutor até tentou fazer comparações estúrdias do português com o inglês (ele tinha feito um desses cursos caros, que não ensinava inglês a ninguém) mas “caiu na boca de lobo”. “O inglês é mais objetivo, o português é subjetivo, as frases maiores”.  Eu pedi que desenvolvesse o argumento, mas ele não citou exemplos, e a conversa ficou, assim, pelo meio. Ele calado no fim das minhas perguntas, com a cara triste. Naquele momento, vi pela primeira vez, uma criança de 40 anos chorando, porque sua língua era difícil. Uma lástima.

Logo, eu lembrei de três situações, que se fossem repetidas mais vezes na minha vida, eu teria perdido, definitivamente, a esperança no ser humano. Ou, pelo menos, teria perdido minha vontade de ser professor e nunca faria um curso de licenciatura.

Tavares era considerado um ótimo professor de redação no meu segundo grau, pelo jeito sisudo, a agilidade em corrigir uma frase, uma concordância da escrita, uma palavra mal soletrada durante a leitura de textos clássicos (sim, fazíamos leitura, em voz alta, nas aulas de redação). 

Dizia que queria sair daquela vida, tantos alunos falando errado, suas aulas eram inúteis, nesse mundo de tanta gente ignorante. As meninas da minha sala, que eram apaixonadas pelo professor, acompanhavam a vida dele fora da escola.  Descobriram que vivia fazendo concurso público e sempre “tomava pau”, era reprovado... na redação.  Sempre desconfiei que quem corrige demais, termina revelando sua própria ignorância, não exatamente na matéria que julgam saber mais do que os outros, mas no trato sensível, humano, das pessoas com quem convive.  Tavares, atualmente velho e gordo, é até hoje um estranho solitário, continua dando aula no mesmo lugar, nunca passou em concurso público, vive em consultórios, fazendo terapia.

Fátima era a professora de inglês mais severa e vivia corrigindo nosso sotaque nas aulas da faculdade, repetindo a mesma frase repressora “filhinho você não sabe inglês”. Orgulhava-se por ter vivido 5 meses nos Estados Unidos. Todos nós sabíamos, a boca miúda, que viveu um casamento frustrado com um gringo por lá. Ela sabia colocar a língua entre os dentes e soletrar os sons "mais difíceis" do idioma de Shakespeare. Ela não dava aula de inglês, dava aula de pronúncia. Era humilhante, ninguém queria, nem sabia falar nas aulas de Fátima. Só a própria. Foi a pior professora da minha vida.

A vingança da turma não foi sopa fria, não tardou. Neide, a nossa colega mais fluente levou um dia consigo, uma amiga americana para as aulas da professora. A mestre gelou, quando viu aquela moça loira, olhos azuis, bem americana, entrando na sua classe. “This is my friend. She is from Massachusetts, USA” - introduziu Neide. Fátima, que mudou de cor, começou falar o inglês dela, no qual todos nós acreditávamos. As respostas de Lindy, a amiga de Neide, às falas de nossa professora, começava sempre com um muxoxo de incompreensão, seguido daquela frase gentil dos americanos, quando não entendem o que alguém diz: “I am sorry”. A aula não rendeu, Fátima fingiu um mal estar e saiu da sala. No outro dia, quase toda sala solicitou desistência da matéria. Até hoje, Fátima ensina inglês, nunca fez mestrado, nem especialização, mas parece que precisou estudar o inglês para poder ensinar na faculdade.

Bibi, minha prima paulistana, veio trabalhar em Salvador e morar na nossa casa. Nascida e criada no maior centro financeiro do país, na cidade dos nordestinos, dos antigos imigrantes paupérrimos, que vinham das zonas rurais da Itália, Alemanha, Portugal, cheios das chagas dos seus países e regiões, assolados pela humilhação, pela guerra e pela miséria, chegou sorridente na Bahia, mas não se adaptou. Depois de ter tentando vários concursos, acabou vindo trabalhar no subemprego de balconista, num desses shoppings soteropolitanos, que só emprega gente branca. 

Bibi era até divertida, mas tinha a mania de corrigir. Uma vez troçou de mim, porque chamei de farda a vestimenta escolar de sua filha, a Bibizinha. “Farda é do exército Marcos, o certo é uniforme”. Ela acentuava bem o r fricativo, a sibilante paulistana, que julgava a forma correta de pronunciar palavras como “farda”, “Marcos” e “uniforme”. Eu fui paciente com ela, só abri o dicionário Aurélio e mostrei que farda era sim uma palavra que se aplicava ao vestuário escolar. Depois soube que tinha brigado com a gerente da loja em que trabalhava, porque troçou dela quando essa se referiu ao aparelho luminoso das ruas com uma variante linguística bem baiana, dicionarizada também: sinaleira. Depois da risada e da troça, no outro dia, recebeu carta de demissão. Voltou para o seu desemprego em São Paulo.

Aquele jeito de falar, aquela pretensa autoridade corretiva, meio fascista, me dava entojo, ela nunca conseguiu se adaptar a Salvador, nunca se adaptaria, viveria encastelada na sua própria ignorância da realidade linguística do português no Brasil, limitada pelo mito da pretensa superioridade da língua de algumas pessoas da cidade de São Paulo, cuja realidade linguística diversa Bibi também ignorava. Ninguém merece o militarismo linguístico (monitorando, corrigindo e reprimindo as falas alheias) na sua própria casa. Se Bibi não tivesse ido embora do meu ambiente íntimo, certamente, eu a expulsaria de casa. 

Tavares, Fátima e Bibi formam uma rede de ignorância e violência, uma rede que funciona como um comando paramilitar de repressão, não apenas à língua, mas à fala do outro.  Gente fracassada sempre usa formas sub-reptícias para tentar diminuir o outro. A comunicação com ela é tensa, medida, é um não diálogo, ou um antidiálogo. O preconceito linguístico age para impedir o outro de falar, baseia-se em mitos que já foram desconstruídos há tempos pela Sociolinguística, tais como: o português é muito difícil; é preciso saber gramática para falar e escrever bem; o domínio de uma norma-padrão é um instrumento de ascensão social; as pessoas sem instrução falam tudo errado etc.

No clássico “Preconceito Linguístico”, Marcos Bagno vai desconstruindo esses mitos, um a um. O sociolinguista afirma que todos nós somos de alguma forma vítimas do preconceito linguístico. E acrescenta: “se tantas pessoas inteligente e cultas continuam achando que 'não sabem o português' ou que 'o português é muito difícil' é  porque o uso da língua foi se transformando numa 'ciência exotérica', numa 'doutrina cabalística' que somente alguns 'iluminados'... conseguem dominar completamente”. Qualquer língua é marcada pela variedade com que ela pode ser falada, a variedade lexical (os vocábulos em si) e fonológica (o som). O que vai dizer se uma variedade é melhor do que a outra, que o meu português ou o meu inglês é melhor ou pior, se configura no terreno das relações sociais, do preconceito e da exclusão social, e não da natureza da língua: sempre vária, na sua aparente uniformidade. 

Se eu não percebesse, facilmente, a estupidez dos corretores da língua, dos generais do idioma, fracassados nas suas carreiras militares, certamente, teria em minha casa um altar dedicado à minha própria ignorância e a eles: os sumos sacerdotes da língua, os donos da minha fala e da minha alma.

quarta-feira, 14 de maio de 2014

Escorregando no quiabo

Todo mundo pode cair numa armadilha ideológica. Em um artigo escrito em 1978, um dos textos clássicos da crítica cultural brasileira, intitulado “Crítica literária versus crítica cultural”, o professor e teórico da literatura Silviano Santiago acusava outro professor, músico e crítico de arte, José Miguel Wisnik, de ter caído numa armadilha ideológica de gênero, gender trap.

Wisnik em ensaio sobre a música de Roberto Carlos disse sentir necessidade de “ter ouvidos femininos” e de ter que recorrer à sua mulher para entender a real grandeza do rei – o trocadilho foi inevitável.

A acusação “ter caído na armadilha de gênero” dirigida a Wisnik, por sua afirmação infeliz, soava também como denúncia da misoginia do falocentrismo e do elitismo de Theodor Adorno, filósofo alemão, que identificava a música romântica, aclamada pela chamada cultura de massa, com o “feminino”, ou seja, com o piegas e o "sentimentalóide". 

Silviano pegou Wisnik pra Cristo. Não adiantou o lero lero das explicações posteriores de Wisnik, o et cetera e tal, o texto de Silviano foi arrasador, porque vinha, juntamente, com o calor da reivindicações do final da década de 70, do feminismo, do movimento negro, do movimento anti-homofobia (é bom lembrar da fundação do “Somos”,primeiro grupo em defesa dos direitos LGBT do Brasil, criado em 1978). Wisnik, jovem idealista, sintonizado na época com esses movimentos, vacilou, escorregou no quiabo.

Ninguém está livre desse escorregão, livre de cair em uma armadilha ideológica e terminar reproduzindo preconceitos. Mas, olhando para trás, eu gostava muito do Silviano Santiago “rolo compressor”, cruel demais com o colega, escarafunchando um preconceito que talvez estivesse mesmo latente, mas que certamente não poderia ser identificado com a postura frequente e sistemática de Adorno. O teórico alemão esculachava todo tipo de música diferente da europeia, identificada como clássica e viril. 

Eu gostava daquele Silviano Santiago, autor de Uma literatura nos trópicos e Vale quanto pesa, porque os textos críticos carregavam força, juventude teórica, em contraposição aos textos de hoje, tão frágeis, voltando a defender a “grande literatura”. 

Em um artigo mais recente da coletânea “O cosmopolitismo do pobre”, intitulado “Literatura Anfíbia” Santiago defende uma literatura ut delectet e ut moveat (para deleitar e comover),criticando uma literatura ut doceat (para ensinar), como se realmente pudesse isolar o deleite e a comoção do ensino, e como se “a verdadeira ou a bela literatura” servisse como “cafuné” na cabeção dos homens perfeitos.

Silviano Santiago, para mim, escorregou de vez na lama e se afundou. Ele já está velho, duvido que mude sua postura agora. Digo o mesmo em relação a algumas posturas do “Caetano Velhoso” mas deixarei essa crítica para um outro texto, quem sabe.

Estamos numa época muito semelhante à do final da década de 70, em que reivindicações históricas antifalocentrismo, anti-homofobia e antirracismo voltaram com energia. Agora, entretanto, elas vêm acompanhadas da concretização de políticas importantes: casamento gay, as politicas raciais afirmativas, a Lei Maria da Penha etc. Foram conquistas importantes, que começaram, efetivamente no Brasil, lá entre o final de 70 e início de 80. 

As discussões se tornaram acaloradas, hoje, à flor da pele, pela injunção do momento, já que essas políticas ameaçam um status quo, constituído há séculos no Brasil. Qualquer insinuação, brincadeira de mal gosto, pode produzir desafetos, ou gerar processos judiciais. O ruim é quando, às vezes, o que nem mesmo é insinuado se passa por crime infame.

Contarei uma breve história. Uma professora negra reprova duas alunas em sua disciplina na faculdade. As alunas entram com recurso para revisão de prova. A professora não aceita as justificativas para essa revisão, comunica ao departamento. A diretora do departamento escreve na capa do processo, à lápis, “professora nega”, fica subentendido o objeto direto: nega a solicitação das alunas.

Em um outro momento, ao ver a anotação, sem saber quem a escreveu, a professora toma aquilo como uma injúria racial, uma vingança das alunas, que, provavelmente, viram o resultado do processo e acentuaram a condição racial da professora, “professora negra”, ou num português, gramaticalmente vingativo, “professora nêga”.

A situação foi devidamente esclarecida, antes que se tornasse um escândalo. Um escândalo de proporções inimagináveis, já que as duas alunas também eram negras. Em épocas de semânticas deslizantes, em que qualquer declaração pode descambar para a injúria racial, homofóbica, racista, é melhor esclarecer e explicar tudinho. Injunções do momento.

E por falar nisso, antes que a expressão que intitula esse texto (que significa aqui “pisar na bola”) seja tomada em sua conotação sexual preconceituosa, sua utilização aqui foi mesmo para chamar a atenção. Uma força da expressividade.

Dessa vez, pelo menos dessa vez, eu não caí numa armadilha ideológica. Não escorreguei no quiabo.

domingo, 11 de maio de 2014

DIÁRIO PÓSTUMO

Hoje o céu aumentou de tamanho. Acordei. A janela tão grande, o céu azul... Meu coração amanheceu aflito, não sei, hoje queria ter ficado na cama até mais tarde. As ladeiras da minha rua são como as linhas do meu destino, tenho que descer o morro pra resolver todas as coisas em diferentes lugares, queria escrever uma música que falasse do meu dia a dia. Começaria assim: “Na minha mesa agulha e linha, desço as ladeiras do meu destino, que são as linhas do meu morro... morro... morro”.

Hoje seria um bom dia pra morrer. Eu já li essa frase em algum lugar, mas eu penso nela todos os dias, acho que todo mundo pensa na sua própria morte todos os dias, mesmo que inconscientemente. Será que a minha morte faria sentido no meio das coisas desse mundo tão diverso? A morte é um ponto obscuro, uma interrogação constante, nós vivemos a existência humana na morte, porque podemos viver cem anos, mas estaremos morto por toda uma eternidade. Vivemos num grão de areia que é a vida, e a morte é toda a areia do universo: nos desertos, nas praias, debaixo da superfície dos oceanos, a areia fina navegando como pó, por todo o cosmo. Rastejamos na vida e nos esparramamos inexoravelmente na morte.

Eu poderia ser filósofa, no entanto vou me recolher à ignorância do meu dia a dia, ao meu trabalho à minha família. Uma volta de bicicleta vai me fazer bem, as rodas me levam com uma velocidade gostosa. Vou fazer as coisas que gosto hoje. Hoje, nessa manhã, tudo simples, eu sou simples. Se fosse pra escolher uma maneira de morrer, queria tanto que meu coração parasse descendo de bicicleta, numa dessas ladeiras esburacadas. Seria como a morte num avião supersônico, em plena turbulência, entrando num túnel, num túnel... Eu sou mulher e ser mulher é também sonhar com coisas de máquina. Os homens afastam da gente o domínio desses robôs, mas eu sei fazer costura, manipular uma máquina de costura. Fora isso, a única máquina que conheço é a que meu pé faz movimentar, o pedal da bicicleta, a frágil corrente que me impulsiona a viver.

Eu me senti máquina um dia. Tive a exata noção de que minhas entranhas funcionavam como um estranho mecanismo, quando gerei outro ser. Ninguém resolveu a máquina que sou, porque senti muita dor, o sangue escorria grosso, não sabia lidar com aquilo, queria pedalar meu corpo, fechar minhas chagas, como fecho um tecido, como remendo roupas.

Desci o beco esquálido, estranho beco. Ouvi voz de homem, grossa e insistente. Esquisito. Ele me parou, me perguntou se tinha filhos, respondi que sim “duas”. Não senti minha existência nessa resposta, porque daí em diante, a eternidade me levou da forma mais violenta. Músculos me arrebataram, senti meu corpo voar no chão, vozes desconexas, minha carne recebe o furo de um objeto que vai cortando, engraçado minha carne parecia linho grosso, não seda, que se rasga tão poeticamente. Meu corpo não é mais meu, deixei-o para turba, uma multidão, que queria minha morte.

Uma dor. Eu já senti dores intensas, mas essa é tão louca e inimaginável, que me anestesia. Vejo pernas, sandálias, sinto um chute, outro puxão, ouço um xingamento e mais outro chute, dói meu esqueleto, não sabia que meus ossos poderiam oferecer resistência, sempre acreditei que tinha um osso mole. Umas 20 pessoas participam de uma brutalidade, inclusive crianças. Não resisto, mas meu corpo oferece uma estranha resistência sólida, uma menina grita para não me baterem: “não façam isso com ela”! "Ela é uma puta assassina, grita outro". Lembrei da prostituta da bíblia, das mulheres de antigamente que eram queimadas, pensei que meu cabelo pintado teria despertado a fúria de uma inquisição popular, açoitada na rua como uma bruxa.

Às vezes tudo para, acho que a multidão me deixou. Mas logo, alguém me condena, chutes pisadas nas costas. Cometi o crime de viver essa vida de mulher. Não sou uma mãe perfeita, ninguém é, estou sendo açoitada por isso? Estou pagando pelos pecados e os deslizes de todas as mães. As mães que abandonam seus filhos, as que nem conseguem olha-los, quando lhes nascem. As mães que rejeitam, as que odeiam, as mães que chantageiam e também as que amam demais. Não fiz isso, não sou isso, mas sou a culpada por todas. Aceito o meu fim, aceito a culpa louca desse mundo de homens, e sinto o peso de uma pedra sobre minha cabeça. Sou arrastada com uma corda no braço, minha morte é uma imolação para as mães, elas serão perdoadas, elas serão perdoadas.... Perdoadas por amarem e odiarem, por não serem as mães das canções do dia das mães, por serem humanas, demasiadamente... Enfim, eles me deixam sob o cansaço da própria fúria, que também tem sua exaustão. Meu corpo é jogado de uma ponte e de longe vejo seguindo a linha de um rio imundo, meu sangue misturado com um líquido, fétido e escuro.... morro, morro, morro...