quarta-feira, 16 de dezembro de 2015

A seleção Tabajara Futebol Clube da Direita

(Inspirada na escalação do Brasil no jogo contra Alemanha, copa de 2014)

Por Marcos Aurélio Souza

Presidente da CBF e do clube: Eduardo Cunha (o time é ruim, mas ele sempre tenta dar um jeito de ganhar: compra juiz, corrompe jogadores, oferece propina etc. O maior cartola de todos os tempos).

Técnico: Bolsonaro (grita mais do que Felipão, representa tudo o que há de pior no time).

No Campo

Goleiro – Luiz Felipe Pondé (é gordo e lento, não agarra ninguém)

Zagueiro 1 - Alexandre Frota (gosta de ficar na retranca e de segurar os jogadores mais fortes)

Zagueiro 2 – Olavo de Carvalho (defende o indefensável e leva sempre debaixo da saia)

Lateral direito – Feliciano (mais direita que esse é impossível. Às vezes, vai tanto para direita, que as pessoas perguntam: “Onde está ele”? Saiu do campo)

Lateral esquerdo: Lobão (Botaram ele na esquerda, porque gostam de sacanear com ele. Lobão fica com a cara muito engraçada, quando é sacaneado)

Meio de Campo 1: Kataguiri, o fenômeno (aprendeu no Japão técnicas futebolísticas. Corre e corre e não faz nada. Fica no meio porque adora está no centro das atenções)

Meio de Campo 2: Maitê Proença (colocaram ela aí no meio, porque tinha que ter alguém bonito no time)

Meio de Campo 3: Diogo Mainardi (não sabe se está no Brasil, na Itália ou na Alemanha, por isso ficou no meio, mas, na verdade, é da direita)

Atacante 1: Sherazade (ela ataca tanto, que as vezes parece atacada)

Atacante 2: Datena (afinal de contas, com Frota, Olavo de Caralho e Feliciano, tinha que ter um “macho de verdade” pra bater o pau na mesa)

Atacante 3: Marta Suplicy (ela era do time adversário, mas está nesse time pra fazer gol contra. Será?)



terça-feira, 6 de outubro de 2015

Meu neto preto


Ela tinha o direito de ser feliz. Mas eu andava desanimado com aquela relação. Esperava uma crise qualquer entre eles, para eu desabafar. Certamente, ela me ouviria calada, respeitaria minha opinião de pai, enfim, me obedeceria. 

Eu queria que minha voz fosse grave como a do meu pai, e eu seria um pai para ela como meu pai foi para mim, antes da doença, que o devastara. O peso da velhice e da diabetes o deixara estranho, era menos meu pai, parecia cada vez mais índio, sentado, pernas abertas, absorto, como um velho botocudo. Lábios abertos, gengivas a mostra, sem dente, como se tivesse usado aqueles alargadores de boca, durante toda a vida. Morreu assim, débil, e eu queria morrer diferente.

A felicidade era branca, e eu estava gordo e grisalho, respeitavam-me como um coronel, todos me bajulavam, mas naquele momento eu queria ser apenas o seu pai. Diria pra ela, esperando momento oportuno, que não queria seu envolvimento com pessoas de outra cor. Ela estava feliz com aquela relação, mas nada dura para sempre. E quando a duração se enfraquecesse, ou perdesse sua solidez, minha voz teria o peso de uma premonição. Aventura é para homem, mulher tem que casar, assegurar estirpe e cor, com um nome de macho, de preferência estrangeiro. O velho me ensinara isso e ensinara isso para minhas irmãs. Pardo, índio, sobrenome de pobre, mas com lições grandiosas para as nossas vidas. Nem se incomodara, quando coloquei nos netos o sobrenome de mamãe, mais raro, porque o dele, que eu herdara também, lembrava tristeza. 

Quando a encontrei duvidosa, não foi a minha voz, mas a voz do avô, meu pai, que lhe disse aquelas palavras:

- Filha, acho ele uma boa pessoa, mas não gosto de sua estética. Eu não casaria com ele.

As palavras tiveram peso naquela natureza, que parecia indócil, mas sempre me obedecia, porque ela se calou e partiu.

Durante os meses seguintes, a tristeza assolara seu rosto, sua relação já não era mesma. Queixava-se sempre do marido. Eu apenas a ouvia e balançava a cabeça como um velho ermitão, um monge, cuja sapiência se pressente no silêncio. Até que um dia me aparecera grávida. Um filho do marido preto, um desfecho atordoante daquela relação, que condenei, e parecia acabar um dia, sem um fruto sequer. Engoli seco a notícia, mas me segurei para não ser bruto. 

A brutalidade, aliás, era a marca de minha adolescência com meus três irmãos homens, com diferenças mínimas de idade. Disputávamos tudo, roupas, comida e a atenção de mamãe. Nossa maior disputa, porém, era o sexo com Raimunda, a empregada preta, uma espécie de escrava que nos criou da infância até a adolescência. Até que meu irmão mais novo, incauto, esquecendo o uso da camisinha, a engravidara, e fui eu quem comprou Cytotec no camelô, apagando a possibilidade de um herdeiro preto na nossa família.

Agora a sombra voltando. Minha filha grávida. Perguntei se ela queria ter o bebê. Ela chorou e eu me calei. Senti-me envergonhado, seria avô de um neto ou de uma neta preta. Senti o peso da minha própria velhice. Temi morrer, careca e magro, minha imagem a mesma, ou pior que a do meu pai. Lembrariam meu sobrenome de tristeza, a minha herança de tristeza. E a terra preta desabaria sobre mim, restando apenas, como fundo do meu orgulho e miséria, meu esqueleto branco e fétido.

sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Preto matando preto ou Ainda o Cabula


Existe uma música intitulada "Haiti", letra de Caetano Veloso, que diz assim: 

“Quando você for convidado pra subir no adro/Da fundação casa de Jorge Amado/Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos/Dando porrada na nuca de malandros pretos/De ladrões mulatos e outros quase brancos/Tratados como pretos/Só pra mostrar aos outros quase pretos/(E são quase todos pretos) E aos quase brancos pobres como pretos/Como é que pretos, pobres e mulatos/E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados.” 

Embora Caetano tenha posturas duvidosas em relação a políticas raciais no Brasil (já se colocou contra as cotas nas universidades, por exemplo) seu texto demonstra como funciona o racismo no Brasil, sua faceta mais perniciosa: a internalização e a reprodução do preconceito racial por parte do próprio negro (ou dos "brancos", "quase negros"), vítima e algoz. 

O que herdamos hoje é o funcionamento de uma sociedade que perdurou por mais de 350 anos da nossa história. Uma estrutura colonial, que criava hierarquias entre os próprios escravizados. Como não havia uma origem única, ou uma única cultura de escravizados negros, os quais provinham de diversas partes da África, e, como famílias e etnias eram separadas e desestruturadas para não haver um levante (não havia sequer uma mesma língua) anticolonial, era muito fácil delegar funções coloniais escravocratas (a escravidão era um sistema amplamente praticado na África e na Europa), inclusive funções de opressão entre os próprios africanos. 

A figura do capitão do mato surge daí. Ela era, muitas vezes, um africano ou descendente de africano, que exercia função de caçar negros fugidos. O discurso de articulação negra existiu fora desse sistema opressivo, a partir da inteligência de muitos desses indivíduos que, mesmo com a desarticulação promovida pela diáspora forçada e, muitas vezes, com a inexistência de uma única língua, conseguiam criar movimentos de resistência escrava. E pipocaram quilombos, revoltas e rebeliões, por toda parte do território brasileiro. O Haiti (país que, durante o século XIX, tornou-se a primeira república negra do mundo, e a primeira república da América Latina, e que vive sua miséria atual pela política racista de boicotes históricos de outros países) "não é aqui", porque a colonização conseguiu e vem conseguindo nos desarticular mentalmente. E “é aqui”, pela quantidade de afrodescendentes que temos em nosso país, pelo poder de resistência que isso pode denotar.

A música redimensionada no presente mostra que essa estrutura perdura toda vez que um negro oprime, violenta e prende o outro. A música é interessante porque coloca isso no palco da contemporaneidade, da violência policial no palco das grandes festas, como no carnaval, ou na gravação de grandes sucessos da música internacional, vide Paul Simon e Michael Jackson no Pelourinho. Violência que é quase sempre dirigida às pessoas negras.

Bom, aí vem o discurso da segurança, das drogas da criminalidade… Mas vamos pensar a criminalidade, então, bem friamente. Onde está o crime? O tráfico de droga é o principal motivo para o assassinato de jovens negros, segundo registros policiais. No entanto, são jovens e velhos brancos, em grande parte, que compram essa droga. A droga não é consumida no Cabula, bairro de negros, mas na Pituba, na Graça, bairros de branco. A polícia não entra em prédio de luxo para prender inveterados consumidores de cocaína, que alimentam o tráfico. Imagine só a cena de vários policiais pegando jovens da Graça, Pituba, Barra, em sua maioria brancos e de classe média, e os executando por serem consumidores de droga, ou criminosos. Imaginou? Não dá nem pra imaginar, não é?Porque o capitão do mato não é louco de invadir a Casa Grande, embora toda ordem de crime seja praticada por quem está lá. 

Agora, pense na cena de policiais entrando em barracos de pretos e pobres, selecionando-os a esmo nas ruas do Cabula e matando 13 inocentes. É mais fácil matar negro pobre, porque foram historicamente relegados pela ideologia raciológica da inferiorização, e por uma justiça ideologicamente branca, que cobra caro para ser “justa” (a redundância é necessária). 

Não estou dizendo que o policial reedita sempre a função do capitão do mato, ou que um policial negro sempre faz isso. Mas quando a polícia se torna braço ideológico de um Estado genocida, que tem costume de atentar contra os mais pobres e ver a criminalidade intensamente como prática da população negra ( herança maldita da escravidão e da colonização) é claro que vai haver resistência. Ninguém é tolo de ver um alto índice de homicídios de pessoas negras e achar que isso tudo é por causa do crime. Há uma pesada carga histórica, ideológica, nesse fato sombrio.

Polícia que é polícia e quer combater o crime, o tráfico de drogas, rompe a corda do bloco do carnaval e apreende a cocaína do "mauricinho" que está lá. Se ela só exerce poder e brutalidade contra a população que está fora, na periferia, se ela é ostensiva para quem é inocente, só porque está do lado estigmatizado, exerce sim a função de capitão do mato. O professor reedita a estrutura colonial quando considera um aluno tábula rasa, diz que ele não sabe de nada e desconsidera seus saberes, como os jesuítas faziam com os índios. Da mesma forma, que a polícia reedita o poder genocida da casa grande (o engenho dos brancos) quando assassina 13 jovens inocentes.

Viva os bons policiais, que não entram nessa lógica. E que vivam nossos jovens negros.

(Para quem quer ampliar o conhecimento sobre o assunto "racismo brasileiro", "colonialismo e racismo", algumas boas leituras:


AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Onda Negra, Medo Branco: o negro no imaginário das elites - século XIX. 2ª ed. São Paulo: Annablume, 2004.

FANON, Frantz. Os condenados da terra. 2 ed. Tradução de José Laurênio de Melo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.

GILROY, Paul. O Atlântico Negro. Modernidade e dupla consciência. Tradução de Cid Knipel Moreira. São Paulo/Rio de Janeiro: 34/Universidade Cândido Mendes – Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001.

GONZALES, Lélia. A categoria cultural da Amefricanidade. In.: Revista Tempo Brasileiro. Nº 92/93, 68/82 (jan-jun), 1988: p. 69-81.

MUNANGA, Kabengele As facetas de um racismo silenciado. In SCHWARCZ, Lilia Moritz; QUEIROZ, Renato da Silva (orgs.) Raça e diversidade. São Paulo: EDUSP/Estação Ciência, 1996. p. 213/229.

SODRÉ, Muniz. O terreiro e a cidade: a forma social negro-brasileira. Petrópolis, Vozes, 1988.)

segunda-feira, 22 de junho de 2015

Nem todas as crianças vingam

Ao autor de “Pai contra mãe”, Machado de Assis.

É previsível que num país em que muitas pessoas leem a revista Veja  e assistem a programas sensacionalistas como Brasil Urgente (em que se destilam ódio contra pretos e pobres), a redução da maioridade penal seja defendida veementemente. 

Para essas pessoas, a voz de um apresentador machão bradando contra  a criminalidade de moleques traficantes e a de uma repórter loira, que fez valer seu diploma do curso de comunicação, numa faculdade particular, com entrevistas toscas a assaltantes de estabelecimentos comerciais, representam o pináculo heroico, a maior expressão intelectual dos novos tempos .

A lógica desses veículos de comunicação segue a fantasia maniqueísta da velha classe média, pagadora dos seus impostos, do cidadão de bem contra a maldade das drogas e do assaltante favelado, que lhe rouba relógio e carro, financiado em 60 meses. Tentador é entender a cabeça de quem apóia a redução da maioridade penal com uma cena do nosso mais brutal cotidiano.

Tiago faz parte dessa fauna. Ele tem 30 anos, é representante comercial e se orgulha em fazer curso sobre a bíblia com sua família. Tem mulher, filho de três anos e outro para nascer. Defende o direito a ter uma arma para se defender, assegurando seu único patrimônio, um carro financiado. Vai atirar para matar, se preciso for. Com muito esforço está pagando também sua faculdade de administração, sonha em ter sua própria empresa. Viveu em condomínio fechado numa cidade do interior, teve boa infância. O pai o incentivou a se inserir no meio social, foi para a igreja e para  a maçonaria. Acha que teve vida difícil. É gordo e feio. Não entende porque existem cotas para se entrar na universidade, nem porque tem gente que tem prioridade nas filas dos bancos, aeroportos e estacionamentos. Esbravejou um dia numa fila de embarque aéreo:  “Nesta sociedade, nós é que somos discriminados, nós cidadãos de bem, homens comuns”.

Dr. Júlio Caldas, velho médico obstetra e triste, porque há dez anos não consegue terminar seu livro de poesia, também faz parte dessa fauna. Ele se acha sensível. É membro da academia de Letras de sua cidade, com um livro sempre “no prelo”. Quando jovem, a família tirou de onde não podia para pagar a faculdade dele, o único filho médico. A primeira vez que tentou fazer um parto normal, foi frustrante, acabou desistindo, optando pela cesárea. Os colegas em reuniões particulares gozam dele e da história, dizendo que a paciente saiu com dois cortes: um no períneo e outro no abdômen. Obstetra, atende a todos os planos, em clínica particular, e  rede pública também. Chega a fazer 10 partos por mês, o que lhe garante boa renda. Não suporta a presença de médicos cubanos no Brasil. “Vieram para tomar nosso lugar e nem cara de médicos eles têm”. Também não entende o porquê dessa nova onda de “humanização do parto”. Em reunião com outros médicos perguntou estupefato: “como as mulheres vão parir, se não posso pedir que façam força ou que fiquem tranquilas?”. Dr. Júlio é conhecido pela grosseria com que trata suas pacientes, especialmente as mais pobres.

Depois de ter visto, na TV da sala de espera, um apresentador descabelado noticiar que um ciclista médico foi assassinado, Tiago entra com a esposa no consultório de Dr. Júlio.

- Bom dia, doutor, meu herdeiro quando vem?

- Vamos marcar esse parto? Seu filho está bem e vai nascer saudável.  Respondeu firmemente o médico.

Tiago respondeu, antes de qualquer reação da mulher:
- Vamos sim.

O marido folheava uma revista da bancada, enquanto o médio finalizava o atendimento. Tentando impressionar o doutor, mostrando que estava atualizado com as notícias da manhã, disse:

- E o médico, colega seu, morto a facadas por um pivete, doutor? Essa meninada marginal tem que ser colocada na cadeia...

O rapaz engrolou sua defesa da pena de morte para crimes hediondos, prisão perpétua para assassinos menores. Argumentou a favor de uma sociedade armada e evocou os valores da família tradicional.

O médico estava absorto, lembrando do malogrado parto do dia anterior, no hospital público. A mocinha pobre chorou desesperada ao ver algo parecido com um bebê, todo cheio de sangue, sem vida na mesa cirúrgica, o feto havia engolido mecônio. Parto difícil, sabe como é, em hospital público nunca é a mesma coisa, vai à sorte. Ele nunca se sentia culpado ou ficava triste quando algo assim acontecia. Aquela menina, naquela situação, era melhor não ter o filho mesmo.

Tiago perguntou ao médico se concordava com a redução da maioridade penal no Brasil.
- Sim, sim, concordo.  

O doutor pensou que aquele marginalzinho, assassino do médico ciclista, poderia não ter nascido e não nasceria se dependesse de suas mãos. Achou seu trabalho mais importante do que qualquer poesia. Porque nem todas as crianças vingam, ainda bem.







quarta-feira, 18 de março de 2015

Receita: Coxinha

Ingredientes:
– Leitura frequente da Revista Veja e do jornal Folha de São Paulo;
– Audiência acrítica e recorrente do Jornal Nacional, novelas e programas de entretenimento, a exemplo de Malhação, Zorra Total, Faustão, Agora é Tarde etc;
– Raiva da PEC das Domésticas;
– Indignação com o fato de muita gente pobre usar espaços de lazer (praias, clubes, boates etc.) ou aeroportos;
– Raiva de programas sociais, que só beneficiam pessoas mais pobres;
– Ignorância histórica;
– Apoio à redução da maioridade penal e defesa da “pena de morte” para jovens negros marginalizados;
– Paixão pelo autoritarismo militar e pela ideia de intervenção militar;
– Medo inexplicável e irracional do comunismo e a tudo que possa ter alguma associação com ele: a cor vermelha, por exemplo;
– homofobia;
– machismo;
– racismo;
– misoginia;
– xenofobia;
– alienação religiosa.


Modo de preparar
– Misturar pelo menos dois desses ingredientes num panelaço (quanto mais ingredientes da lista misturados, melhor o produto)
– Confeitar com as cores verde e amarelo, colocar cartazes mal escritos e delirantes.
– Servir numa praça qualquer, ou numa avenida,onde tenha um desses grandes supermercados, um fast food ou um shopping center.

quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Pudim e Tandi


Pudim

Chamavam ele de Pudim. Diziam que era mole, meio viado, tinha um bundão e todo mundo queria comer. Nasceu filho de mãe solteira, como a maioria dos amigos da vizinhança. A única referência de pai que conhecia era  a de Tandi, parceiro das pescarias na cidade Baixa. Era um pai estranho, silencioso e carinhoso com o filho. Tandi se gabava de ter uma família certinha, mas ele não ligava. Ter pai era algo incomum, até meio engraçado.

O amigo dizia que o pai comia a mãe todos os dias, e que ele era bom comedor também. Raiva da sua mãe por não ter um pai como o de Tandi. Por isso era tão nervosa? Acostumou-se a ficar sozinho desde os 5 anos, fechava porta e ficava vendo desenhos na televisão. A mãe enfermeira plantonista sacrificava o dinheiro suado e pagava TV para ele ficar o dia todo trancado. O bairro era perigoso para criança solta. Descobriu como comprar canal pornô com o cartão de crédito da mãe, aos 11 anos, e sonhava em ser diretor de pornografia. Pensava em tornar filme de putaria algo mais artístico.

 
A mãe chegava de manhã, e dia de folga passava dormindo, comendo salgadinho e tomando Coca-Cola, sem ânimo para o filho, que saía cedo para escola com um tio polícia. A escola sofria o controle dos traficantes, porque ficava no meio de duas bocas de drogas. Então o tio ensinou como ele caminhar sozinho 500 metros, atento às balas. Era polícia, não podia chegar perto demais daquele lugar.

 O tio mudou para outro bairro e ele passou a ir sozinho para escola, 5 quilômetros de casa.

Sobrinho era um amigo coroa, aleijado de cadeira de rodas, que o chamava da porta de casa para mostrar uma coleção de gibis da Mônica. Dava um gibi para ele, em troca do favor de levar uma caixa para o pipoqueiro da escola. Ele sabia que era droga, a mãe e o tio o alertaram do risco de se tornar aviãozinho, mas a mãe era frágil demais, sob o efeito das drogas da farmácia, e o tio, apesar de profissional correto, era beberrão. Ele já se sentia homem e podia decidir sozinho seu caminho.

No segundo ano de aviãozinho ele já estava embrulhando cocaína com Sobrinho. O bairro era fértil no tráfico. A droga rolava livre e polícia não entrava. Passou 7 anos nesse serviço e aos 16 já tinha conta bancária, ajeitada por Sobrinho, e dinheiro suficiente para mudar com a mãe para uma casa melhor. Não ia entrar no projeto de assalto a banco, arquitetado pelo amigo traficante, porque não tinha coragem de usar a arma que ele sempre carregava.
 
Quando chegou com a novidade, a mãe o colocou para fora. Resmungou, chorou, foi morar com Sobrinho e se tornou mini gerente do tráfico. Lá aprendeu a ler e a fazer contas, deixou a escola. Aos 18 ficou apaixonado pela filha de Sobrinho, que trabalhava no mercado. Casaram e mudaram para um barraco descente do bairro. Pensava em arranjar emprego e deixar as drogas.

No outro dia depois de mudar, soube que Sobrinho foi morto por um chefe do tráfico e que o assassino queria saber onde ele estava, para conversar, amigavelmente. Ficou com medo, a mulher grávida. Encontrou Tandi na ladeira, conversou rapidamente com ele, foi a uma loja comprou enxoval de bebê, 100 fraldas, levou rosas de presente, com um cartão declarando amor eterno à mulher.

Foi encontrado por dois menores na rua, que entregaram uma carta de ameaça. Se ele não fosse ao encontro do chefe, a coisa ia ficar preta.

Subiu as escadas para casa, planejava mudar com a mulher para outro bairro, estava escurecendo. Dois homens se aproximaram com armas, amordaçaram e o vendaram, depois o colocaram dentro do camburão. Pediu, inutilmente, que não o matasse, era pai de família. Foi arrancado do fundo do carro, depois de 5 minutos de viagem. Ouviu vozes jovens como a dele, e a de Tandi se dizendo inocente. Levou dois tiros na nuca. Morreu, pensando na vida que não teria, depois de uma fuga, que não aconteceu.


Tandi

Era o único que tinha família na rua. O pai trabalhava de frentista e a mãe lavava roupa. Ele ficava com a mãe, carregava as trouxas e estudava. Tinha habilidade para a pesca de tarrafa e anzol, vendia o peixe no Rio Vermelho e na rua, para os transeuntes. Ajudava a família.

O pai ensinava lições de humanidade, belas lições. Mas a pobreza assolava a casa, o pai ficou desempregado e foi morar em São Paulo. A mãe ficou meio doente e meio louca de tanto trabalhar. A irmã casou e foi morar no interior e ele ficou meio que enfermeiro da mãe, vivendo do peixe pescado e das roupas lavadas, quando a mãe conseguia trabalhar.

 
Estudou e conseguiu fazer supletivo, para acabar o segundo grau logo, conseguiu tempo de um mês e fez curso de extensão em teatro na UFBA, pensava em ser ator.

 Meio-dia. Subia o morro, depois da pescaria, viu o amigo Pudim, estava triste e apressado, mas disse que ia numa loja comprar umas coisas e fazer uma surpresa para mulher. Estava apaixonado. Pena dele, pensou, tão jovem e escravo do tráfico.

 
Dois policiais abordaram, mandaram levantar as mãos, fizeram revista e inventaram-lhe um saquinho de maconha no bolso. A coisa estava feia na favela. Ele empalideceu, deu um drible nos dois e correu. Ladeira abaixo, tinha fôlego, ouviu grito do polícia dizendo que ia atirar, mas ele conhecia os becos.

 Percebeu que o bairro estava infestado de viaturas. Entrou num lixão, mas uma viatura percebeu o movimento. O policial alto e forte esfregou a cara dele no lixo, deu duas coronhadas, a segunda na perna que quebrou. A dor lancinante e a falta de ar o fez desmaiar por alguns minutos. Botaram no fundo do carro.

Lembrou do pai, sonhou com a mãe, estavam felizes. Na sua imaginação, estava formado em Teatro. Sonhou com a única peça que conseguiu ver no Castro Alves. Havia negros felizes pulando, e ele se sentia contemplado, ia ser famoso como o ator Lázaro Ramos. Imaginou que casaria com a mulher mais bonita e teria filhos bonitos. Dois olhos se aproximavam, no seu delírio, e olhavam para dentro dele, eram olhos de mulher, pareciam os de sua mãe.

A porta abriu, acordou do sonho, viu tudo, porque não o tinham vendado direito. Muitos meninos numa área erma do bairro, alguns ele conhecia, metidos com a bandidagem, gente que botava o terror no bairro, tão pobres e pretos como ele, outros azarados inocentes não sabiam o que estava acontecendo, deu um grito dizendo que era inocente. Depois, uma saraivada de tiros, três na sua cabeça e pescoço. Tombou, pensando no almoço que ele não teria, uma moqueca com dois enormes bagres.

Bagre era também o peixe preferido da mãe.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Itabuna vive imersa num eterno velório

 
O cortejo dos desesperados, uma leva de gatos pingados e mulambentos, calçados de sandália de dedo de feira, arrasta-se conduzindo o defunto ladeira acima. Repousa no caixão, olhos cerrados e boca em agonia, mais um garoto de 16 anos, apunhalado a facadas na periferia de Itabuna. O velório, numa noite longa, é interrompido vez ou outra por um choro tímido. A sensação de abandono sufoca o ambiente, e flagra a ausência de qualquer autoridade pública – um delegado, o prefeito, um promotor, um vereador, nada nem ninguém que ouça aquela história e não a deixe esvair-se em vão. 

Aquela história termina em melancolia, como a de centenas de outras e codifica a falência completa de organização social mínima. É o décimo sexto rapaz assassinado, em menos de dois meses, na cidade que ostenta a macabra cifra de mais violenta da Bahia – a Nigéria do Boko Haram é aqui. Um dilúvio ou uma bola de fogo vinda de um céu com aquelas nuvens de fumaça enegrecida de campos de concentração resolveriam a inação da classe média da outrora capital do cacau: Itabuna precisa morrer de uma certa forma (na verdade, já está morta, pois lidera o macabro ranking no Brasil com o maior índice de assassinato de jovens em cidades com mais de 200 mil habitantes – a Bahia ocupa o posto de segundo estado no país nesse ranking) para que as suas cinzas modelem um novo começo, novas consciências – a frieza de conviver com índices de violência atormentadores e se fechar num silêncio cúmplice é atitude de gente-defunta. A violência se intensifica e se cronifica por incidir sobre as classes mais desassistidas e periféricas, entregues à própria sorte.

A bola de fogo poderia começar abatendo certeira, rápida e lancinante as ideias ensinadas nos Departamentos de Direito e de Filosofia da UESC. Aliás, o governo do Estado deveria interditar a UESC – ou lacrar aquilo ali, emulando o fechamento da tampa do caixão de dezenas de jovens que morrem a faca, a bala, a marteladas. Como é possível uma cidade estampar números obscenos de violência e uma faculdade de Direito – lugar onde a noção de Justiça deve ser ensinada e aprendida – sair impune? Para que serve investir tanto dinheiro público em um ambiente narcisista e simbolicamente violento ele mesmo? Quando vociferam por aqueles corredores a demagógica manutenção do “estado de direito”, “estado de direito” é traduzido aqui como a manutenção dos privilégios da classe média calculista no poder ali.

Se uma universidade não consegue apresentar estudos e alternativas de políticas que combatam aberrações como a violência, ela é defunta por si mesma, e já passou da hora de ser enterrada junto com o banho de sangue com o qual lava as mãos e as enxuga com seus currículos duvidosos. Desconfia-se, portanto, que onde há violência ou miséria, isso é ensinado e aprendido por gerações, e desconfia-se que a própria universidade eduque para a morte, já que ela não consegue ensinar a conviver pacificamente ou a estabelecer discussões políticas mínimas que combatam os problemas que suas comunidades pagam para ela ajudar a resolver.

Sequências de ocupantes daquela reitoria (a atual reitora aparece vestida de vermelho e maquiada na imprensa pedindo ao DENIT, socorro!, uma lombada em frente à UESC) disputam a gestão da universidade sem ser capaz de escrever uma linha sequer sobre os graves problemas da região. Não atuam como intelectuais. Estão ali para ostentar seus carros, maquiagens, perfumes caros, e não apresentam estratégias para refletir sobre o que quer que seja. A reitoria da UESC deveria promover a criação de um núcleo permanente de estudos e pesquisas sobre a violência na região. Estimular e obrigar sociólogos, pesquisadores do direito, pedagogos, economistas, filósofos, cientistas políticos a responder para a sociedade por que ganham salários públicos e se escondem em suas casas de praia, no conforto de suas vidas vazias, deixando a sociedade assolada por problemas sociais inadmissíveis, como a ausência de saneamento e a incidência de violência há décadas.

Há décadas Itabuna vive imersa em esgotos (o canal do São Caetano e o do bairro Santo Antônio são dois exemplos horripilantes) como se fossem bocas com todos os dentes podres. Carnes são vendidas a poucos metros de fezes naquelas feiras livres – se as autoridades públicas abandonam as populações a comprar víveres ao lado de fezes, isso estimula e justifica a violência numa outra ponta, já que homens e mulheres vão devolver uns para os outros o que receberam. Os investimentos públicos que conseguem escapar da gatunagem do superfaturamento e da corrupção se concentram nos bairros do centro e da classe média. A reforma da Avenida do Cinquentenário – rua central – e o calçamento de bairros como o Jardim Vitória (onde mora boa parte da gente rica) é prova da valorização dos lugares dos endinheirados.

No ano de 2834, quando essa história for contada como ela de fato ocorreu, Itabuna será lembrada como a cidade do esgoto e dos assassinatos abertos contra pretos pobres da periferia. E suas memórias serão reconstruídas a partir das histórias de diplomados funcionais em direito, economia, pedagogia e filosofia da UESC, reconhecida, então, como a universidade que promovia a morte ou, no mínimo, deixava a morte acontecer.



Braulino Pereira de Santana, doutor em Linguística pela UFBA

quarta-feira, 14 de janeiro de 2015

Étre ou non pas étre Charlie



Publico este diálogo com o professor Braulino Santana sobre o episódio Charles Hebdo. O texto possibilita refletir sobre uma série de questões que envolvem a história do Ocidente, o colonialismo, a liberdade de expressão, o papel dos intelectuais, e o conflito Oriente e Ocidente.

Braulino: É sempre preciso haver um atentado terrorista para a gente saber disso (como árabes e negros vivem em países como a França e a Inglaterra). A Folha de S. Paulo nunca publica artigos de mulçumanos, pretos, marroquinos e árabes sobre suas questões.

Marcos: E fica pintando agora de “Je suis Charlie”.

Braulino: Bastou o atentado acontecer para a Folha traduzir e publicar um artigo de um intelectual dos estudos culturais ingleses, justamente pontuando a invisibilidade dessas comunidades na França e na Inglaterra.

Marcos: Aquele jornal satírico era racista; francês frio e racista é pior que homem bomba.

Braulino: Você sabe que vou assumir nesse debate a posição do liberal inglês Stuart Mill, ou seja, tudo deve ser dito, todas as posições precisam ficar explícitas, inclusive (como fez o Charlie) desenhar uma ministra negra francesa com a cara dela mesma e o resto do corpo de uma macaca, sem que se seja preso, processado, ou pague indenização por isso... Só assim temos chance de abrir piquetes de debate público, e empurrar racistas e homofóbicos para um canto reservado...

Marcos: Bom, enquanto mulçumanos forem racializados, humilhados, colocados como inferiores, enquanto negros forem maiores vítimas de racismo institucional, esse tipo de liberdade vai ter que assumir riscos e refluxos históricos. E isso é também uma forma de opressão: a violência religiosa é uma violência possível de resistência. A gente se cansa desse tipo de frieza em tratar de questões que ferem a dignidade humana: essa frieza de quem pode falar, pode rir... De quem sempre pode falar, quem sempre pode rir. Se um homem bomba não faz isso, fica tudo de boa...

Braulino: Estou colocando lentes pragmáticas sobre os discursos que circulam: é impossível impor aos outros os discursos que nós achamos que sejam os corretos, os que devem circular. Se eles imaginam um mundo em que preto pode ser comparado a um macaco, temos que enfrentar esses discursos não com a força, com algemas, indenizações ou bombas: temos que enfrentar esses discursos politicamente...

Marcos: Enfrentamos também discursivamente... O legal é que essa atitude bomba força a reação discursiva. (Eu) não faria isso porque não acredito em Maomé. (Eu) não vou ser príncipe de outro lado. Não seria bomba, a minha maneira: as tiras, a charge (isso) não era uma produção artística, porque não permitia aquela plurivalência, a autocrítica: as tiras e a charge eram de ódio. (Então é) ódio contra ódio. Seria bom um outro jornal fazendo charge do francesinho filósofo falando dos outros, cheio de problemas, e querendo resolver os problemas dos outros. Devem aparecer agora charges da tragédia, fazendo um contra discurso, tipo colocando os cartunistas numa posição ridícula também.

Braulino: Eu só espero não estar no lugar onde uma bomba islâmica seja detonada... Afinal, tudo fica como era antes, ou pior... Veja a reação do repórter preto que foi chamado de "negro de alma branca": ele entrou na Justiça, ganhou a indenização dele, caladinho ele estava, caladinho ele ficou.. (...) "fodam-se os outros negros em situação de vulnerabilidade social e racial", parece ele ter pensado... Ele não foi capaz de abrir um debate sobre racismo e limites discursivos... Assim funciona uma bomba: tudo regride, e reforça mais ainda o lado de “lá”: afinal, 3,5 milhões de pessoas foram às ruas para atender ao chamado "Eu sou Charlie"... Fundamentalistas da imprensa francesa alimentam terroristas, e vice-versa.

Marcos: Vejo força dos dois lados: uma resposta também de intelectuais que criticam esse tipo de humor destrutivo. O movimento “Je ne sui pas Charlie” apareceu e cresceu, pelo menos nas redes sociais. Isso força as instituições a assumirem políticas antirracistas.

Braulino: O preço é muito alto: morte de pessoas, encarceramento de seres humanos... Os conflitos devem ser filtrados por via política e discursiva...

Marcos: É bom fazer charge dos franceses como estas:


























Braulino: Mas, veja, é preciso historicizar as charges: elas não vieram do nada, imaginadas por mentes distorcidas. Nessas sociedades muçulmanas, mulheres são tratadas como animais de carga; homossexuais têm mãos e órgãos decepados; os discursos que circulam são somente aqueles autorizados pela Sharia. As charges são estúpidas, grosseiras e ofensivas? Sim. Devem ser enfrentadas? Sim. Mas o mérito daquilo que elas levantam deve ser enfrentado também. Eu irei à África, mas não sei se vou entender como aqueles países lidam com homossexuais.

Marcos: (...) Essas charges acima precisam ser divulgadas, sim, porque senão fica aquele discurso lá de cima, falando sobre a religião do outro, a cultura do outro, sem enxergar a si: esse é um tipo de doutrina também. As melhores charges são aquelas que conseguem enxergar o ridículo de suas próprias sociedades, as contradições. Os franceses acumulam uma história de estupros, grosserias, radicalismos terríveis também. Viveram grande parte de sua história cortando cabeça de gente e estuprando colonizadas, queimando mulheres na fogueira. Eles ergueram sua sociedade humanista na violência e pintam de humanizadores agora. Eles estão pagando pela barbárie que ergueram.

Braulino: Até que ponto devemos regressar no passado para vingar o nosso presente? Até que ponto as pessoas de hoje merecem ser punidas pelos crimes de pessoas no passado? Essas são questões que precisam aparecer no debate para torná-lo mais real e claro. Sei que, ao mesmo tempo em que a charge denuncia, ela também cria valores, e reinventa os estereótipos; ao mesmo tempo que faz militância em favor de uma causa, mobiliza a sociedade contra determinada cor de pele, cultura, comportamento ou religião. Elas são uma via de mão dupla. Não estou bem certo quanto aos meios de combater esse tipo de discurso ofensivo, só sei que a via judicial, da força física, do encarceramento ou da morte de pessoas é o caminho mais impróprio pra enfrentá-lo.

Marcos: Mas não foram crimes do passado, porque a história não funciona assim. A França ainda possui colônias, ainda possui políticas coloniais racistas em várias partes do mundo. A barbárie continua sob a farsa do discurso humanizador, como sempre foi: humanismo no discurso e barbárie nas atitudes políticas. O colonialismo é sempre o mesmo modus operandi. Um francês veio nos visitar. Ele teve a coragem de chamar os africanos de preguiçosos. Eu pedi que ele olhasse a imponência da cidade de Salvador, e falei que (quem) construiu essa imponência foi o trabalho dos africanos. E assim ficam repetindo isso o tempo todo: nos romances, nas charges, na TV, no cinema – doutrina eurocêntrica.

Braulino: Veja que essas questões que você levanta elas vêm de você, elas não vêm do discurso dos assassinos. Eles não pontuam essas questões. Sabemos que a França praticou atrocidades na Argélia, que soldados de origem argelina que lutaram pela França contra a invasão nazista nunca foram indenizados, como os franceses brancos da resistência, mas intelectuais árabes que pontuam essas questões não se sentem representados por uma bomba.

Marcos: Eu também não me sinto representado pela bomba, mas a bomba é uma espécie de mote para discutir muitas outras coisas que aconteceram e estão acontecendo. Esses soldadinhos franceses vão bombardear a Síria, a África, a Palestina e o Afeganistão se forem convocados. Mandam bomba de jato sem se importar com velho, crianças lá embaixo. A guerra é a religião mais fundamentalista e burra do mundo. O nacionalismo é pior que o hezbolá e o talibã.

Braulino: Eles são vítimas das próprias armas que vendem para matar outros fora do território deles. As armas que mataram reféns naquele mercado foram compradas na Bélgica. É algo sinistro estarmos aproveitando a bomba para dialogar sobre essas questões; e é trágico que uma bomba sirva como forma de refletir sobre pertinências que afetam a todos nós. Ademais, eles mataram mas também morreram. Assumir a posição daquele que precisa de uma bomba para refletir é o fim do mundo.