domingo, 27 de julho de 2014

Ainda bem que morreram


Neste mês, uma enxurrada de lamúrias nas redes sociais e na grande mídia pela passagem de dois representantes da cultura e da literatura brasileiras: João Ubaldo Ribeiro e Ariano Suassuna. Vou contar por que não chorei, nem postei frase saudosa, dedicada a esses dois “próceres” das letras e das artes nacionais.

Porque, a despeito dessa veneração emotiva e irracional de muita gente ao intelectual de voz grave, cheio de erudição vazia, defensor varonil da cultura brasileira e nordestina (bem retrô para as épocas atuais), veneração, inclusive, de pessoas que não conhecem uma obra sequer dos finados, eu nunca vi tanto conservadorismo e visão estreita sobre arte, cultura e política, reunidos em apenas dois indivíduos. Ainda bem que morreram.

Ariano Suassuna era um pensador do século XIX, teimando viver até os dias de hoje, devotado a uma imagem fossilizada de cultura, que não se movimenta, engessada a uma ideia essencialista, fantasiosa de origem única, pura, e de propriedade interpretativa, exclusivamente, dos iluministas intelectuais. Acreditava num Nordeste medieval, cheio de gibões de couros, de música trovadoresca. Demagógico e colonialista, vivia encastelado numa visão de brasões e heráldicas, defendendo, por tabela, uma raiz etnocêntrica, europeia e medievalesca, da cultura brasileira.

Cultura para Suassuna, tem o sentido pitoresco e estereotipado de folclore e só pode ser interpretada por almas como a dele e, depois, tombada pelo dicionário de Câmara Cascudo (certamente, Suassuna e Cascudo filaram as melhores aulas de antropologia). Inventou um movimento, armorial, que não dizia nada para ninguém e só servia para ele e José de Alencar. Com uma grande diferença, o autor de O sertanejo e Iracema morreu em 1877.

Para mim, quem defende uma chamada arte tradicional e a impõe como a única arte possível, é um lunático, mora lá em cima e não aqui. O embate que Suassuna, na década de 1990, teve com a música mais genial do Brasil, o Manguebeat, mostrou sua perspectiva anacrônica e descontextualizada de tudo, inclusive da vida.

Ele não podia suportar uma guitarra junto com a zabumba, ele queria a zabumba com o pífano e a rabeca. Vá ele ficar ouvindo música provençal arcaica, deixe os outros em paz. Se saiu mal, porque a música de Science continua vendendo, vigorosa e produtiva, influenciando novas tendências musicais contemporâneas, e as ideias de música e literatura que Ariano propaga, mofadas na sua cabeça, só empolgam a quem se acha intelectualmente superior, culto. No geral, pessoas deslumbradas com o conhecimento livresco corroído pela traça. Suassuna era contra a juventude e a oxigenação das artes, seria líder de uma marcha contra o rock e toda música que não fosse do seu nordeste mal inventado. O texto teatral “O auto da compadecida” originalmente de 1955, nunca fez sucesso até virar minissérie da Rede Globo, em 1999. O texto de teatro tem pouco a ver com a minissérie. Embora, chatos os dois. Teatro enfadonho, minissérie cheia de estereótipos bufões, tipo Zorra Total.

Outro barítono de ideias estúpidas era João Ubaldo Ribeiro. Esse escreveu as linhas mais reacionárias que já li nos últimos anos. Basta dizer, que era o namoradinho da mídia embusteira, a mais viciada do mundo, composta pela revista Veja, os jornais O Globo e a Folha de São Paulo. E todo mundo sabe da sua relação com a família Marinho. Era o intelectual a serviço da direita raivosa, espinafrando asneiras contra qualquer tipo de política pública. Antes, ele fosse franco e declarasse logo seu conservadorismo, a sua filiação ordinária aos grupos dominantes desse país. Mas, pousava de intelectual independente, defendendo o indefensável, a “liberdade” de uma mídia golpista.*

Ora, qualquer pessoa sensata, que conhece um pouco de história, sabe como funcionam os grandes grupos de comunicação, em sua relação com a poder, sabe que golpes políticos e ideológicos são arquitetados nas redações e relações espúrias são construídas entre políticos e donos de emissoras de TV. A quem João Ubaldo quis convencer sobre uma mídia crítica e independente? Perdeu as aulas de história e política na faculdade: ou era muito ingênuo, ou bastante maldoso, ou as duas coisas juntas.

Signatário de um manifesto intitulado “Centro e treze cidadãos não racistas contra as leis raciais”, enviado ao STF em abril de 2008, contra as cotas para indígenas e afrodescendentes, João Ubaldo teimava em reeditar o mito da democracia racial, da feliz harmonia gilbertofreiriana das raças, desfazendo-se de dados sérios que mostram claramente as desigualdades de oportunidades de trabalho e estudo entre negros, pardos, indígenas e brancos no Brasil**. Justificava sua posição dizendo que as cotas criariam uma linha de cor, que, segundo ele, nunca existiu no Brasil. Nunca existiu? É estranho, parece até que João Ubaldo não escreveu o seu próprio romance Viva o Povo Brasileiro.

Nesse livro, um personagem chamado Amleto, um "mulato sarará", de pai inglês e mãe preta passa toda noite uma camada espessa de caldo de babosa no cabelo e põe uma touca para amaciá-lo. Na sua quinta geração, um de seus herdeiros, rico banqueiro de São Paulo, contempla com orgulho o retrato desse trisavô: “sisudo, colarinho alto, pescoço empertigado, sobrancelhas cerradas. Branco que parecia leitoso, o cabelo ralo e muito liso, escorrendo pelos lados da cabeça, podia perfeitamente ser um inglês, como, aliás, quase era, só faltou nascer na Inglaterra. Traços nórdicos visíveis" (1984, p 642)***. A negação de Amleto mostra que existe uma linha de cor bem perversa, sim, introjetada por esse personagem mestiço e pelos estereótipos racistas, evocados por ele para determinado povo brasileiro: “Que será aquilo que chamamos de povo? Seguramente, não é essa massa rude, de iletrados enfermiços, encarquilhados impaludados, mestiços e negros”. (idem, p.245)

Academia Brasileira de Letras não deveria chorar seus mortos, pois, afinal de contas eles são imortais. No caso desses dois, há de se imaginar que estejam numa dimensão astral dos seres superiores, contando uma para o outro as suas ideias mais mirabolantes. E, como expectadores desses dois falastrões, o imenso vazio da orbe celeste e um boi dormindo profundamente.

*Ver artigo do Estadão: “Que elites, que esquerda?” Disponível em: http://cultura.estadao.com.br/noticias/geral,que-elites-que-esquerda-imp-,1009789. Acesso em: 20 de jun. de 2014.
** Ver entrevista da Revista Veja: "Somos um país corrupto". Disponível em: http://veja.abril.com.br/180505/entrevista.html. Acesso em: 10 de jul. de 2014.
***RIBEIRO, João Ubaldo. Viva o povo brasileiro. 2. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984.

2 comentários:

  1. Até que enfim alguém posiciona os eminentes defuntos na escala antropológica do pensamento brasileiro: demagógico e coronelista, Suassuna às vezes se assumia até ingênuo, como se zabumba, pífano e rabeca não fossem instrumentos importados da Europa. Encostado nas benesses do Estado, é fácil impor um nostálgico Nordeste passadista, e polemizar com quem dialoga com a cultura dos recantos reais (manguebeat), produzida em condições adversas e sem subvenções públicas. A era do nordestino "humano", "esperto" e "inteligente" (João Grilo e Chicó), mas que não sai do lugar, está enterrada já há um certo tempo. Ninguém mais acredita nesse engodo. O texto de Marcos é corajoso na medida em que produz uma espécie de contra-obituário, e no mundo politicamente correto, em que uma pessoa pode ser processada por uma vírgula, só nos resta "falar mal" - mas falar a verdade - de quem já morreu mesmo. Abraço, Braulino.

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