“LEI DAS EMENDAS VAGINAIS” REVISITADO II:
UMA LEITURA À LUZ DAS FORMAÇÕES DISCURSIVAS
Braulino Pereira de Santana
1. O TEXTO
Título: “Lei das emendas vaginais”
Autora: Marilene Felinto, escritora
Publicação: Jornal “Folha de S. Paulo”, 19/11/1995, página 9, Seção
“Adrenalina”
Estuprar
sistematicamente os homens: dominá-los, amarrá-los, enfileirá-los um ao lado do
outro, abaixá-los (na posição subalterna), as pernas abertas, de costas para os
outros homens que venham, brutamontes, e pratiquem o ato de violá-los
sexualmente. Depois, por algum processo de "transferência" ou
"regressão", digamos (algum desses processos de psicanálise),
deixá-los amargar em laboratório, por longos dias, a gravidez involuntária das
estupradas. Que sintam na carne a repulsa, a humilhação.
São
cenas de sessão de psicodrama para se aplicar aos homens que aprovaram (e aos
que pretendem) a proposta de emenda constitucional que veta o aborto à gravidez
resultante de estupro, direito adquirido pelas brasileiras há 55 anos.
A proposta, aprovada em maio pela Comissão de Constituição e Justiça, da Câmara
dos Deputados, tem chances de ser aprovada agora pelo plenário da Câmara. São
evangélicos (protestantes ou crentes) e católicos praticantes que encabeçam a
corriola pelo veto ao aborto.
Um
deputado (Philemon Rodrigues, PTB-MG) disse à Folha (conforme reportagem de
Daniela Pinheiro, 02/11, pág. 3-7) que "o estupro é um acidente. E a pessoa tem que arcar
com isso. Ninguém pode por ideologia ou opinião privar alguém do direito à
vida."
Outro
deputado (Severino Cavalcanti, PFL-PE, autor da emenda) disse que "a mulher deve levar adiante a
gravidez na condição de 'depositária'", já que ela tem "o instinto materno, que é superior a tudo".
Estufas,
silos, depósitos de sementes, chocadeiras fantasiadas de Virgem Maria, sem
vontade própria nem livre-arbítrio. É assim que os homens da Comissão de
Constituição e Justiça (formada por 11 homens e seis mulheres) enxergaram a
mulher para tomar sua decisão: como galinhas, vacas ou cobras.
A
proposta não é apenas obsoleta, reacionária e retrógrada. É o cúmulo da
hipocrisia. Imagine se a filha do deputado ou do banqueiro vai carregar na
barriga um feto originário de estupro. Imagine se o pai deputado não vai
levá-la imediatamente à mais cara das clínicas da cidade, para raspar do seu
útero de princesa o pedaço de carne indesejável. O filho será, sim, mais uma
vez, da favelada.
Difícil
acreditar sequer na possibilidade de uma emenda como essa vir a ser aprovada
num país de costumes liberais como o Brasil, em pleno ano 2000. Ora, se deve
haver qualquer lei que trate do corpo da mulher, que seja, no mínimo, elaborada
por mulheres. O corpo é nosso, a vagina é nossa, quem deve decidir que pênis
vai entrar ou sair dela, ou que feto vai crescer ou não no nosso útero somos
nós. Alguma dúvida?
Esses
homens brasileiros deviam ser tratados sob o chicote das feministas radicais da
Europa. Vi em Berlim pela primeira vez um homem urinar sentado no vaso
sanitário, igual às mulheres. Perguntei por que ele mijava sentado. Rindo da
minha surpresa, contou que aquilo era comum entre os homens alemães da nossa
geração (ele tem 32 anos), obrigados a agir assim por uma rígida sequência de
mães, irmãs, mulheres e namoradas que detestavam a molhação de mijo que os
homens, ao urinar de pé, faziam nas bordas do vaso. Impressionante a eficácia
do feminismo germânico. É preciso aplicá-lo ao psicodrama que vista de
calcinhas e sutiãs no plenário da Câmara.
2. PRÓLOGO
Este artigo, dividido em
cinco pontos, analisa o texto “Lei das emendas vaginais”, de autora e
publicação referenciadas acima, no ponto l, “O texto”. Os pressupostos teóricos
como concepções para a análise são oriundos da Análise de Discurso (AD),
problematizadas e discutidas nas sessões do módulo IV, Análise do Discurso,
ministradas pela professora Rosa Helena Blanco Machado, durante as aulas dos
Seminários Avançados I, no curso de pós-graduação em Lingüística da UFBA,
coordenados pela professora Ilza Ribeiro. A partir dos conceitos de texto para
a lingüística textual e para a AD,
formações discursivas e formações ideológicas, o artigo procura “ler” o texto
de Marilene Felinto numa perspectiva mobilizadora de múltiplos sentidos,
planejados para responder a posições ideológicas que querem aprisionar o
direito ao corpo das mulheres a uma visão machista e fundamentalista cristã da
história e do Estado, e a autora movimenta uma contra palavra, mobilizando,
assim, um contra-discurso.
Palavras-chave: Texto - Discurso - Poder -
Formação Ideológica - Formação Discursiva
3. TEXTO: UNIDADE OU DISPERSÃO?
Um texto escrito é
geralmente conceituado como uma unidade temática que organiza o pensamento por
intermédio da língua(gem). Suas fronteiras são delimitadas por dois brancos no
papel: um branco que antecede o título e um outro depois do ponto final. As frases
são organizadas, num texto em prosa, em parágrafos que se sucedem,
estabelecendo um todo “harmônico”, sem contradições ou ambigüidades, formando
uma “costura” interna, uma tessitura, como se as partes estivessem interligadas
como numa colcha de retalhos.
Esse tipo de conceituação
de texto tem na lingüística textual seus pressupostos teóricos estabelecidos
por meio de conceitos como textualidade, fatores pragmáticos, coerência,
coesão, horizontes de expectativas do leitor; e o trabalho de composição de redação
em sala de aula comumente é chamado de produção e recepção.
Neste artigo, propomos uma abordagem de texto
concebido como um conflito e como micro unidades temáticas em atividade e
interação, pois percebemos que a abordagem da lingüística textual é
insuficiente para lidar com as múltiplas possibilidades de realização, criação,
significação e leitura de textos. A “produção” de um texto não resulta num
produto (produção) acabado, a ser empacotado como um carro em uma linha de
montagem; nem tampouco o recebemos passivamente, como sugere a palavra
recepção. Como não dizemos palavras e frases simplesmente, mas atuamos com a
língua instaurando verdades, mentiras, relações de força e de poder (BAKHTIN),
há textos cuja “recepção” se assemelha a verdadeiros embates ideológicos, daí o
pouco alcance e a limitação de termos como produção e recepção, e as lacunas
que uma lingüística textual vai espalhando na construção de sentidos: o texto
se instaura como uma dispersão, estabelecendo “piquetes” nas variadas fronteiras
de leitura.
Por lidar com a língua do ponto de vista
formal e ignorar que ela é concreta e intuitivamente atravessada pelos
embates sociais e
ideológicos, a lingüística
textual se “esquece” de que os textos não são
documentos que ilustram idéias pré-concebidas, mas monumentos nos quais se
inscrevem as múltiplas possibilidades de leituras (ORLANDI, 2002:37). Seus
aspectos formais, portanto, são regras garantidas pela própria língua e
dominadas por todo leitor proficiente em língua escrita: dessa maneira, é
necessário ultrapassar os limites internos de sentido e relacioná-lo a um
diálogo ideológico no mundo.
As dificuldades de criação
e leitura de textos se inscrevem na esfera de suas condições de produção em
relação à memória do leitor e da sociedade, a ideologias, a falhas, a
“esquecimentos” e a equívocos. As condições de criação em relação ao domínio
formal da língua escrita são muitas vezes privilegiadas no trabalho em sala de
aula, e isso impede o produtor-leitor avançar um conceito de texto em direção
ao uso da língua como um discurso.
Propomos esse avanço, ao
analisarmos o texto “Lei das emendas vaginais”, de autoria da escritora
Marilene Felinto, publicado no jornal Folha de S. Paulo em 19/11/1995, na seção
Adrenalina. O objetivo deste artigo é uma leitura desse texto, considerando-o à
luz dos pressupostos teóricos da Análise do Discurso ao mesmo tempo em que
procura subsidiar trabalhos de criação e leitura de textos em sala de aula.
A lingüística é pródiga em
apresentar reflexões sobre como lidar com, avaliar e conceituar textos. A
reflexão lingüística aqui apresentada, sob os pressupostos teóricos da AD,
permite uma leitura de texto que ultrapassa, mas não negligencia, as relações
sintáticas e semânticas comuns a todo texto escrito, ao abrir múltiplas
possibilidades de inserção dos textos às cadeias ideológicas e discursivas de
que fazem parte os leitores e os próprios textos.
Analisar um texto
considerando-o sob a perspectiva da AD é entender que a produção de
significações de palavras não se encontra presa em dicionários nem tampouco
frases e sentenças fazem parte exclusivamente do domínio interpretativo das
gramáticas. As significações resultam, além das relações inerentes à matéria
lingüística, de um trabalho para o qual concorrem as condições de produção dos
discursos, o lugar de onde emergem os sujeitos enunciadores e os enunciados, os
embates ideológicos presentes na relação leitor-texto-mundo, as formações
discursivas (FD) como práticas sígnicas dos homens e das mulheres em sociedade.
A significação, portanto, ultrapassa as fronteiras dos textos para se instaurar
nas fronteiras de um discurso.
Como objeto de estudo, o
discurso pode ser conceituado como “palavra em movimento”, “prática de
linguagem” que flagra homens e mulheres mediando suas vidas e suas existências
por intermédio da língua como sujeitos que a falam/usam em situações concretas
na história. O uso da língua em sociedade não se trata de mera transmissão de
informação nem de comunicação apenas, não se trata de uma tessitura que
articula sentidos alheios à multiplicidade de inserções de que um texto pode
fazer parte,
no
funcionamento da linguagem, que põe em relação sujeitos e sentidos afetados
pela história, temos um complexo processo de constituição desses sujeitos e
produção de sentidos e não meramente transmissão de informação.(ORLANDI, op.
cit.:21)
Na
passagem do texto ao discurso, a análise passa por etapas que procuram
estabelecer a significação da superfície textual e sua relação com a
exterioridade social e ideológica, inerente ao próprio discurso, na medida em
que procura evidenciar a construção dos sujeitos e os processos interativos de
produção de sentidos, mediada por conceitos como formação discursiva e formação
ideológica.
Enquanto
o significado de palavras, frases e sentenças goza de uma certa estabilidade
aparente, que tem num dicionário e nas relações sintáticas e semânticas um
ideal de significação, na medida em que os/as falantes não podem alterar seu
significado ao sabor de suas vontades, sob pena de não construir sentidos, o
sentido das palavras frases e sentenças nasce, sobretudo, de um jogo constante
de negociações, imagens, conflitos e confrontos; nesse caso, as palavras
“perdem” sua transparência de um significado aparente para ganhar sentidos
surgidos num determinado momento histórico, sob determinadas condições de
produção, a partir de sujeitos inscritos num lugar de enunciação. Dessa maneira,
O
discurso se constitui em seus sentidos porque aquilo que o sujeito diz se
inscreve em uma formação discursiva e não outra para ter um sentido e não
outro. Por aí podemos perceber que as palavras não têm um sentido nelas mesmas,
elas derivam seus sentidos das formações discursivas em que se inscrevem.
(ORLANDI, op.cit.:45)
Ainda que polêmico, o conceito de
formação discursiva é fundamental em AD para se estabelecer pressupostos de
construção de sentidos num texto, na medida em que articula uma rede ideológica
de significações:
Uma
formação discursiva pode ser vista como um conjunto de regras que determina o
que pode e deve ser dito a partir de certa posição na vida social, e as
expressões têm significado apenas em virtude das formações discursivas em que
ocorrem, mudando de significado quando são transportadas para uma outra.
(EAGLETON, 1991:173)
Constitui, portanto, uma “matriz de
significados” ou um sistema de relações lingüísticas dentro do qual são
articulados processos sígnicos efetivos e discursos (leituras) em interação.
Toda formação discursiva se relaciona a uma formação ideológica, que contém
práticas lingüísticas e pragmáticas na construção de uma realidade ou de
“verdades”.
Ninguém pode sair por aí
dizendo o que queira e entenda seja necessário dizer. Tudo a ser dito nasce de
um determinado papel, de um determinado lugar, de uma conjuntura
sócio-histórica que autoriza um dizer e que move os sujeitos para além do que é
dito. Tudo o que se diz dialoga com um não-dito, dialoga com um outro, com uma
memória, com algo que poderia ser dito e não se materializou, ou se
materializou de uma maneira e não de outra. Uma formação discursiva monitora as
fronteiras de sentido em um texto à medida em que estabelece configurações
necessárias, excludentes, conflitantes de variados discursos dentro de um
texto.
4. A LEITURA: RECONSTITUÇÃO
LINGÜÍSTICA E DISCURSIVA DE SENTIDOS
Para a análise de um texto
segundo pressupostos teóricos e mecanismos metodológicos em AD, proponho etapas
sucessivas, baseadas em uma constituição do corpus, evidenciando: a) uma
descrição do dito, dos apagamentos, dos
implícitos, de um não dito; b) uma conjuntura sócio-histórica imediata dos
acontecimentos; c) uma avaliação das inserções ideológicas em que se encontram
os sujeitos em diálogo no texto. Essa metodologia é consonante com o que diz
ORLANDI (op.cit.:80),
Assim,
a construção do corpus e a análise estão intimamente ligadas: decidir o que faz
parte do corpus já é decidir acerca de propriedades discursivas. Atualmente,
considera-se que a melhor maneira de atender à questão da constituição do
corpus é construir montagens discursivas que obedeçam critérios que decorrem de
princípios teóricos da análise de discurso, face aos objetivos da análise, e
que permitam chegar à sua compreensão. Esses objetivos, em consonância com o
método e os procedimentos, não visa a demonstração mas a mostrar como um
discurso funciona produzindo (efeitos de) sentido.
O título do texto “Lei das
emendas vaginais” é surpreendente na medida em que lida com um valor
polissêmico da palavra emendas: que
se refere, explicitamente, como o texto deixa bem claro, a uma proposta de
emenda constitucional que veta o aborto à gravidez resultante de estupro,
apresentada por um deputado na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos
Deputados e, implicitamente, a uma manobra de homens na tentativa de domínio da
condição sexual e do corpo das mulheres, como sugere a predicação emendas vaginais.
Um valor polissêmico,
inerente e associado à própria língua, mexe com uma rede de filiações de
sentido a que as palavras pertencem. Por isso, foi possível esse jogo de
ambigüidades com o título do texto: não há discursos que não se relacionem com
outros, em que outros não estejam embutidos neles próprios; há uma
simultaneidade de movimentos de sentido a que se filiam os discursos.
Estabelece-se, assim, uma relação direta e franca entre a tramitação da emenda
na Câmara dos Deputados e o domínio de um certo tipo de discurso nessa
instância de poder, questionando o lugar das mulheres na sociedade e a
percepção que essa instância de poder tem sobre elas.
¨
Considerando-se
a ambigüidade quase literária do título, o texto instaura um conflito entre o
conteúdo da emenda e as conseqüências que ela acarretaria à vida das mulheres;
a autora do texto, portanto uma mulher, propõe essas mesmas conseqüências, num
exercício ficcional, aos homens que querem aprová-la no Congresso:
a) Que os homens sejam violentados
(estuprados, dominados, submetidos a posições subalternas, violados
sexualmente), assim como as mulheres, vítimas desse tipo de crime.
b) Que os homens sintam na carne a humilhação
e a repulsa de uma gravidez indesejada, não só isso, como também, involuntária.
¨
A
tentativa de aprovar uma emenda como essa se resume a uma visão do corpo das
mulheres como uma propriedade dos homens, sujeito a manipulações, e uma lei
deve monitorar o corpo como uma propriedade:
a) O
estupro é um acidente, e a pessoa (portanto, uma mulher) deve arcar com isso.
b) A
defesa contra uma gravidez indesejada e involuntária é uma questão de
ideologia, uma opinião.
c) A mulher deve levar a gravidez (resultante
de estupro) adiante, na condição de depositária.
¨
A
proposta veiculada na emenda é, não somente, obsoleta, reacionária e
retrógrada, como também hipócrita,
quando, num país como o Brasil, aqueles que possuem poder e dinheiro gozam
escancaradamente de muitos privilégios, manipulam, compram, subornam, enquanto
às mulheres pobres, que não têm acesso a direitos elementares, caberiam arcar
com conseqüências, inclusive conseqüências de uma gravidez oriunda de uma
violência como um estupro:
a)
Imagine se a filha de um banqueiro ou de um deputado vai carregar na barriga um
feto originário de estupro?
b)
Imagine também se o pai deputado não vai levá-la imediatamente à mais cara das
clínicas da cidade, para raspar de seu útero de princesa o pedaço de carne
indesejável?
c) O filho será mais uma vez da favelada.
¨
Os
homens brasileiros que pensam dominar, possuir e manipular o corpo das mulheres
com propostas como essa, deveriam ser submetidos a um tipo de educação
(chicote), semelhante à recebida pelos homens europeus:
a) Ser submetidos ao chicote das
feministas européias.
b) E isso significa, por exemplo,
fazê-los urinar, por domínio cultural, sentados no vaso, como fazem as
mulheres.
Parte dos enunciados estão
distribuídos no texto em modo verbal imperativo, como a seqüência de verbos no
primeiro parágrafo (estuprar, enfileirá-los, dominá-los, amarrá-los...), pois a
proposta veiculada na emenda é algo tão surreal e ao mesmo tempo devastador,
porque imperativo e nocivo, para a vida das mulheres, que merece, por parte da
interlocutora, algo no mesmo tom. Ao se contrapor à emenda proposta na Câmara
com enunciados desse tipo (imagine se...,
alguma dúvida?, esses homens brasileiros deviam ser tratados...) a autora
cria um jogo de imagens semelhante àquelas que os deputados propõem sobre as
mulheres: se há sentidos que estabelecem vítimas e dominados numa instância de
poder como a Câmara dos Deputados, há sentidos contra-ideológicos numa página
de jornal tão poderosa, também, como o veículo em que escreve a escritora: e a
língua é o lugar em que se instauram esses conflitos, capaz de fazer frente a
variados tipos de discurso. Nesses termos, um texto é atravessado por embates
sociais de toda ordem, uma palavra responde/conflitua com uma outra palavra,
assemelhando-se a verdadeiras batalhas em torno de lugares sociais e de
instâncias públicas de poder.
¨
Essa
proposta dos deputados propõe e veicula uma visão subalterna das mulheres, como
se elas tivessem donos, sujeita-as a uma condição de animal ou de objeto:
a) As mulheres possuem “um instinto”
(algo inerente aos animais) materno, que é superior a tudo.
b) A Comissão de Constituição e Justiça
objetiva enxergar as mulheres como vacas, galinhas, ou cobras, depositárias de
um líquido (feto) masculino sem ao menos terem a condição de optar por isso.
c) São homens, a maioria (6 mulheres e 11
homens), a decidir o destino do corpo das mulheres; lembrando-se de que, no
Brasil, a população feminina é superior à masculina.
É evidente a construção
desses sentidos e o conflito que eles estabelecem. Os atributos relativos às
mulheres são tão preconceituosos, que seria inimaginável em países de primeiro
mundo, na Europa e na América do Norte, sem uma mobilização ampla de movimentos
feministas. As predicações sobre as mulheres são veiculadas pelos deputados com
termos que as igualam a animais: instinto materno, condição de depositária;
como também, não questionam o papel dos homens violentadores: a pessoa (a
mulher) tem que arcar com isso (um estupro). A autora, contudo, não questiona
também a posição dessas deputadas que fazem parte da Comissão de Constituição e
Justiça, que estariam sendo cúmplices (?) de uma manipulação contra, sobretudo,
elas mesmas e as mulheres pobres: em suas palavras, retrógrada, reacionária,
obsoleta, hipócrita.
5. FORMAÇÃO DISCURSIVA: FLUXO CONTÍNUO
DE SENTIDOS
O conceito de formação
discursiva (FD), apresentado logo acima no item 3, coloca em relação embates
ideológicos materializados lingüística e discursivamene. Como o texto da
escritora põe em cena discursos em que forças contraditórias conflituam num
jogo de poder, estabelecendo imagens que os interlocutores têm de si e do
outro, assemelhando-se a defesas e a ataques, as lutas ideológicas que se
instauram no texto não poderiam ser captadas pelo conceito de tessitura ou de
unidade com começo, meio e fim. Digamos que esse é só o começo de um debate,
que pode tocar vários homens-leitores e muitas mulheres-leitoras, estabelecer
cadeias de defensores ou detratores das idéias da autora, aprofundando a rede
de repercussões ou de silenciamento de sentidos. Uma palavra mobiliza sentidos
e posições, instaurando novas e surpreendentes realidades.
Não é possível optar por
uma realidade movimentada por um texto sem levar em consideração uma cadeia de
hipóteses variadas que ele pode despertar, ao mobilizar essa rede de sentidos.
O texto “Lei das emendas vaginais” pode se instaurar no universo da denúncia de
uma posição machista, como se caracterizar como uma construção ideológica que
defende o aborto em determinadas circunstâncias, como demonstrar que
determinados homens que ocupam o poder querem legislar sobre o corpo de
mulheres, como mobilizar alianças contra o projeto em pauta, como também
demonstrar que direitos devem ser sempre vigiados senão corre-se o risco de
perdê-los nas circunstâncias dos embates sociais, como averiguar que as
religiões cristãs instituem um lugar submisso e subalterno às mulheres na
sociedade, como movimentar sentidos punitivos em relação ao comportamento de
homens brasileiros.
Assim, um discurso mobiliza
tantas representações, e somente aquelas, que não é possível considerá-lo
homogêneo, funcionando automaticamente, tratando de uma temática
monoliticamente. Muitos problemas de composição textual em sala de aula
compreende queixas dos professores como: “você fugiu do tema”, ou “o seu texto
é uma salada-de-fruta”, ou “não há um eixo temático” ao qual seu texto se filie. Tais falas apontam para a
heterogeneidade discursiva inerente a qualquer prática construtiva de textos e
suas possibilidades de cobrir de maneira linear o tema a que se propõe
discutir.
Não se trata de que o
texto em questão seja ambíguo ao apontar para essas variadas hipóteses de
construção de sentido, trata-se dos efeitos
de sentido que pode dele usufruir um público-leitor. São forças
confrontadas com outras numa conjuntura ideológica determinada. Nesses termos,
constitui-se de um complexo de atitudes e de representações sociais possíveis,
que ultrapassam relações individuais e se instauram nos conflitos das relações
de poder, que são sociais, pois dizem respeito a interesses da sociedade como
um todo. Os quadros apresentados abaixo articulam discursos entre fronteiras de
formação discursiva mobilizadas por possíveis leituras do texto. Trata-se de
uma representação didática, dentre outras possíveis.
5.1 Um conflito de gênero, em que um certo tipo
de discurso quer estabelecer o lugar e a posição social das mulheres, na
maioria da vezes contra as suas próprias vontades:
FD
|
FD
- HOMENS
|
FD
– MULHERES
|
“O estupro é um acidente.”
|
Ao invés de associar a condição de
crime a uma violência como essa, os deputados em questão associam-no a um
acidente.
|
Como nenhum homem na cultura
brasileira sofrerá esse tipo de violência (estupro é uma palavra usada
somente em relação a crime contra mulheres), percebe-se que eles não têm a
dimensão da dor de uma violência como essa.
|
“Ninguém (as mulheres) pode por
ideologia ou opinião privar alguém do direito à vida.”
|
As mulheres são referenciadas como
“ninguém”, e a defesa dos seus corpos é tratada como ideologia ou opinião, e
não como um direito.
|
Há um “esquecimento” nessa frase do
deputado Philemon Rodrigues: não se trata de privar alguém da vida, trata-se
de deixar crescer num útero um feto originário de uma violência.
|
“O instinto materno é superior a
tudo.”
|
Os homens não concebem a
maternidade, inerente às mulheres, então é conveniente a construção de determinados efeitos de
sentido machistas, associando-a a um instinto.
|
Quem diz isso se “esquece” de que a
maternidade é uma construção social e cultural, e não instintiva na sociedade
humana. Naturalizar a maternidade é uma regressão a um estágio animal
primitivo.
|
“A mulher deve levar adiante a
gravidez na condição de depositária.”
|
“Condição de depositária” é tornar
um ser humano um objeto.
|
Quem deve decidir sobre o seu
próprio corpo?
|
Percebe-se um senso comum
sobre essa noção de um ponto de vista poderoso: as relações de gênero encontram
na língua seu ideal de significação. Não é tanto constatar quão verdadeiras são
essas noções, mas observar como elas vieram a se tornar um senso comum, ao
cristalizar as relações de gênero em sociedade como se fossem algo natural.
Gênero não é algo com o
qual se nasce ou algo que se tem: é tudo aquilo que delineia um comportamento.
É ideológico por “natureza”, dado que é uma imagem construída pela vida em
sociedade para delimitar determinadas relações e vivências: institui
determinados papéis. Enquanto o sexo é uma categoria biológica baseada no
potencial reprodutivo, inerente a todo agrupamento humano, o gênero é uma
elaboração social do sexo biológico, que varia de sociedade para sociedade, de
homens para mulheres e das representações nas instâncias de poder.
Há graus variados de
tolerância comportamental entre homens e mulheres baseados na concepção de
gênero construída pelos agrupamentos humanos. Portanto, não se desdobra de uma
biologia ou de uma predisposição individual a um certo tipo particular de
pessoa ou de personalidade - não é uma propriedade individual. O gênero é um
“arranjo” social e o gênero individual é construído nos limites da ordem
social.
As noções de gênero estão
por toda parte. Consistem em modelos de relacionamento simultaneamente
estruturados que definem masculinidade e feminilidade e regula as relações das
pessoas em sociedade. Está profundamente enraizado em todos os aspectos
sociais: nas instituições, no espaço público, na arte, na maneira de se vestir,
nos discursos e, sobretudo, na linguagem. E essas conexões e situações estão
ligadas umas às outras em configurações estruturadas, sobretudo pelo discurso.
Como as falas citadas foram as de homens e o contra-discurso está presente pela
voz de uma mulher, essa formação discursiva, a que didaticamente é referida
aqui como a de gênero, é a leitura de sentido que emerge em primeiro plano no
texto em análise.
5.2 Um conflito entre posições religiosas cristãs e concepções
de um Estado laico sobre o aborto:
FD
|
FD
- CRISTÃ
|
FD
- LAICA
|
“São evangélicos: protestantes ou
crentes...”
|
Quer-se, nesses termos, instaurar
leis que privilegiem posições religiosas cristãs como posições de Estado, e
submetê-las e todos os cidadãos, mesmo os não religiosos.
|
Ao associar a religião cristã a
posições contrárias ao aborto, o texto remete a uma concepção histórica
dessas religiões sobre esse tema.
|
“São católicos praticantes...”
|
A posição de um certo segmento entre
os católicos argumenta que só Deus tem o direito de “dar” e de “tirar” a vida
de alguém.
|
O texto assume que há, não somente
uma concepção religiosa contra o aborto, mas
também uma espécie de fundamentalismo religioso militante no Congresso
Nacional.
|
São os religiosos cristãos os que
“encabeçam a corriola pelo veto ao aborto.”
|
Evidencia-se que cristãos, ao ocupar
as instâncias de poder, fragmentam o Estado em nome de suas concepções
ideológicas.
|
Ao chamar católicos, protestantes e crentes de corriola, termo pejorativo que remete
a complô, a autora se põe ideologicamente contra um tipo de concepção
religiosa que quer se apossar do Estado como instituição particular.
|
5.3 Concepções
ideológicas, manifestadas por posições políticas conflitantes entre uma
militância de “direita” e uma outra, de “esquerda”, correndo-se risco de esquematismos redutores em relação a
esses termos:
FD
|
FD - DIREITA
|
FD – ESQUERDA
|
Deputados:
Philemon Rodrigues
(PTB-MG) e
Severino Cavalcanti
(PFL-PE)
|
O histórico desses partidos e a
atuação desses Deputados no Congresso Nacional sempre se associaram a
posições políticas assimiladas pela cultura política brasileira como posições
de direita.
|
Ao questionar de forma incisiva as
concepções políticas expostas por esses deputados na cena pública brasileira,
o pensamento da autora se assemelha a concepções de esquerda.
|
Os
esquemas apontados acima não pressupõem encerrar as formações discursivas
possíveis na construção de sentido do texto em análise; antes, apontam
procedimentos didáticos que podem iluminar alguns pontos na abordagem de um
certo efeito de sentido em sua heterogeneidade sígnica.
A recorrência a uma
ideologia confrontadora, militante, é uma saída buscada pela autora que
mobiliza o leitor a se posicionar sobre a questão. Ninguém consegue ficar
indiferente ou neutro a um discurso traçado dessa maneira. Para construir esse
diálogo, é preciso confiar na verossimilhança das citações dispostas ao longo
do terceiro e do quarto parágrafos. Será que os deputados disseram isso mesmo?
Como saber que o que foi dito, foi dito dessa e não de outra maneira? Quais são
as razões a as conseqüências de um discurso citado? Será que a autora descreve
(posicionando-se contra) ou forja uma realidade para defender determinados
valores? Pois a autora se apóia em fragmentos de um dito pelos deputados para
construir a sua argumentação. Sobre o discurso citado e suas funções na
construção de um texto, assim se expressa MAINGUENEAU (1989:90):
O sujeito que enuncia a
partir de um lugar definido não cita quem deseja, como deseja, em função de
seus objetivos conscientes, do público visado, etc. São as imposições ligadas a
esse lugar discursivo que regulam a citação.
“Regular a citação”
significa dizer que a palavra do outro não pode ser apropriada sem
conseqüências, como a perda de autenticidade por parte do enunciador citante ou
como também a sua perda de autoridade. Em jogo estão a credibilidade moral do
enunciador, como também a credibilidade legal do veículo (nesse caso, o jornal)
em que o discurso citado aparece. Nesses termos, o lugar discursivo regula a
citação na medida em que espera-se de um público-leitor uma confiança crítica
em relação ao que é dito, onde é dito, quem diz o quê e como isso é dito. Pelo
alcance e pela qualidade do jornal em que o discurso citado aparece, de fato os
deputados disseram o que disseram. Sabe-se que o que foi dito foi daquela
maneira pois há um diálogo da autora com uma outra fonte do próprio jornal (conforme reportagem de Daniela Pinheiro,
02/11, pág. 3-7).
Para a tarefa de
construção discursiva, um enunciador lança mão de variadas estratégias de estruturação
textual, como o intertexto e a intertextualidade, o diálogo que um texto mantém
com outros, com outras vozes:
Por intertexto de uma formação discursiva, entender-se-á o conjunto dos
fragmentos que ela efetivamente cita e, por intertextualidade,
o tipo de citação que essa formação discursiva define como legítima através de
sua própria prática. Além dos enunciados citados há, pois, suas condições de
possibilidade. (MAINGUENEAU, op.cit.:87)
As condições de
possibilidade da citação no texto em análise se inscrevem num debate público
sobre os conflitos levantados pelo texto. Tais condições preconizam a língua
como uma atividade social, pois o que foi citado, o foi por um político, alguém
que se utiliza da palavra em nome de uma sociedade, instaurando deveres e
direitos extensivos e que afetam a todos os cidadãos. Como é a vida de pessoas
de toda uma comunidade que está em negociação numa instância pública de poder
como é uma Câmara de Deputados, o discurso citado se insere numa esfera de
discurso público que tende a se dirigir
a todos.
A linguagem, portanto, é
uma atividade na medida em que:
(...) é um campo de
produção de significados no qual os diferentes grupos sociais, situados em
posições diferenciais de poder, lutam pela imposição de seus significados à
sociedade mais ampla. O que está centralmente envolvido nesse jogo é a
definição da identidade cultural e social dos diferentes grupos, o poder que
cada um desempenha sobre o outro e sobre suas próprias construções
lingüísticas. (RIOS, 2002:413)
Na
seqüência do enunciado da citação do quarto parágrafo, uma palavra está
propositadamente destacada entre aspas: ‘depositária’.
Como um texto se insere numa cena enunciativa, atravessada por antecipações e
reconstruções de todo tipo, como nada em um texto é gratuito, tudo se articula
na construção de sentidos necessários à função da língua como uma atividade
humana em negociação num espaço público, as aspas nessa palavra conferem-lhe um
certo estranhamento: a enunciadora se surpreende com a audácia, com a ousadia
tamanha do deputado ao associar a palavra ‘depositária’ à pessoa da mulher. A
palavra aspeada é retomada logo no parágrafo seguinte em tom de indignação
irônica:
Estufas, silos, depósitos
de sementes, chocadeiras fantasiadas de Virgem Maria, sem vontade própria nem
livre-arbítrio. É assim que os homens da Comissão de Constituição e Justiça
(formada por 11 homens e seis mulheres) enxergaram a mulher para tomar sua
decisão: como galinhas, vacas ou cobras.
A palavra aspeada tem um
valor semântico que representa implícitos e prevê funções sígnicas. Essas
funções podem distanciar o narrador/enunciador do sentido previsto, como a
dizer que a palavra tem origem no outro e não no meu discurso, como também
cumprir estratégia de ressignificações como espanto, ironia, desprezo, dentre
outras.
Nesses termos, observe-se
o que diz Maingueneau sobre as aspas e as funções desse recurso na construção
sígnica de um discurso, tanto na entrada citada na manutenção, inflexão e
reordenamento de sentido quanto no impacto que ela tem para o leitor:
As aspas constituem antes
de mais nada um sinal construído para ser decifrado por um destinatário. O
sujeito que utiliza as aspas é obrigado, mesmo que isto não esteja consciente,
a realizar uma certa representação do leitor e, simetricamente, oferecer a este
último uma certa imagem de si mesmo, ou melhor, da posição de locutor que
assume através dessas aspas. (MAINGUENEAU, op.cit.:91)
As palavras dos deputados,
da enunciadora, dos intertextos e na vida dos sujeitos-leitores ultrapassam os
limites de posições ideológicas pessoais e se enquadram em funções discursivas.
Não são pessoas, sujeitos
psicológicos em jogo no uso da linguagem: são funções, posicionamentos sociais
em confronto. Assim como os políticos em questão no texto estão falando em nome
de um público, legislando em nome de um mandato licenciado por um conjunto
social de homens e mulheres, a palavra (recepção) dos leitores e da enunciadora
também é uma palavra funcional pois se inscreve em uma capacidade social de
indignação, confronto, defesas, e conta com uma representação de
sujeito-leitor, de sujeito-vítima, de sujeito-cúmplice, de sujeito-poder,
dentre outros.
O sujeito só coincide
consigo mesmo em parte: ele é atravessado pela linguagem e pela história, e,
por isso, apresenta uma contra-palavra. Não é um alguém exterior à língua que
se distancia dos textos/discursos com a finalidade de traduzir-lhe ( produzir)
os sentidos: a enunciadora do texto em debate é ela mesma atravessada pelo seu
próprio discurso e sofre os discursos dos deputados citados, por isso se dirige
ao leitor-posição dessa e não de uma outra maneira. A condição de sujeito que é
ela é um efeito de linguagem constitutivo de sentidos.
O lugar de enunciação
conta com adesões: tanto os deputados contam e confiam em que a sua palavra
representa interesses de milhares de pessoas, assim como a enunciadora conta
representar interesses de mulheres, milhares delas, ela própria na condição de
uma.
Os enunciados e
enunciadores em cena no texto em análise lidam com uma memória discursiva: é um
saber que torna possível (e legítima) uma enunciação. A tomada de uma palavra
lida com um já-dito, comportamentos e valores presentes na vida das pessoas em
sociedade. Senão, caberiam as perguntas: quem é esse deputado para pensar assim
sobre as mulheres? Quem é ela para confrontar uma palavra de alguém que representa
tantas pessoas? Quem são esses leitores para os quais se dirigem esses
deputados e essa enunciadora? As respostas a essas perguntas já estão
implícitas nos jogos de sentido construídos pelo texto.
Assim como as palavras dos
deputados representam interesses (é uma palavra-função), o seu mandato e a
renovação dele podem ser possíveis ao defender essas posições por contar com
uma representação que legitima um dizer; assim também a palavra da enunciadora
lida com uma representação, com uma imagem das mulheres já dita, já sentida, já
representada em algum lugar social, distante no tempo e no espaço discursivo e
social: as palavras da enunciadora estão dialogando, por exemplo, com as
palavras de outras mulheres que fizeram valer esse direito conquistado por elas
desde 1940.
Todo dizer, portanto,
remete a, dialoga com, introduz um pré-construído. A constituição de um
discurso só é possível por articular dois eixos: uma memória discursiva, as relações de historicidade situacionais e
contextuais que fazem emergir os sentidos, e uma atualidade discursiva: percebe-se que, se essa “lei das emendas
vaginais” for aprovada no Congresso, afeta um presente e um futuro das
mulheres. Em verdade, esses conflitos (que envolvem aborto, estupro, homens,
mulheres e poder) já estavam em pauta ainda antes de os deputados e a
enunciadora se posicionarem, como emerge no texto. Eles se tornaram públicos e
foram ampliados pela iminência de se aprovar (reverter) uma lei e pela
repercussão que um jornal tão poderoso como a Folha de S. Paulo tem na
sociedade.
6. CONSIDERAÇÕES FINAIS
Este
texto é uma leitura possível, à luz de pressupostos teóricos da Análise de
Discurso, de um outro texto “Lei das emendas vaginais”, uma crônica publicada
em jornal. É uma abordagem que não lhe esgota possibilidades de construção de
sentido, pelo contrário: abre novas possibilidades de ser-lhe apresentada uma
nova contra-palavra.
Ao
longo das discussões foi possível constatar que a idéia de texto como unidade e
como tessitura é incapaz de cobrir as variadas hipóteses de significação
passíveis de serem feitas. É preciso, portanto, relacionar o material
lingüístico a situações discursivas e comunicacionais que estão ao redor e fora
das relações semânticas e sintáticas: um texto sempre demanda um novo texto
para “ficar de pé” em sentido pleno. Durante o percurso de leitura,
constataram-se variadas hipóteses interpretativas todas possíveis e todas
capazes de serem definidas dentro do próprio texto. Tais hipóteses foram
construídas e constatadas pelos conceitos de formação discursiva, sujeito e
formação ideológica. As formações discursivas como fronteiras de sentido
ajudaram a dar variadas dimensões sígnicas presentes no texto de Marilene
Felinto: trata-se da defesa do aborto em determinadas circunstâncias?, trata-se
de uma denúncia de uma manobra conservadora-cristã no Congresso Nacional?,
trata-se de uma vingança feminista contra homens machistas e insensíveis?,
trata-se de uma crítica a uma visão perturbadora e redutora da condição das
mulheres?, é um texto-militante?
Pode ser tudo isso, não
pela incapacidade de o texto ser uma unidade temática, ou porque não há uma
coerência interna, ou porque ele seja ambíguo em sua construção. Pode ser “tudo
isso” porque o discurso é construído por variadas estratégias de criação e
interpretação: variadas vozes atravessam um discurso (é a polifonia),
interdiscursos e intertextos compõem os fios dessa rede de significações que é
um texto, as posições e os sujeitos em interação são múltiplos, por vezes
antagônicas, e essa heterogeneidade instaura os conflitos.
Uma análise lingüística
que negligencie essas apreciações e essas interpretabilidades possíveis corre o
risco de não levar em conta as multiplicidades de sentido e as riquezas
sígnicas inerentes a qualquer discurso. E mais, negligenciar essas múltiplas
capacidades interpretativas não é algo gratuito: é também uma opção ideológica
que neutraliza aspectos relevantes da construção de sentidos.
7. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
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Filosofia da Linguagem. (Trad. De M. Lahud e Y. F. Vieira), São Paulo,
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Helena H. Nagamine. Introdução à Análise
do Discurso. São Paulo, Editora da UNICAMP, 1995.
EAGLETON, Terry. Ideologia. São Paulo, Editora da UNESP, 1991.
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Análise do Discurso: estudo de um texto específico. Salvador, In: Revista
da FAEEBA, nº 9, jan./jun., 1998.
MAINGUENEAU,
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Discurso. São Paulo, Editora da UNICAMP, Pontes, 1989.
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procedimentos. São Paulo, Pontes, 2002.
RIOS,
Jane Adriana Vasconcelos Pacheco. A
linguagem verbal e suas relações de poder: a interação lingüística como
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2002.