Marcos Aurélio dos S. Souza
Para Braulino
Está vendo aquelas duas meninas na porta da igreja? É um casal de lésbicas. Sorridentes, conversando sempre, elas gostam de chegar cedo, pouco antes de Neuza da limpeza, hora antes do culto.
A mais nova é filha do corretor, o homem que conseguiu o terreno da igreja por uma bagatela. Foi um “sapeco” quando sua caçula resolveu pintar o cabelo de vermelho, pintou sem avisar. Mas, a igreja se acostumou, e o velho muito religioso também. Agora com 17 anos, a filha não devia mais nada à família, nem ao pai, nem à religião, havia sido aprovada no vestibular para o curso de Biologia. Seus problemas eram as espinhas, que agora estavam sumindo como mágica. Seu rosto voltara a exibir, aos poucos, a mesma luz, a mesma graça infantil, o ar de menina e mulher, com todos encantos arrebatadores da idade.
A outra não era feia, mas não seria tão notada se não estivesse, em contraste, com a ruiva. Uma magreza esguia e elegante, curvas discretas, mas sensuais, pele parda, cabelos encaracolados, curtos e encrespados, presos, bonitos. O sorriso de canto de boca e a voz meio rouca revelavam a maturidade dos 19 anos, respirava-se até um ar intelectual em torno de si, terminara o primeiro ano do curso de Administração, sonho de seu pai, pequeno comerciante têxtil: reservado, cético e conservador.
Não saberiam contar quando e como começaram aquele hábito tão velho quanto elas: de chegarem cedo, encostarem na parede frontal da igreja, ao lado da escada, conversarem sobre as amizades novas da net dos “torpedos” e fofocas de uma adolescência ainda presente. Riam de Neuza, ao passar com o mesmo molho de chaves balançando, perguntas sobre os netos da velha faxineira. Neuza nunca sabia qual das duas era mais nova, quem fazia Administração, afirmava e errava sempre, as duas eram como irmãs gêmeas. Diferentes, mas de uma diferença conjugada, suplementar.
Um dia normal é um dia de angústia controlada. A porta aberta, o cheiro de limpeza, o altar florido, música e calma, o melhor momento, os presentes de Neuza, que ia embora, deixando as duas porteiras. Agora, era esperar a sequência quase exata, o desfile da comunidade cristã com seus escrúpulos e suas roupas dominicais.
(Aos doze anos, dez da mais nova, tocaram-se pela primeira vez. Dia de irritação, mãe quer se ver livre de filho. Festa na igreja, coisas para preparar, convidado novo para dirigir o culto, mutirão de mulheres, as mães juntas preparando o ambiente, descuidando da filharada. Meninada se espalha no adro, nos fundos, entre os muros, nos arredores. Juntas, durante esconde-esconde, num cubículo esquisito dos fundos, debaixo do salão de festas, as duas ficaram com medo, abraçaram-se, tocaram-se, gozaram. O gozo primevo e infantil, medroso, é o melhor gozo de nossas vidas.)
Um dia normal é um dia de alegria controlada. Chegam os mais velhos, dois homens negros, ar de fundadores, paletós impecáveis, mas puídos. Cumprimentam, educadamente, as meninas. Algumas famílias novas do bairro, meninos barulhentos, ávidos por novidades, cheiro de alfazema. Agora um batalhão de caras conhecidas. Rita e Dolores, as mais pobres da comunidade. A renca da mercearia, uns doze de um mesmo grupo familiar. Janete a merendeira da escola, onde estudaram - solitária e triste. As meninas loiras, gêmeas, filhas da dona do mercado da cidade. Os meninos adolescentes, bonitos, uns quatro, procurando atrair olhares. Um para: “Vocês só vivem juntas, hein?!”. Sorriso amarelo da ruiva, muxoxo da outra, espantam o marmanjo. As duas mães chegam quase na rabeta, amizade velha, histórias comuns, colocam as duas filhas para dentro do templo, ensaiando tapinhas na bunda. Os corpos jovens das crias, que não invejam, orgulham-se porque já os tiveram, são espelhos apontados para o passado.
Começa a pregação. O culto fazia parte de uma série temática. Aquela era a segunda seção. O pregador, jovem e brilhante, discorria sobre Levítico, os prostitutos cultuais, os canaanitas, a Sodoma destruída. Pulava para o Deuteronômio com desenvoltura, chegava a Paulo em Coríntios, valorizando a instituição da família, o matrimônio natural. As meninas atentas pensavam mil coisas, sonhos improváveis, apertando seus corpos juvenis na cadeira, felizes de estarem juntas, lado a lado, enquanto o mundo inteiro desabava sobre elas.
Amei esse pequeno conto (é um conto ,não é? rs). Não preciso nem dizer que me identifiquei inteiramente com o relatado. A verdade é essa mesma, o mundo inteiro desaba sobre nossas cabeças, mas quando se tem amor, nada nos afeta. Prefiro e preciso pensar assim. Esperando novas histórias, ansiosa! Ah, seguindo e linkando! :D
ResponderExcluirIsadora.
Oi Isa. Sim,é um conto. Você e muitas pessoas me levaram a escrever, pessoas que vivem a mesma situação de alegria e de angústia controladas. Desejo pra você e pra muitos amigos e amigas, muito amor nessa vida. Continue linkando. bjos.
ResponderExcluirGostei do conto Marcos! Olhar sensível e atento aos diversos enredos que se perpassa nos mais variáveis quotidianos! Um conto diferente, de perspectiva diferente perante o homossexualismo, já que ainda existe em grande quantidade, textos banais contra a homossexualidade. Parabéns! Beijos...
ResponderExcluirOi Nath, eu resolvi parar e observar as situações mais simples, que aconteceriam em qualquer cidade, pequena ou grande. E percebi: nada é tão simples, as coisas podem apresentar diferentes ângulos mesmo diante de um único sujeito. As coisas me atravessam, extrapolam minhas expectativas e meus conceitos, a escrita corre solta... Obrigado pela interlocução. beijos
ResponderExcluirVou me ousar a dar um final pra essa história... então, as meninas crescem e amadurecem e decidem que a igreja q elas frequentam não tem o perfil delas e resolvem assumir o q sentem uma pela outra. Assim é a vida, afinal, todos somos donos de nossas atitudes, inclusive a de acreditar e seguir o evangelho que está em Deuteronomio e em Corintios!!
ResponderExcluirA história já foi finalizada. As meninas tiveram o seu Apocalipse particular, naquele dia. Você pode dar um outro final, mas essa é sua história não a minha. Afinal, o mundo não se encerra com o Apocalipse, e cada um encontra o seu. Obrigado por sua intervenção.
ResponderExcluirbjos
Marcos, cálida narrativa, como você mesmo. Onde houver duas garotas envolvidas em afeição, um Deus verdadeiro está ali. O grande drama das religiões é a interdição da ternura, é estranhar o afeto entre as pessoas. E esse texto me ser dedicado me comove de uma certa forma que me faz ver a vida como sublime. É uma epifania. Obrigado, Brau.
ResponderExcluirAh...sim, perdoe-me, é que pra mim ela ficou vaga...e só fez sentindo quando dei meu próprio desfecho.
ResponderExcluirMas eu sei q o senho não se ofende com as diversidade de interpretações, não é mesmo??
Brau,
ResponderExcluirsua leitura é sempre importante, pq consegue ser, ao mesmo tempo, sensível, crítica e franca. Não preciso nem dizer pq te dediquei este conto, nossa amizade é fruto também de nossas reflexões, angústias e alegrias. Obrigado pela "epifania"...rs
bjos
Fania, meu bem, vá acostumando leitura.. historias com finais vagos, historias sem finais, historias que começam pelo meio, ou que terminam no princípio.. Amadurecer leitura, faz parte da trajetória de um leitor inquieto...Seu desfecho é o seu desejo que as coisas aconteçam dentro de uma estrutura de pensamento, a vida não é assim, a vida é de finais vagos, sentimentos incompletos, descontinuidades. Talvez vc esteja acostumada a historias lineares (com começo meio e fim), aqui vc não encontrará isso, mesmo assim continue lendo o que escrevo.
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