domingo, 11 de maio de 2014

DIÁRIO PÓSTUMO

Hoje o céu aumentou de tamanho. Acordei. A janela tão grande, o céu azul... Meu coração amanheceu aflito, não sei, hoje queria ter ficado na cama até mais tarde. As ladeiras da minha rua são como as linhas do meu destino, tenho que descer o morro pra resolver todas as coisas em diferentes lugares, queria escrever uma música que falasse do meu dia a dia. Começaria assim: “Na minha mesa agulha e linha, desço as ladeiras do meu destino, que são as linhas do meu morro... morro... morro”.

Hoje seria um bom dia pra morrer. Eu já li essa frase em algum lugar, mas eu penso nela todos os dias, acho que todo mundo pensa na sua própria morte todos os dias, mesmo que inconscientemente. Será que a minha morte faria sentido no meio das coisas desse mundo tão diverso? A morte é um ponto obscuro, uma interrogação constante, nós vivemos a existência humana na morte, porque podemos viver cem anos, mas estaremos morto por toda uma eternidade. Vivemos num grão de areia que é a vida, e a morte é toda a areia do universo: nos desertos, nas praias, debaixo da superfície dos oceanos, a areia fina navegando como pó, por todo o cosmo. Rastejamos na vida e nos esparramamos inexoravelmente na morte.

Eu poderia ser filósofa, no entanto vou me recolher à ignorância do meu dia a dia, ao meu trabalho à minha família. Uma volta de bicicleta vai me fazer bem, as rodas me levam com uma velocidade gostosa. Vou fazer as coisas que gosto hoje. Hoje, nessa manhã, tudo simples, eu sou simples. Se fosse pra escolher uma maneira de morrer, queria tanto que meu coração parasse descendo de bicicleta, numa dessas ladeiras esburacadas. Seria como a morte num avião supersônico, em plena turbulência, entrando num túnel, num túnel... Eu sou mulher e ser mulher é também sonhar com coisas de máquina. Os homens afastam da gente o domínio desses robôs, mas eu sei fazer costura, manipular uma máquina de costura. Fora isso, a única máquina que conheço é a que meu pé faz movimentar, o pedal da bicicleta, a frágil corrente que me impulsiona a viver.

Eu me senti máquina um dia. Tive a exata noção de que minhas entranhas funcionavam como um estranho mecanismo, quando gerei outro ser. Ninguém resolveu a máquina que sou, porque senti muita dor, o sangue escorria grosso, não sabia lidar com aquilo, queria pedalar meu corpo, fechar minhas chagas, como fecho um tecido, como remendo roupas.

Desci o beco esquálido, estranho beco. Ouvi voz de homem, grossa e insistente. Esquisito. Ele me parou, me perguntou se tinha filhos, respondi que sim “duas”. Não senti minha existência nessa resposta, porque daí em diante, a eternidade me levou da forma mais violenta. Músculos me arrebataram, senti meu corpo voar no chão, vozes desconexas, minha carne recebe o furo de um objeto que vai cortando, engraçado minha carne parecia linho grosso, não seda, que se rasga tão poeticamente. Meu corpo não é mais meu, deixei-o para turba, uma multidão, que queria minha morte.

Uma dor. Eu já senti dores intensas, mas essa é tão louca e inimaginável, que me anestesia. Vejo pernas, sandálias, sinto um chute, outro puxão, ouço um xingamento e mais outro chute, dói meu esqueleto, não sabia que meus ossos poderiam oferecer resistência, sempre acreditei que tinha um osso mole. Umas 20 pessoas participam de uma brutalidade, inclusive crianças. Não resisto, mas meu corpo oferece uma estranha resistência sólida, uma menina grita para não me baterem: “não façam isso com ela”! "Ela é uma puta assassina, grita outro". Lembrei da prostituta da bíblia, das mulheres de antigamente que eram queimadas, pensei que meu cabelo pintado teria despertado a fúria de uma inquisição popular, açoitada na rua como uma bruxa.

Às vezes tudo para, acho que a multidão me deixou. Mas logo, alguém me condena, chutes pisadas nas costas. Cometi o crime de viver essa vida de mulher. Não sou uma mãe perfeita, ninguém é, estou sendo açoitada por isso? Estou pagando pelos pecados e os deslizes de todas as mães. As mães que abandonam seus filhos, as que nem conseguem olha-los, quando lhes nascem. As mães que rejeitam, as que odeiam, as mães que chantageiam e também as que amam demais. Não fiz isso, não sou isso, mas sou a culpada por todas. Aceito o meu fim, aceito a culpa louca desse mundo de homens, e sinto o peso de uma pedra sobre minha cabeça. Sou arrastada com uma corda no braço, minha morte é uma imolação para as mães, elas serão perdoadas, elas serão perdoadas.... Perdoadas por amarem e odiarem, por não serem as mães das canções do dia das mães, por serem humanas, demasiadamente... Enfim, eles me deixam sob o cansaço da própria fúria, que também tem sua exaustão. Meu corpo é jogado de uma ponte e de longe vejo seguindo a linha de um rio imundo, meu sangue misturado com um líquido, fétido e escuro.... morro, morro, morro...

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