Todo mundo pode cair numa armadilha ideológica. Em um artigo escrito em 1978, um dos textos clássicos da crítica cultural brasileira, intitulado “Crítica literária versus crítica cultural”, o professor e teórico da literatura Silviano Santiago acusava outro professor, músico e crítico de arte, José Miguel Wisnik, de ter caído numa armadilha ideológica de gênero, gender trap.
Wisnik em ensaio sobre a música de Roberto Carlos disse sentir necessidade de “ter ouvidos femininos” e de ter que recorrer à sua mulher para entender a real grandeza do rei – o trocadilho foi inevitável.
A acusação “ter caído na armadilha de gênero” dirigida a Wisnik, por sua afirmação infeliz, soava também como denúncia da misoginia do falocentrismo e do elitismo de Theodor Adorno, filósofo alemão, que identificava a música romântica, aclamada pela chamada cultura de massa, com o “feminino”, ou seja, com o piegas e o "sentimentalóide".
Silviano pegou Wisnik pra Cristo. Não adiantou o lero lero das explicações posteriores de Wisnik, o et cetera e tal, o texto de Silviano foi arrasador, porque vinha, juntamente, com o calor da reivindicações do final da década de 70, do feminismo, do movimento negro, do movimento anti-homofobia (é bom lembrar da fundação do “Somos”,primeiro grupo em defesa dos direitos LGBT do Brasil, criado em 1978). Wisnik, jovem idealista, sintonizado na época com esses movimentos, vacilou, escorregou no quiabo.
Ninguém está livre desse escorregão, livre de cair em uma armadilha ideológica e terminar reproduzindo preconceitos. Mas, olhando para trás, eu gostava muito do Silviano Santiago “rolo compressor”, cruel demais com o colega, escarafunchando um preconceito que talvez estivesse mesmo latente, mas que certamente não poderia ser identificado com a postura frequente e sistemática de Adorno. O teórico alemão esculachava todo tipo de música diferente da europeia, identificada como clássica e viril.
Eu gostava daquele Silviano Santiago, autor de Uma literatura nos trópicos e Vale quanto pesa, porque os textos críticos carregavam força, juventude teórica, em contraposição aos textos de hoje, tão frágeis, voltando a defender a “grande literatura”.
Em um artigo mais recente da coletânea “O cosmopolitismo do pobre”, intitulado “Literatura Anfíbia” Santiago defende uma literatura ut delectet e ut moveat (para deleitar e comover),criticando uma literatura ut doceat (para ensinar), como se realmente pudesse isolar o deleite e a comoção do ensino, e como se “a verdadeira ou a bela literatura” servisse como “cafuné” na cabeção dos homens perfeitos.
Silviano Santiago, para mim, escorregou de vez na lama e se afundou. Ele já está velho, duvido que mude sua postura agora. Digo o mesmo em relação a algumas posturas do “Caetano Velhoso” mas deixarei essa crítica para um outro texto, quem sabe.
Estamos numa época muito semelhante à do final da década de 70, em que reivindicações históricas antifalocentrismo, anti-homofobia e antirracismo voltaram com energia. Agora, entretanto, elas vêm acompanhadas da concretização de políticas importantes: casamento gay, as politicas raciais afirmativas, a Lei Maria da Penha etc. Foram conquistas importantes, que começaram, efetivamente no Brasil, lá entre o final de 70 e início de 80.
As discussões se tornaram acaloradas, hoje, à flor da pele, pela injunção do momento, já que essas políticas ameaçam um status quo, constituído há séculos no Brasil. Qualquer insinuação, brincadeira de mal gosto, pode produzir desafetos, ou gerar processos judiciais. O ruim é quando, às vezes, o que nem mesmo é insinuado se passa por crime infame.
Contarei uma breve história. Uma professora negra reprova duas alunas em sua disciplina na faculdade. As alunas entram com recurso para revisão de prova. A professora não aceita as justificativas para essa revisão, comunica ao departamento. A diretora do departamento escreve na capa do processo, à lápis, “professora nega”, fica subentendido o objeto direto: nega a solicitação das alunas.
Em um outro momento, ao ver a anotação, sem saber quem a escreveu, a professora toma aquilo como uma injúria racial, uma vingança das alunas, que, provavelmente, viram o resultado do processo e acentuaram a condição racial da professora, “professora negra”, ou num português, gramaticalmente vingativo, “professora nêga”.
A situação foi devidamente esclarecida, antes que se tornasse um escândalo. Um escândalo de proporções inimagináveis, já que as duas alunas também eram negras. Em épocas de semânticas deslizantes, em que qualquer declaração pode descambar para a injúria racial, homofóbica, racista, é melhor esclarecer e explicar tudinho. Injunções do momento.
E por falar nisso, antes que a expressão que intitula esse texto (que significa aqui “pisar na bola”) seja tomada em sua conotação sexual preconceituosa, sua utilização aqui foi mesmo para chamar a atenção. Uma força da expressividade.
Dessa vez, pelo menos dessa vez, eu não caí numa armadilha ideológica. Não escorreguei no quiabo.
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