“O português é difícil”. Ouvi essa triste afirmação numa roda de amigos e, como não foi a primeira vez que tinha ouvido tal frase, encarei com doçura (e não com susto) o meu interlocutor.
- Mas, você é de onde mesmo?
- Sou daqui, de Salvador.- Digo, nasceu onde?
- Aqui mesmo, Salvador....
- Então porque vocês está falando isso, que o português é difícil?
- Assim, é difícil de falar... de escrever...
- Falar? Escrever? Você está comparando o português com outra língua, que você conhece? Porque, mesmo comparando com outra língua, você vai ter que argumentar direitinho o que faz uma língua ser mais difícil do que outra.... Qualquer criança de 3 anos, seja ela alemã, francesa, italiana, tcheca, chinesa ou brasileira fala o seu próprio idioma com desenvoltura, não fica chorando pelos cantos, muda, porque sua língua é difícil.
A conversa acabou ali, porque daí por diante ouvi um gaguejar, uma série de frases engroladas, que tentavam montar um argumento, em vão... Meu interlocutor até tentou fazer comparações estúrdias do português com o inglês (ele tinha feito um desses cursos caros, que não ensinava inglês a ninguém) mas “caiu na boca de lobo”. “O inglês é mais objetivo, o português é subjetivo, as frases maiores”. Eu pedi que desenvolvesse o argumento, mas ele não citou exemplos, e a conversa ficou, assim, pelo meio. Ele calado no fim das minhas perguntas, com a cara triste. Naquele momento, vi pela primeira vez, uma criança de 40 anos chorando, porque sua língua era difícil. Uma lástima.
A vingança da turma não foi sopa fria, não tardou. Neide, a nossa colega mais fluente levou um dia consigo, uma amiga americana para as aulas da professora. A mestre gelou, quando viu aquela moça loira, olhos azuis, bem americana, entrando na sua classe. “This is my friend. She is from Massachusetts, USA” - introduziu Neide. Fátima, que mudou de cor, começou falar o inglês dela, no qual todos nós acreditávamos. As respostas de Lindy, a amiga de Neide, às falas de nossa professora, começava sempre com um muxoxo de incompreensão, seguido daquela frase gentil dos americanos, quando não entendem o que alguém diz: “I am sorry”. A aula não rendeu, Fátima fingiu um mal estar e saiu da sala. No outro dia, quase toda sala solicitou desistência da matéria. Até hoje, Fátima ensina inglês, nunca fez mestrado, nem especialização, mas parece que precisou estudar o inglês para poder ensinar na faculdade.
Tavares, Fátima e Bibi formam uma rede de ignorância e violência, uma rede que funciona como um comando paramilitar de repressão, não apenas à língua, mas à fala do outro. Gente fracassada sempre usa formas sub-reptícias para tentar diminuir o outro. A comunicação com ela é tensa, medida, é um não diálogo, ou um antidiálogo. O preconceito linguístico age para impedir o outro de falar, baseia-se em mitos que já foram desconstruídos há tempos pela Sociolinguística, tais como: o português é muito difícil; é preciso saber gramática para falar e escrever bem; o domínio de uma norma-padrão é um instrumento de ascensão social; as pessoas sem instrução falam tudo errado etc.
No clássico “Preconceito Linguístico”, Marcos Bagno vai desconstruindo esses mitos, um a um. O sociolinguista afirma que todos nós somos de alguma forma vítimas do preconceito linguístico. E acrescenta: “se tantas pessoas inteligente e cultas continuam achando que 'não sabem o português' ou que 'o português é muito difícil' é porque o uso da língua foi se transformando numa 'ciência exotérica', numa 'doutrina cabalística' que somente alguns 'iluminados'... conseguem dominar completamente”. Qualquer língua é marcada pela variedade com que ela pode ser falada, a variedade lexical (os vocábulos em si) e fonológica (o som). O que vai dizer se uma variedade é melhor do que a outra, que o meu português ou o meu inglês é melhor ou pior, se configura no terreno das relações sociais, do preconceito e da exclusão social, e não da natureza da língua: sempre vária, na sua aparente uniformidade.
Se eu não percebesse, facilmente, a estupidez dos corretores da língua, dos generais do idioma, fracassados nas suas carreiras militares, certamente, teria em minha casa um altar dedicado à minha própria ignorância e a eles: os sumos sacerdotes da língua, os donos da minha fala e da minha alma.