terça-feira, 25 de maio de 2021

Os nossos bunkers em casa



Vi ontem um filme que tratava da Guerra Civil Espanhola (1936-1939) e de seu desdobramento sombrio, a ascensão do ditador general Francisco Franco, que governou o país ibérico por mais de 30 anos. 

O filme intitulado, em português, “A trincheira infinita” (“La trincheira infinita”, 2019) se dedica aos chamados “toupeiras”, perseguidos políticos comunistas e anarquistas que se escondiam em buracos dentro de suas próprias casas, por décadas, muitas vezes por mais de 30 anos, enquanto o país mergulhava no conservadorismo, na morte de milhares de civis, em nome do anticomunismo e da ditadura. A Espanha vivenciou, por décadas, uma torrente de violências medievais contra os direitos humanos e a explosão da pobreza e da corrupção.

Muitos espanhóis hoje relembram nostalgicamente do general Franco, devido a uma fase final de prosperidade que se deu na década de 1970, quando a Espanha contava com apoio dos Estados Unidos para seu desenvolvimento econômico, num contexto de guerra fria e da necessidade geopolítica de fortalecimento dos países capitalistas, diante da ameaça socialista soviética. Países como Alemanha, Itália, Espanha e Portugal, que tiveram seus “malvados favoritos” (respectivamente Hitler, Mussolini, Franco e Salazar) geraram essa falsa ideia de que ditadores são necessários para o fortalecimento da economia, recheado com discurso nacionalista e xenofóbico. 

Com suas heranças colonialistas e imperialistas esses países possuem o background do massacre de milhares de povos e nações e atualizam isso, hoje,  na adoção de políticas anti-imigrantistas, um investimento contra o movimento de refluxo daqueles que foram vítimas de suas histórias expansionistas e de espoliação, por mais de três séculos. Africanos, latino-americanos e asiáticos ainda continuam sendo barrados nos aeroportos de Madrid, Lisboa, Roma e Berlim, nesse reflexo terrorista das políticas de imigração. A história se repete, mas, adaptando Marx, agora como a farsa do ultranacionalismo e das investidas da extrema direita.

A Espanha, por exemplo, possuía colônias até os estertores do franquismo em 1975. Seu discurso nacionalista se ergueu sobre a morte de milhares de opositores do general Franco, notadamente, civis espanhóis, que acreditavam em outros rumos da história. Se ergueu sobre a mortes daqueles que também defenderam seus povos e suas riquezas nas colônias. É um país rico, mas também um barril de pólvora de movimentos independentistas (Bascos e Catalães), uma resposta ou uma reedição do nacionalismo doentio. É um país rico, mas que enfrenta  uma explosão imigratória jamais vista (com milhares de africanos esquálidos, chegando a nado no litoral norte do país), resultado também da empreitada criminosa do colonialismo espanhol. A Espanha invertebrada por sua história (para usar a imagem do filósofo Ortega y Gasset) jamais conseguirá unir seus concidadãos em um projeto comum e ainda pagará caro com os movimentos dissonantes de ressentimentos seculares.

A imagem cinematográfica, meticulosamente trabalhada com cores profundas, de um revolucionário espanhol, barrigudo e velho, em sua trincheira infinita, com medo de sair às ruas e ser assassinado por seu vizinho, caiu como uma metáfora conveniente dos dias atuais no Brasil. Cansados e com medo da morte causada por aquilo que não vemos, muitos de nós assistimos a um arremedo nonsense do discurso ditatorial e nacionalista, e em nossos bunkers, trincheiras atualizadas da classe média, envelhecemos com pouca esperança de dias melhores. 

(Marcos Aurélio Souza. Doutor em Literatura e Cultura pela UFBA. Professor Titular da UNEB)

 

domingo, 7 de março de 2021

Intertexto do intertexto (baseado no poema de Bertold Brecht)

Primeiro levaram os partidos de esquerda. Mas eu não me importei.Não era filiado a nenhum deles.


Depois levaram os mais exaltados. Também não me importei. Eles eram radicais demais pra mim.

Depois levaram artistas populares, músicos, estudantes e professores. Então fiquei com medo e me escondi.

Agora levaram a democracia, me levaram e não sei o que fazer.

Mas, como não me importei com ninguém, ninguém se importa comigo.

                                                                                                               (Marcos Aurélio Souza) 

segunda-feira, 21 de outubro de 2019

Estamos perdidos há muito tempo e a direita (não bolsonarista) “descobriu” isso agora.




A direita tradicional brasileira, os vestígios do que sobrou do PSDB, os Frias, a VEJA, a velha imprensa marrom, o clubinho "moderado" pmedebista, os ciristas, podem estar dando um passo mais sensato ao fazer as devidas críticas ao governo bolsonárico, só agora. Pelo menos, melhor do que fizeram quando se enfiaram na lama do antipetismo e ajudaram a eleger o coiso, para a desgraça geral da nação.

Li  em uma reportagem da Época, revista escrotinha (ex?)sócia dos tucanos, um artigo sobre as aulas de filosofia do Olavo de Carvalho,  mentor intelectual de Bozo. Aulas ministradas via EAD, lá de Michigan, onde o guru, com pose e charuto de filósofo europeu, mora. O jornalista da dita acompanhou as aulas de filosofia do mestre dos coxinhas, que nem primeiro grau possui, para concluir que aprendeu o “nada”. Eu me pergunto, precisou cursar todo o curso para concluir o óbvio, e depois de descrever suas aulas, intitular sua matéria de “Tudo sobre o nada”?

Jornalista intelectualmente moroso, como a direita que só chega atrasada. Eles torcem para tudo quebrar, quebra bolsonaro, quebra PT, e eles descansam sobre as ruínas putrefatas do país, com o perfume francês de Fernando Henrique Cardoso. Esquecem, entretanto, sua promiscuidade absoluta cúmplice e comparsa de tudo que vem acontecendo de ruim nos 500 últimos anos, inclusive dando margem a ultra direita mais esdrúxula. Os Maias, os Mendes, os Toffolis vão ter que sambar miudinho quando o povo arrancar a carapuça geral dessa direita, que chegou ao seu extremo para revelar a todos, em alto e bom som, que nunca prestou. Nunca prestará.

quarta-feira, 17 de abril de 2019

O cabelo de Belinha


Todo mundo da família queria dar conta do cabelo de Belinha. E ela começou a achar que havia nascido com algum defeito congênito, um problema que estava, literalmente, em sua cabeça.

Influenciada pelas colegas da universidade, resolveu deixar o fluxo natural dos seus fios, embolando um no outro, como amantes pervertidos, dando a sua cabeça um aspecto majestoso, semelhante a coroa de uma rainha. Chamaram isso de transição, para ela era a descoberta de outro mundo dentro de si.

Percebeu no espelho que o seu rosto assumiu uma espécie de voluntariedade, diria até certa soberba e se achou realmente bela, pela primeira vez em sua vida. Um nojo da família que a pedia que “domasse o cabelo”, um nojo da irmã, empurrando-lhe produtos caros, misturando discurso de auto-ajuda ao de marketing de venda. Tudo para ela conseguir bater a meta de vendas no mês e para que o seu cabelo ficasse mais sedoso “porque a aparência influencia os negócios”.  Gastou todo dinheiro da primeira bolsa de iniciação científica com o engodo estético, daquela que se dizia sua melhor amiga. Não gostou do resultado, parecia “uma cara lambida”, com tanto creme e mais creme.

“Filha, você tem pele branca, esse cabelo não combina contigo. Dá uma escova”. Não soube o que dizer à mãe, numa certa manhã, e só respondeu, com indisfarçado espanto: “eu gosto”. Estava atrasada demais para pegar o ônibus. Mais tarde, no coletivo, observando os transeuntes, uma tristeza lhe invadiu o peito. Tentava decifrar o enigma da frase proferida por aquela que lhe era uma referência, aquela que, em todo aniversário, presenteava-lhe com romances e livros de contos. Ela mesma, a mãe, acostumada a reclamar do preço dos salões, ela mesma, tentando “tratamentos” miraculosos para o cabelo, em casa.

O pai de pele branca, cabelo crespo, já quase careca, a mãe pele bronzeada, como se auto classificava, com a cabeleira vasta contida com grampos, ou passada a ferro, lisinha e batida. Aquela família meio branca tentava amaciar-lhe o pecado por ter nascido com um cabelo que desafiava a lei da gravidade, incutindo-lhe valores que, agora, lhe pareciam estranhos, para não dizer violentos.

Lembrou da primeira vez, quando completara cinco anos, que sua avó a levou num salão de beleza. A mulherada riu quando ela desmontou o cabelo, que vivia sempre diligentemente trançado, com lacinhos na ponta. Foi a primeira vez que percebeu como adultos podiam destruir a subjetividade de crianças, com preconceitos, e “frases despretensiosas”. Escovou o cabelo da pequena para ficar liso e assim foi, até a adolescência.

Pensou em abandonar a casa, viver em república, com as colegas igualmente crespas. O pai, percebendo a tristeza da filha, diante de outra discussão feia com a mãe, só disse, “deixa ela, está cada vez mais parecida com a tia Flora”.  Tia Flora, irmã do pai, era considerada, por todos, “a mais preta da família”.

Saiu desolada com aquele cenário recôndito, que agora se revelava, a família negava sua origem negra, disfarçada sob o olhar de censura da mãe, a indiferença do pai e os conselhos estéticos e interesseiros da irmã mais velha.

Um dia, novamente cedo, a mãe falou alto da cozinha, como se conversando consigo, fazendo questão, no entanto, de que todos a ouvissem em casa:

 - Não vejo a hora dessa moda de cabelo duro passar!

Subiu-lhe uma fúria, porque sabia que a fala era para ela.  Na cozinha, olhou para a mãe, que no momento cortava um tomate na pia. Disse, em tom engasgado, como num choro contido:

- Pena que burrice não passa como as coisas da moda, não é mãe?

Bateu a porta, saiu triste, sem tomar café. Nunca havia chamado sua mãe de burra e no ônibus não conseguia pensar em nada. Entrou na sala de aula, duas meninas brancas elogiou seu cabelo, artificiais como toda menina de cabelo liso. Outra amiga, de cabelo escovado, preta retinta, disse-lhe não ter coragem de assumir o crespo, porque nela “não ficava tão bonito assim”.

“Você está mais bonita e eu não sei, exatamente, porque estou achando isso”. Foi a frase mais sensível que ouviu naquele dia, dita por um colega, a quem começara, naquele momento, prestar a atenção. Ele sentava isolado: pele clara, igual à dela, cabeleira vasta, com rodopios cacheados na frente, mechas crespas nos lados e atrás. Pensou que poderiam ser irmãos, pelo menos parentes. Ficou mais achegada e passou a fazer trabalhos com ele.

Durante uma festa de república, o colega contou sua história pessoal. A mãe era negra e o pai branco. A família do pai vivia fazendo piada do cabelo do menino e a mãe incomodada o queria sempre cortado. “Tipo de soldado, é mais bonito, dizia”. Depois uma impaciência acumulada com o tio que chegava na sua casa e, a primeira coisa que fazia, puxava o cabelo do sobrinho, meio agressivo, sem perceber. Dizia coisas como: “que cabelo lindo”. Exotizava-o como um animal raro: “olha que cabelão!”. E o puxava novamente.

A avó, mãe do pai, quase esquizofrênica, arrumava seu cabelo pra lá e pra cá, enrolava com o dedo, passava creme. Dizia que estava bonito em um dia, e, no outro, queria cortar. Via-se uma impaciência, aparentemente controlada de alguém que, por trás do discurso politicamente correto (“meu neto tem que deixar o cabelo crescer, gosto dele grande e natural”), queria mesmo que ele não fosse tão preto como a família da nora. Queria um filho mais branco como seu pai que vinha de uma família de “recém brancos, com um monte de pretos ancestrais, via-se isso nas fotos antigas”.

O menino ria com ironia do drama familiar, contado para a colega, agora confidente e cúmplice.

Depois da narrativa, movidos pelo álcool, pela música e pelos hormônios que dançavam em seus corpos, eles se beijaram. E seus cabelos se uniram e seus cheiros se casavam. Sentiam-se mensageiros de um mundo novo, peles negras sob as peles claras. Juntos resistiam, simplesmente porque lhes era negada e tripudiada sua ascendência não branca, exibidas nitidamente nas suas cabeças de monarcas.

Belinha tirou do bolso o celular e fez uma self com seu colega, irmão crespo, agora amante. No story do instagram da menina, todos seus seguidores podiam ler a frase, “quem ama não controla o cabelo de ninguém”.  E ver, em vintage, a foto: o sorriso e abraço dos dois, mãos erguidas para cima, gesticulando felicidade momentânea e lutas futuras.

terça-feira, 30 de outubro de 2018

Dormindo com um Bolsominion



Ontem fizemos amor e foi muito bom. Ele acordou com um brilho diferente nos olhos, raramente isso acontece, somente quando seu time vence. Ele está confiante. Um momento raro, eu gosto disso. Só que não. Parece ter esperança, mas não sei exatamente em que, ou em quem.

Estou com medo, durmo com ele todos os dias, numa vida de liberdade vigiada. Ele falou para mim que ama nossa família, que vai cuidar dos nossos filhos e vai conseguir um emprego decente, “botar um rango melhor na nossa mesa”.  E uma esperança sombria: declarou voto em Bolsonaro. Tremi.

Há algum tempo está estranho comigo. Um jeito grosseiro de me abraçar, batendo em minha bunda. Há anos quando um dia me chamou de patroa, dei-lhe um esporro, no meio de uma reunião, em casa com colegas da faculdade: “eu não te pago, não sou sua patroa”.

Mas, ontem, ao chegar do futebol da praia trouxe peixe fresco e o amigo do trabalho, o Juraci. Veio conversando alto, para eu ouvir: “Minha patroa que vai fazer o peixe, Jura, eu não sei nem assar um ovo”. Tremi novamente.

Estava na cozinha limpando a pia. Ele encostou suado e repetiu o gesto infame, um tapa na bunda. Subiu-me um sentimento de raiva desesperada.

- Puta que pariu, Afonso, para de me bater, eu não gosto disso. E não vou fazer esse peixe, já almocei. Você se vira.

E mais baixo, sussurrei-lhe no ouvido:

- Você traz alguém para almoçar sem nem me avisar, e logo o Juraci?

Pegou no meu cabelo (nunca havia feito isso), num ímpeto grosseiro com a mão de areia e o bafo de cerveja:

- Merda, faça esse peixe, para de reclamar, dou duro no trabalho e você só reclama, trouxe o peixe, faça essa porra, não me faça passar vergonha...

Jogou o peixe no lavatório, me empurrou contra a pia e saiu da cozinha para conversar com o Juraci, como se nada tivesse acontecido.

 - Jura, diga aí, se o Bahia não é pauleira mesmo, venceu o Paraná... Vamo “bebemorar” nessa porra, o peixe já vai sair...

A cozinha me pareceu um inferno, uma sala de tortura. Enxerguei facas imensas, instrumentos perfurantes, panelas pesadas e escuras, minhas mãos seguravam a bucha ensaboada. Tinha veneno em tudo. O sal grosso, o inseticida, água sanitária e o sabão em pó.

O que aconteceu com aquele homem, alguém autorizava sua soberba repentina. Ele comentava o cenário político e nem esperava minhas resposta, interrompia: “Você fez faculdade do PT, sua opinião não conta”. Ele me considerava uma militante fora de moda. “O mundo agora é o outro e o PT já era”. “As feminazis já eram. Bandidagem e o mimimi dos direitos humanos também”. “O capitão vem aí”. “Bandido bom é bandido morto”. Blá, blá, blá.

Concentro-me na tarefa. É muito fácil preparar um peixe. Sou formada em química. A primeira da minha família com diploma universitário. A cozinha é um laboratório. Juntei 300 sementes de maçã, para uma experiência na universidade com os alunos. Produzir cianeto, em seu composto exato para produção de plástico. A amigdalina extraída da semente da maçã se converte nesse produto altamente tóxico através de uma manipulação caseira muito simples, desenvolvida por mim. Soldados alemães, capturados em guerra, ingeriam pequenas doses do cianeto para cometer suicídio.

O atum parecia sorri, até que a faca lhe decepa a cabeça. Corte preciso no bucho, vísceras retiradas, reentrâncias na carne escura em que se pode espalhar uma substância qualquer como tempero. O sabor suave da maçã sintetizada. Atum adocicado. Depois o alho, o tomilho, batatas, brocólis cenouras recheadas de betacaroteno e monocrotofos.

Ele me fez passar vergonha semana passada. Tive vergonha dele. Não quis que concluísse minha conversa, entre amigos, sobre o risco dos agrotóxicos. Repetiu desdenhando, no alto de uma sabedoria que nem completou o ginásio. “É vem você com esse blá blá blá ecologista, o capitão vem aí, vai acabar com MST e transformar nosso território numa potência agrícola”. Não adiantou argumentar que o mercado europeu está cada vez mais exigente em relação aos nossos produtos, da necessidade do selo de orgânicos. Ele arrotou bazófia e todo mundo riu.

Eu ganho três vezes mais do que ele, sou doutora em Química, professora universitária. Casei com uma cavalgadura, que agora está confiante no futuro do país.

O peixe cheira e invade a cozinha. Cheiro assassino. Os homens sentem o prazer de uma cozinha eficiente. Eles trazem a caça e eu preparo o alimento, manufaturado por minhas mãos ágeis.

Sobre a mesa, o atum na assadeira, aguçando as papilas gustativas dos machos, em postas com formatos indecentes. Eles me olham com prazer. Falar de futebol, do peixe, do capitão, da boa cozinha, do cheiro bom. O vinho derramado em golfadas sonoras nas taças. O homem a quem jurei amor ergue-se e faz um brinde: “Ao capitão”. Eu sorrio discretamente e baixo a taça, o brinde é deles somente. Eles sabem minha posição. Sorvo o vinho de uma só vez até o último gole.

A rapidez do alimento ingerido, as poucas espinhas separadas. O meu prazer em ver o almoço, inesperado, concluso com prazer. Juraci está suando, não se sente bem, diz que precisa ir para casa. Deve ser o calor. Eles se abraçam e eu suspiro aliviada com fim momentâneo daquela cumplicidade masculina, estranha.

Arrota, me abraça, faz um carinho no meu cabelo, pede desculpa e me chama para descansar um pouco na cama, as crianças estão na casa da avó. O resto do domingo só nosso. Eu vou com ele. Deita como um porco e adormece em minutos.  Fico acordada, olhando aquele ser inerte que tanto amei e tanto me deu prazer. Agora o silêncio. No delírio último do sono, uma frase meio bêbada meio sonho: “Agora é a vez do capitão”.

quarta-feira, 10 de outubro de 2018

“LEI DAS EMENDAS VAGINAIS” REVISITADO II: UMA LEITURA À LUZ DAS FORMAÇÕES DISCURSIVAS (Braulino Pereira de Santana)


“LEI DAS EMENDAS VAGINAIS” REVISITADO II:

UMA LEITURA À LUZ DAS FORMAÇÕES DISCURSIVAS

Braulino Pereira de Santana

1.   O TEXTO

     Título: “Lei das emendas vaginais”

     Autora: Marilene Felinto, escritora

     Publicação: Jornal “Folha de S. Paulo”, 19/11/1995, página 9, Seção “Adrenalina”

Estuprar sistematicamente os homens: dominá-los, amarrá-los, enfileirá-los um ao lado do outro, abaixá-los (na posição subalterna), as pernas abertas, de costas para os outros homens que venham, brutamontes, e pratiquem o ato de violá-los sexualmente. Depois, por algum processo de "transferência" ou "regressão", digamos (algum desses processos de psicanálise), deixá-los amargar em laboratório, por longos dias, a gravidez involuntária das estupradas. Que sintam na carne a repulsa, a humilhação.

São cenas de sessão de psicodrama para se aplicar aos homens que aprovaram (e aos que pretendem) a proposta de emenda constitucional que veta o aborto à gravidez resultante de estupro, direito adquirido pelas brasileiras há 55 anos.
A proposta, aprovada em maio pela Comissão de Constituição e Justiça, da Câmara dos Deputados, tem chances de ser aprovada agora pelo plenário da Câmara. São evangélicos (protestantes ou crentes) e católicos praticantes que encabeçam a corriola pelo veto ao aborto.

Um deputado (Philemon Rodrigues, PTB-MG) disse à Folha (conforme reportagem de Daniela Pinheiro, 02/11, pág. 3-7) que "o estupro é um acidente. E a pessoa tem que arcar com isso. Ninguém pode por ideologia ou opinião privar alguém do direito à vida."

Outro deputado (Severino Cavalcanti, PFL-PE, autor da emenda) disse que "a mulher deve levar adiante a gravidez na condição de 'depositária'", já que ela tem "o instinto materno, que é superior a tudo".

Estufas, silos, depósitos de sementes, chocadeiras fantasiadas de Virgem Maria, sem vontade própria nem livre-arbítrio. É assim que os homens da Comissão de Constituição e Justiça (formada por 11 homens e seis mulheres) enxergaram a mulher para tomar sua decisão: como galinhas, vacas ou cobras.

A proposta não é apenas obsoleta, reacionária e retrógrada. É o cúmulo da hipocrisia. Imagine se a filha do deputado ou do banqueiro vai carregar na barriga um feto originário de estupro. Imagine se o pai deputado não vai levá-la imediatamente à mais cara das clínicas da cidade, para raspar do seu útero de princesa o pedaço de carne indesejável. O filho será, sim, mais uma vez, da favelada.

Difícil acreditar sequer na possibilidade de uma emenda como essa vir a ser aprovada num país de costumes liberais como o Brasil, em pleno ano 2000. Ora, se deve haver qualquer lei que trate do corpo da mulher, que seja, no mínimo, elaborada por mulheres. O corpo é nosso, a vagina é nossa, quem deve decidir que pênis vai entrar ou sair dela, ou que feto vai crescer ou não no nosso útero somos nós. Alguma dúvida?

Esses homens brasileiros deviam ser tratados sob o chicote das feministas radicais da Europa. Vi em Berlim pela primeira vez um homem urinar sentado no vaso sanitário, igual às mulheres. Perguntei por que ele mijava sentado. Rindo da minha surpresa, contou que aquilo era comum entre os homens alemães da nossa geração (ele tem 32 anos), obrigados a agir assim por uma rígida sequência de mães, irmãs, mulheres e namoradas que detestavam a molhação de mijo que os homens, ao urinar de pé, faziam nas bordas do vaso. Impressionante a eficácia do feminismo germânico. É preciso aplicá-lo ao psicodrama que vista de calcinhas e sutiãs no plenário da Câmara.

 

2. PRÓLOGO

Este artigo, dividido em cinco pontos, analisa o texto “Lei das emendas vaginais”, de autora e publicação referenciadas acima, no ponto l, “O texto”. Os pressupostos teóricos como concepções para a análise são oriundos da Análise de Discurso (AD), problematizadas e discutidas nas sessões do módulo IV, Análise do Discurso, ministradas pela professora Rosa Helena Blanco Machado, durante as aulas dos Seminários Avançados I, no curso de pós-graduação em Lingüística da UFBA, coordenados pela professora Ilza Ribeiro. A partir dos conceitos de texto para a  lingüística textual e para a AD, formações discursivas e formações ideológicas, o artigo procura “ler” o texto de Marilene Felinto numa perspectiva mobilizadora de múltiplos sentidos, planejados para responder a posições ideológicas que querem aprisionar o direito ao corpo das mulheres a uma visão machista e fundamentalista cristã da história e do Estado, e a autora movimenta uma contra palavra, mobilizando, assim, um contra-discurso.

 Palavras-chave: Texto - Discurso - Poder - Formação Ideológica - Formação Discursiva

 

3. TEXTO: UNIDADE OU DISPERSÃO?

Um texto escrito é geralmente conceituado como uma unidade temática que organiza o pensamento por intermédio da língua(gem). Suas fronteiras são delimitadas por dois brancos no papel: um branco que antecede o título e um outro depois do ponto final. As frases são organizadas, num texto em prosa, em parágrafos que se sucedem, estabelecendo um todo “harmônico”, sem contradições ou ambigüidades, formando uma “costura” interna, uma tessitura, como se as partes estivessem interligadas como numa colcha de retalhos.

Esse tipo de conceituação de texto tem na lingüística textual seus pressupostos teóricos estabelecidos por meio de conceitos como textualidade, fatores pragmáticos, coerência, coesão, horizontes de expectativas do leitor; e o trabalho de composição de redação em sala de aula comumente é chamado de produção e recepção.

 Neste artigo, propomos uma abordagem de texto concebido como um conflito e como micro unidades temáticas em atividade e interação, pois percebemos que a abordagem da lingüística textual é insuficiente para lidar com as múltiplas possibilidades de realização, criação, significação e leitura de textos. A “produção” de um texto não resulta num produto (produção) acabado, a ser empacotado como um carro em uma linha de montagem; nem tampouco o recebemos passivamente, como sugere a palavra recepção. Como não dizemos palavras e frases simplesmente, mas atuamos com a língua instaurando verdades, mentiras, relações de força e de poder (BAKHTIN), há textos cuja “recepção” se assemelha a verdadeiros embates ideológicos, daí o pouco alcance e a limitação de termos como produção e recepção, e as lacunas que uma lingüística textual vai espalhando na construção de sentidos: o texto se instaura como uma dispersão, estabelecendo “piquetes” nas variadas fronteiras de leitura.

     Por lidar com a língua do ponto de vista formal e ignorar que ela é concreta e intuitivamente atravessada pelos embates  sociais  e  ideológicos,  a lingüística textual se “esquece” de que os textos não são documentos que ilustram idéias pré-concebidas, mas monumentos nos quais se inscrevem as múltiplas possibilidades de leituras (ORLANDI, 2002:37). Seus aspectos formais, portanto, são regras garantidas pela própria língua e dominadas por todo leitor proficiente em língua escrita: dessa maneira, é necessário ultrapassar os limites internos de sentido e relacioná-lo a um diálogo ideológico no mundo.

As dificuldades de criação e leitura de textos se inscrevem na esfera de suas condições de produção em relação à memória do leitor e da sociedade, a ideologias, a falhas, a “esquecimentos” e a equívocos. As condições de criação em relação ao domínio formal da língua escrita são muitas vezes privilegiadas no trabalho em sala de aula, e isso impede o produtor-leitor avançar um conceito de texto em direção ao uso da língua como um discurso.

Propomos esse avanço, ao analisarmos o texto “Lei das emendas vaginais”, de autoria da escritora Marilene Felinto, publicado no jornal Folha de S. Paulo em 19/11/1995, na seção Adrenalina. O objetivo deste artigo é uma leitura desse texto, considerando-o à luz dos pressupostos teóricos da Análise do Discurso ao mesmo tempo em que procura subsidiar trabalhos de criação e leitura de textos em sala de aula.

A lingüística é pródiga em apresentar reflexões sobre como lidar com, avaliar e conceituar textos. A reflexão lingüística aqui apresentada, sob os pressupostos teóricos da AD, permite uma leitura de texto que ultrapassa, mas não negligencia, as relações sintáticas e semânticas comuns a todo texto escrito, ao abrir múltiplas possibilidades de inserção dos textos às cadeias ideológicas e discursivas de que fazem parte os leitores e os próprios textos.

Analisar um texto considerando-o sob a perspectiva da AD é entender que a produção de significações de palavras não se encontra presa em dicionários nem tampouco frases e sentenças fazem parte exclusivamente do domínio interpretativo das gramáticas. As significações resultam, além das relações inerentes à matéria lingüística, de um trabalho para o qual concorrem as condições de produção dos discursos, o lugar de onde emergem os sujeitos enunciadores e os enunciados, os embates ideológicos presentes na relação leitor-texto-mundo, as formações discursivas (FD) como práticas sígnicas dos homens e das mulheres em sociedade. A significação, portanto, ultrapassa as fronteiras dos textos para se instaurar nas fronteiras de um discurso.

Como objeto de estudo, o discurso pode ser conceituado como “palavra em movimento”, “prática de linguagem” que flagra homens e mulheres mediando suas vidas e suas existências por intermédio da língua como sujeitos que a falam/usam em situações concretas na história. O uso da língua em sociedade não se trata de mera transmissão de informação nem de comunicação apenas, não se trata de uma tessitura que articula sentidos alheios à multiplicidade de inserções de que um texto pode fazer parte,

no funcionamento da linguagem, que põe em relação sujeitos e sentidos afetados pela história, temos um complexo processo de constituição desses sujeitos e produção de sentidos e não meramente transmissão de informação.(ORLANDI, op. cit.:21)

            Na passagem do texto ao discurso, a análise passa por etapas que procuram estabelecer a significação da superfície textual e sua relação com a exterioridade social e ideológica, inerente ao próprio discurso, na medida em que procura evidenciar a construção dos sujeitos e os processos interativos de produção de sentidos, mediada por conceitos como formação discursiva e formação ideológica.

            Enquanto o significado de palavras, frases e sentenças goza de uma certa estabilidade aparente, que tem num dicionário e nas relações sintáticas e semânticas um ideal de significação, na medida em que os/as falantes não podem alterar seu significado ao sabor de suas vontades, sob pena de não construir sentidos, o sentido das palavras frases e sentenças nasce, sobretudo, de um jogo constante de negociações, imagens, conflitos e confrontos; nesse caso, as palavras “perdem” sua transparência de um significado aparente para ganhar sentidos surgidos num determinado momento histórico, sob determinadas condições de produção, a partir de sujeitos inscritos num lugar de enunciação. Dessa maneira,

O discurso se constitui em seus sentidos porque aquilo que o sujeito diz se inscreve em uma formação discursiva e não outra para ter um sentido e não outro. Por aí podemos perceber que as palavras não têm um sentido nelas mesmas, elas derivam seus sentidos das formações discursivas em que se inscrevem. (ORLANDI, op.cit.:45)

Ainda que polêmico, o conceito de formação discursiva é fundamental em AD para se estabelecer pressupostos de construção de sentidos num texto, na medida em que articula uma rede ideológica de significações:

 

Uma formação discursiva pode ser vista como um conjunto de regras que determina o que pode e deve ser dito a partir de certa posição na vida social, e as expressões têm significado apenas em virtude das formações discursivas em que ocorrem, mudando de significado quando são transportadas para uma outra. (EAGLETON, 1991:173)

 

Constitui, portanto, uma “matriz de significados” ou um sistema de relações lingüísticas dentro do qual são articulados processos sígnicos efetivos e discursos (leituras) em interação. Toda formação discursiva se relaciona a uma formação ideológica, que contém práticas lingüísticas e pragmáticas na construção de uma realidade ou de “verdades”. 

 

Ninguém pode sair por aí dizendo o que queira e entenda seja necessário dizer. Tudo a ser dito nasce de um determinado papel, de um determinado lugar, de uma conjuntura sócio-histórica que autoriza um dizer e que move os sujeitos para além do que é dito. Tudo o que se diz dialoga com um não-dito, dialoga com um outro, com uma memória, com algo que poderia ser dito e não se materializou, ou se materializou de uma maneira e não de outra. Uma formação discursiva monitora as fronteiras de sentido em um texto à medida em que estabelece configurações necessárias, excludentes, conflitantes de variados discursos dentro de um texto.

 

4. A LEITURA: RECONSTITUÇÃO LINGÜÍSTICA E DISCURSIVA DE SENTIDOS

Para a análise de um texto segundo pressupostos teóricos e mecanismos metodológicos em AD, proponho etapas sucessivas, baseadas em uma constituição do corpus, evidenciando: a) uma descrição do  dito, dos apagamentos, dos implícitos, de um não dito; b) uma conjuntura sócio-histórica imediata dos acontecimentos; c) uma avaliação das inserções ideológicas em que se encontram os sujeitos em diálogo no texto. Essa metodologia é consonante com o que diz ORLANDI (op.cit.:80),

 

Assim, a construção do corpus e a análise estão intimamente ligadas: decidir o que faz parte do corpus já é decidir acerca de propriedades discursivas. Atualmente, considera-se que a melhor maneira de atender à questão da constituição do corpus é construir montagens discursivas que obedeçam critérios que decorrem de princípios teóricos da análise de discurso, face aos objetivos da análise, e que permitam chegar à sua compreensão. Esses objetivos, em consonância com o método e os procedimentos, não visa a demonstração mas a mostrar como um discurso funciona produzindo (efeitos de) sentido.

 

O título do texto “Lei das emendas vaginais” é surpreendente na medida em que lida com um valor polissêmico da palavra emendas: que se refere, explicitamente, como o texto deixa bem claro, a uma proposta de emenda constitucional que veta o aborto à gravidez resultante de estupro, apresentada por um deputado na Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados e, implicitamente, a uma manobra de homens na tentativa de domínio da condição sexual e do corpo das mulheres, como sugere a predicação emendas vaginais.

 

Um valor polissêmico, inerente e associado à própria língua, mexe com uma rede de filiações de sentido a que as palavras pertencem. Por isso, foi possível esse jogo de ambigüidades com o título do texto: não há discursos que não se relacionem com outros, em que outros não estejam embutidos neles próprios; há uma simultaneidade de movimentos de sentido a que se filiam os discursos. Estabelece-se, assim, uma relação direta e franca entre a tramitação da emenda na Câmara dos Deputados e o domínio de um certo tipo de discurso nessa instância de poder, questionando o lugar das mulheres na sociedade e a percepção que essa instância de poder tem sobre elas.

 

¨     Considerando-se a ambigüidade quase literária do título, o texto instaura um conflito entre o conteúdo da emenda e as conseqüências que ela acarretaria à vida das mulheres; a autora do texto, portanto uma mulher, propõe essas mesmas conseqüências, num exercício ficcional, aos homens que querem aprová-la no Congresso:

 

a)   Que os homens sejam violentados (estuprados, dominados, submetidos a posições subalternas, violados sexualmente), assim como as mulheres, vítimas desse tipo de crime.

 

b)  Que os homens sintam na carne a humilhação e a repulsa de uma gravidez indesejada, não só isso, como também, involuntária.

 

 

¨     A tentativa de aprovar uma emenda como essa se resume a uma visão do corpo das mulheres como uma propriedade dos homens, sujeito a manipulações, e uma lei deve monitorar o corpo como uma propriedade:

a) O estupro é um acidente, e a pessoa (portanto, uma mulher) deve arcar com isso.

b) A defesa contra uma gravidez indesejada e involuntária é uma questão de ideologia, uma opinião.

 

c)   A mulher deve levar a gravidez (resultante de estupro) adiante, na condição de depositária.

¨     A proposta veiculada na emenda é, não somente, obsoleta, reacionária e retrógrada, como também hipócrita, quando, num país como o Brasil, aqueles que possuem poder e dinheiro gozam escancaradamente de muitos privilégios, manipulam, compram, subornam, enquanto às mulheres pobres, que não têm acesso a direitos elementares, caberiam arcar com conseqüências, inclusive conseqüências de uma gravidez oriunda de uma violência como um estupro:

 

a) Imagine se a filha de um banqueiro ou de um deputado vai carregar na barriga um feto originário de estupro?

 

b) Imagine também se o pai deputado não vai levá-la imediatamente à mais cara das clínicas da cidade, para raspar de seu útero de princesa o pedaço de carne indesejável?

 

c)   O filho será mais uma vez da favelada.

 

¨     Os homens brasileiros que pensam dominar, possuir e manipular o corpo das mulheres com propostas como essa, deveriam ser submetidos a um tipo de educação (chicote), semelhante à recebida pelos homens europeus:

 

a)   Ser submetidos ao chicote das feministas européias.

 

b)  E isso significa, por exemplo, fazê-los urinar, por domínio cultural, sentados no vaso, como fazem as mulheres.

 

Parte dos enunciados estão distribuídos no texto em modo verbal imperativo, como a seqüência de verbos no primeiro parágrafo (estuprar, enfileirá-los, dominá-los, amarrá-los...), pois a proposta veiculada na emenda é algo tão surreal e ao mesmo tempo devastador, porque imperativo e nocivo, para a vida das mulheres, que merece, por parte da interlocutora, algo no mesmo tom. Ao se contrapor à emenda proposta na Câmara com enunciados desse tipo (imagine se..., alguma dúvida?, esses homens brasileiros deviam ser tratados...) a autora cria um jogo de imagens semelhante àquelas que os deputados propõem sobre as mulheres: se há sentidos que estabelecem vítimas e dominados numa instância de poder como a Câmara dos Deputados, há sentidos contra-ideológicos numa página de jornal tão poderosa, também, como o veículo em que escreve a escritora: e a língua é o lugar em que se instauram esses conflitos, capaz de fazer frente a variados tipos de discurso. Nesses termos, um texto é atravessado por embates sociais de toda ordem, uma palavra responde/conflitua com uma outra palavra, assemelhando-se a verdadeiras batalhas em torno de lugares sociais e de instâncias públicas de poder.

 

¨     Essa proposta dos deputados propõe e veicula uma visão subalterna das mulheres, como se elas tivessem donos, sujeita-as a uma condição de animal ou de objeto:

 

a)   As mulheres possuem “um instinto” (algo inerente aos animais) materno, que é superior a tudo.

 

b)  A Comissão de Constituição e Justiça objetiva enxergar as mulheres como vacas, galinhas, ou cobras, depositárias de um líquido (feto) masculino sem ao menos terem a condição de optar por isso.

 

c)   São homens, a maioria (6 mulheres e 11 homens), a decidir o destino do corpo das mulheres; lembrando-se de que, no Brasil, a população feminina é superior à masculina.

 

É evidente a construção desses sentidos e o conflito que eles estabelecem. Os atributos relativos às mulheres são tão preconceituosos, que seria inimaginável em países de primeiro mundo, na Europa e na América do Norte, sem uma mobilização ampla de movimentos feministas. As predicações sobre as mulheres são veiculadas pelos deputados com termos que as igualam a animais: instinto materno, condição de depositária; como também, não questionam o papel dos homens violentadores: a pessoa (a mulher) tem que arcar com isso (um estupro). A autora, contudo, não questiona também a posição dessas deputadas que fazem parte da Comissão de Constituição e Justiça, que estariam sendo cúmplices (?) de uma manipulação contra, sobretudo, elas mesmas e as mulheres pobres: em suas palavras, retrógrada, reacionária, obsoleta, hipócrita.

5. FORMAÇÃO DISCURSIVA: FLUXO CONTÍNUO DE SENTIDOS

 

O conceito de formação discursiva (FD), apresentado logo acima no item 3, coloca em relação embates ideológicos materializados lingüística e discursivamene. Como o texto da escritora põe em cena discursos em que forças contraditórias conflituam num jogo de poder, estabelecendo imagens que os interlocutores têm de si e do outro, assemelhando-se a defesas e a ataques, as lutas ideológicas que se instauram no texto não poderiam ser captadas pelo conceito de tessitura ou de unidade com começo, meio e fim. Digamos que esse é só o começo de um debate, que pode tocar vários homens-leitores e muitas mulheres-leitoras, estabelecer cadeias de defensores ou detratores das idéias da autora, aprofundando a rede de repercussões ou de silenciamento de sentidos. Uma palavra mobiliza sentidos e posições, instaurando novas e surpreendentes realidades.

Não é possível optar por uma realidade movimentada por um texto sem levar em consideração uma cadeia de hipóteses variadas que ele pode despertar, ao mobilizar essa rede de sentidos. O texto “Lei das emendas vaginais” pode se instaurar no universo da denúncia de uma posição machista, como se caracterizar como uma construção ideológica que defende o aborto em determinadas circunstâncias, como demonstrar que determinados homens que ocupam o poder querem legislar sobre o corpo de mulheres, como mobilizar alianças contra o projeto em pauta, como também demonstrar que direitos devem ser sempre vigiados senão corre-se o risco de perdê-los nas circunstâncias dos embates sociais, como averiguar que as religiões cristãs instituem um lugar submisso e subalterno às mulheres na sociedade, como movimentar sentidos punitivos em relação ao comportamento de homens brasileiros.

Assim, um discurso mobiliza tantas representações, e somente aquelas, que não é possível considerá-lo homogêneo, funcionando automaticamente, tratando de uma temática monoliticamente. Muitos problemas de composição textual em sala de aula compreende queixas dos professores como: “você fugiu do tema”, ou “o seu texto é uma salada-de-fruta”, ou “não há um eixo temático” ao qual  seu texto se filie. Tais falas apontam para a heterogeneidade discursiva inerente a qualquer prática construtiva de textos e suas possibilidades de cobrir de maneira linear o tema a que se propõe discutir.   

 

Não se trata de que o texto em questão seja ambíguo ao apontar para essas variadas hipóteses de construção de sentido, trata-se dos efeitos de sentido que pode dele usufruir um público-leitor. São forças confrontadas com outras numa conjuntura ideológica determinada. Nesses termos, constitui-se de um complexo de atitudes e de representações sociais possíveis, que ultrapassam relações individuais e se instauram nos conflitos das relações de poder, que são sociais, pois dizem respeito a interesses da sociedade como um todo. Os quadros apresentados abaixo articulam discursos entre fronteiras de formação discursiva mobilizadas por possíveis leituras do texto. Trata-se de uma representação didática, dentre outras possíveis.

      

5.1 Um conflito de gênero, em que um certo tipo de discurso quer estabelecer o lugar e a posição social das mulheres, na maioria da vezes contra as suas próprias vontades:

 

FD

FD - HOMENS

FD – MULHERES

“O estupro é um acidente.”

Ao invés de associar a condição de crime a uma violência como essa, os deputados em questão associam-no a um acidente.

Como nenhum homem na cultura brasileira sofrerá esse tipo de violência (estupro é uma palavra usada somente em relação a crime contra mulheres), percebe-se que eles não têm a dimensão da dor de uma violência como essa.

“Ninguém (as mulheres) pode por ideologia ou opinião privar alguém do direito à vida.”

As mulheres são referenciadas como “ninguém”, e a defesa dos seus corpos é tratada como ideologia ou opinião, e não como um direito.

Há um “esquecimento” nessa frase do deputado Philemon Rodrigues: não se trata de privar alguém da vida, trata-se de deixar crescer num útero um feto originário de uma violência.

“O instinto materno é superior a tudo.”

Os homens não concebem a maternidade, inerente às mulheres, então é conveniente  a construção de determinados efeitos de sentido machistas, associando-a a um instinto. 

Quem diz isso se “esquece” de que a maternidade é uma construção social e cultural, e não instintiva na sociedade humana. Naturalizar a maternidade é uma regressão a um estágio animal primitivo.

“A mulher deve levar adiante a gravidez na condição de depositária.”

“Condição de depositária” é tornar um ser humano um objeto.

Quem deve decidir sobre o seu próprio corpo?

 

Percebe-se um senso comum sobre essa noção de um ponto de vista poderoso: as relações de gênero encontram na língua seu ideal de significação. Não é tanto constatar quão verdadeiras são essas noções, mas observar como elas vieram a se tornar um senso comum, ao cristalizar as relações de gênero em sociedade como se fossem algo natural.

 

 

Gênero não é algo com o qual se nasce ou algo que se tem: é tudo aquilo que delineia um comportamento. É ideológico por “natureza”, dado que é uma imagem construída pela vida em sociedade para delimitar determinadas relações e vivências: institui determinados papéis. Enquanto o sexo é uma categoria biológica baseada no potencial reprodutivo, inerente a todo agrupamento humano, o gênero é uma elaboração social do sexo biológico, que varia de sociedade para sociedade, de homens para mulheres e das representações nas instâncias de poder.

 

 

Há graus variados de tolerância comportamental entre homens e mulheres baseados na concepção de gênero construída pelos agrupamentos humanos. Portanto, não se desdobra de uma biologia ou de uma predisposição individual a um certo tipo particular de pessoa ou de personalidade - não é uma propriedade individual. O gênero é um “arranjo” social e o gênero individual é construído nos limites da ordem social.

 

 

As noções de gênero estão por toda parte. Consistem em modelos de relacionamento simultaneamente estruturados que definem masculinidade e feminilidade e regula as relações das pessoas em sociedade. Está profundamente enraizado em todos os aspectos sociais: nas instituições, no espaço público, na arte, na maneira de se vestir, nos discursos e, sobretudo, na linguagem. E essas conexões e situações estão ligadas umas às outras em configurações estruturadas, sobretudo pelo discurso. Como as falas citadas foram as de homens e o contra-discurso está presente pela voz de uma mulher, essa formação discursiva, a que didaticamente é referida aqui como a de gênero, é a leitura de sentido que emerge em primeiro plano no texto em análise.

 

 

5.2 Um conflito entre posições religiosas cristãs e concepções de um Estado laico sobre o aborto:

 

 

FD

FD - CRISTÃ

FD - LAICA

“São evangélicos: protestantes ou crentes...”

Quer-se, nesses termos, instaurar leis que privilegiem posições religiosas cristãs como posições de Estado, e submetê-las e todos os cidadãos, mesmo os não religiosos.

Ao associar a religião cristã a posições contrárias ao aborto, o texto remete a uma concepção histórica dessas religiões sobre  esse tema.

“São católicos praticantes...”

A posição de um certo segmento entre os católicos argumenta que só Deus tem o direito de “dar” e de “tirar” a vida de alguém. 

O texto assume que há, não somente uma concepção religiosa contra o aborto, mas  também uma espécie de fundamentalismo religioso militante no Congresso Nacional.

São os religiosos cristãos os que “encabeçam a corriola pelo veto ao aborto.”

Evidencia-se que cristãos, ao ocupar as instâncias de poder, fragmentam o Estado em nome de suas concepções ideológicas. 

Ao chamar católicos,   protestantes e crentes de corriola, termo pejorativo que remete a complô, a autora se põe ideologicamente contra um tipo de concepção religiosa que quer se apossar do Estado como instituição particular.  

 

           

 

 

5.3 Concepções ideológicas, manifestadas por posições políticas conflitantes entre uma militância de “direita” e uma outra, de “esquerda”, correndo-se  risco de esquematismos redutores em relação a esses termos:

 

FD

FD - DIREITA

FD – ESQUERDA

Deputados:

Philemon Rodrigues 

(PTB-MG)     e 

Severino Cavalcanti

 (PFL-PE)

O histórico desses partidos e a atuação desses Deputados no Congresso Nacional sempre se associaram a posições políticas assimiladas pela cultura política brasileira como posições de direita.   

Ao questionar de forma incisiva as concepções políticas expostas por esses deputados na cena pública brasileira, o pensamento da autora se assemelha a concepções de esquerda. 

 

            Os esquemas apontados acima não pressupõem encerrar as formações discursivas possíveis na construção de sentido do texto em análise; antes, apontam procedimentos didáticos que podem iluminar alguns pontos na abordagem de um certo efeito de sentido em sua heterogeneidade sígnica.

 

A recorrência a uma ideologia confrontadora, militante, é uma saída buscada pela autora que mobiliza o leitor a se posicionar sobre a questão. Ninguém consegue ficar indiferente ou neutro a um discurso traçado dessa maneira. Para construir esse diálogo, é preciso confiar na verossimilhança das citações dispostas ao longo do terceiro e do quarto parágrafos. Será que os deputados disseram isso mesmo? Como saber que o que foi dito, foi dito dessa e não de outra maneira? Quais são as razões a as conseqüências de um discurso citado? Será que a autora descreve (posicionando-se contra) ou forja uma realidade para defender determinados valores? Pois a autora se apóia em fragmentos de um dito pelos deputados para construir a sua argumentação. Sobre o discurso citado e suas funções na construção de um texto, assim se expressa MAINGUENEAU (1989:90):

O sujeito que enuncia a partir de um lugar definido não cita quem deseja, como deseja, em função de seus objetivos conscientes, do público visado, etc. São as imposições ligadas a esse lugar discursivo que regulam a citação.

“Regular a citação” significa dizer que a palavra do outro não pode ser apropriada sem conseqüências, como a perda de autenticidade por parte do enunciador citante ou como também a sua perda de autoridade. Em jogo estão a credibilidade moral do enunciador, como também a credibilidade legal do veículo (nesse caso, o jornal) em que o discurso citado aparece. Nesses termos, o lugar discursivo regula a citação na medida em que espera-se de um público-leitor uma confiança crítica em relação ao que é dito, onde é dito, quem diz o quê e como isso é dito. Pelo alcance e pela qualidade do jornal em que o discurso citado aparece, de fato os deputados disseram o que disseram. Sabe-se que o que foi dito foi daquela maneira pois há um diálogo da autora com uma outra fonte do próprio jornal (conforme reportagem de Daniela Pinheiro, 02/11, pág. 3-7).

 

Para a tarefa de construção discursiva, um enunciador lança mão de variadas estratégias de estruturação textual, como o intertexto e a intertextualidade, o diálogo que um texto mantém com outros, com outras vozes:

Por intertexto de uma formação discursiva, entender-se-á o conjunto dos fragmentos que ela efetivamente cita e, por intertextualidade, o tipo de citação que essa formação discursiva define como legítima através de sua própria prática. Além dos enunciados citados há, pois, suas condições de possibilidade. (MAINGUENEAU, op.cit.:87)

 

As condições de possibilidade da citação no texto em análise se inscrevem num debate público sobre os conflitos levantados pelo texto. Tais condições preconizam a língua como uma atividade social, pois o que foi citado, o foi por um político, alguém que se utiliza da palavra em nome de uma sociedade, instaurando deveres e direitos extensivos e que afetam a todos os cidadãos. Como é a vida de pessoas de toda uma comunidade que está em negociação numa instância pública de poder como é uma Câmara de Deputados, o discurso citado  se insere numa esfera  de  discurso público que tende a se dirigir  a  todos.

 

A linguagem, portanto, é uma atividade na medida em que:

(...) é um campo de produção de significados no qual os diferentes grupos sociais, situados em posições diferenciais de poder, lutam pela imposição de seus significados à sociedade mais ampla. O que está centralmente envolvido nesse jogo é a definição da identidade cultural e social dos diferentes grupos, o poder que cada um desempenha sobre o outro e sobre suas próprias construções lingüísticas. (RIOS, 2002:413)

 

            Na seqüência do enunciado da citação do quarto parágrafo, uma palavra está propositadamente destacada entre aspas: ‘depositária’. Como um texto se insere numa cena enunciativa, atravessada por antecipações e reconstruções de todo tipo, como nada em um texto é gratuito, tudo se articula na construção de sentidos necessários à função da língua como uma atividade humana em negociação num espaço público, as aspas nessa palavra conferem-lhe um certo estranhamento: a enunciadora se surpreende com a audácia, com a ousadia tamanha do deputado ao associar a palavra ‘depositária’ à pessoa da mulher. A palavra aspeada é retomada logo no parágrafo seguinte em tom de indignação irônica:

Estufas, silos, depósitos de sementes, chocadeiras fantasiadas de Virgem Maria, sem vontade própria nem livre-arbítrio. É assim que os homens da Comissão de Constituição e Justiça (formada por 11 homens e seis mulheres) enxergaram a mulher para tomar sua decisão: como galinhas, vacas ou cobras.

 

A palavra aspeada tem um valor semântico que representa implícitos e prevê funções sígnicas. Essas funções podem distanciar o narrador/enunciador do sentido previsto, como a dizer que a palavra tem origem no outro e não no meu discurso, como também cumprir estratégia de ressignificações como espanto, ironia, desprezo, dentre outras.

 

Nesses termos, observe-se o que diz Maingueneau sobre as aspas e as funções desse recurso na construção sígnica de um discurso, tanto na entrada citada na manutenção, inflexão e reordenamento de sentido quanto no impacto que ela tem para o leitor:

As aspas constituem antes de mais nada um sinal construído para ser decifrado por um destinatário. O sujeito que utiliza as aspas é obrigado, mesmo que isto não esteja consciente, a realizar uma certa representação do leitor e, simetricamente, oferecer a este último uma certa imagem de si mesmo, ou melhor, da posição de locutor que assume através dessas aspas. (MAINGUENEAU, op.cit.:91)

 

As palavras dos deputados, da enunciadora, dos intertextos e na vida dos sujeitos-leitores ultrapassam os limites de posições ideológicas pessoais e se enquadram em funções discursivas.

 

Não são pessoas, sujeitos psicológicos em jogo no uso da linguagem: são funções, posicionamentos sociais em confronto. Assim como os políticos em questão no texto estão falando em nome de um público, legislando em nome de um mandato licenciado por um conjunto social de homens e mulheres, a palavra (recepção) dos leitores e da enunciadora também é uma palavra funcional pois se inscreve em uma capacidade social de indignação, confronto, defesas, e conta com uma representação de sujeito-leitor, de sujeito-vítima, de sujeito-cúmplice, de sujeito-poder, dentre outros.

 

O sujeito só coincide consigo mesmo em parte: ele é atravessado pela linguagem e pela história, e, por isso, apresenta uma contra-palavra. Não é um alguém exterior à língua que se distancia dos textos/discursos com a finalidade de traduzir-lhe ( produzir) os sentidos: a enunciadora do texto em debate é ela mesma atravessada pelo seu próprio discurso e sofre os discursos dos deputados citados, por isso se dirige ao leitor-posição dessa e não de uma outra maneira. A condição de sujeito que é ela é um efeito de linguagem constitutivo de sentidos.

 

O lugar de enunciação conta com adesões: tanto os deputados contam e confiam em que a sua palavra representa interesses de milhares de pessoas, assim como a enunciadora conta representar interesses de mulheres, milhares delas, ela própria na condição de uma.

 

Os enunciados e enunciadores em cena no texto em análise lidam com uma memória discursiva: é um saber que torna possível (e legítima) uma enunciação. A tomada de uma palavra lida com um já-dito, comportamentos e valores presentes na vida das pessoas em sociedade. Senão, caberiam as perguntas: quem é esse deputado para pensar assim sobre as mulheres? Quem é ela para confrontar uma palavra de alguém que representa tantas pessoas? Quem são esses leitores para os quais se dirigem esses deputados e essa enunciadora? As respostas a essas perguntas já estão implícitas nos jogos de sentido construídos pelo texto.

 

Assim como as palavras dos deputados representam interesses (é uma palavra-função), o seu mandato e a renovação dele podem ser possíveis ao defender essas posições por contar com uma representação que legitima um dizer; assim também a palavra da enunciadora lida com uma representação, com uma imagem das mulheres já dita, já sentida, já representada em algum lugar social, distante no tempo e no espaço discursivo e social: as palavras da enunciadora estão dialogando, por exemplo, com as palavras de outras mulheres que fizeram valer esse direito conquistado por elas desde 1940.

 

Todo dizer, portanto, remete a, dialoga com, introduz um pré-construído. A constituição de um discurso só é possível por articular dois eixos: uma memória discursiva, as relações de historicidade situacionais e contextuais que fazem emergir os sentidos, e uma atualidade discursiva: percebe-se que, se essa “lei das emendas vaginais” for aprovada no Congresso, afeta um presente e um futuro das mulheres. Em verdade, esses conflitos (que envolvem aborto, estupro, homens, mulheres e poder) já estavam em pauta ainda antes de os deputados e a enunciadora se posicionarem, como emerge no texto. Eles se tornaram públicos e foram ampliados pela iminência de se aprovar (reverter) uma lei e pela repercussão que um jornal tão poderoso como a Folha de S. Paulo tem na sociedade.

 

6.   CONSIDERAÇÕES FINAIS

 

            Este texto é uma leitura possível, à luz de pressupostos teóricos da Análise de Discurso, de um outro texto “Lei das emendas vaginais”, uma crônica publicada em jornal. É uma abordagem que não lhe esgota possibilidades de construção de sentido, pelo contrário: abre novas possibilidades de ser-lhe apresentada uma nova contra-palavra.

 

            Ao longo das discussões foi possível constatar que a idéia de texto como unidade e como tessitura é incapaz de cobrir as variadas hipóteses de significação passíveis de serem feitas. É preciso, portanto, relacionar o material lingüístico a situações discursivas e comunicacionais que estão ao redor e fora das relações semânticas e sintáticas: um texto sempre demanda um novo texto para “ficar de pé” em sentido pleno. Durante o percurso de leitura, constataram-se variadas hipóteses interpretativas todas possíveis e todas capazes de serem definidas dentro do próprio texto. Tais hipóteses foram construídas e constatadas pelos conceitos de formação discursiva, sujeito e formação ideológica. As formações discursivas como fronteiras de sentido ajudaram a dar variadas dimensões sígnicas presentes no texto de Marilene Felinto: trata-se da defesa do aborto em determinadas circunstâncias?, trata-se de uma denúncia de uma manobra conservadora-cristã no Congresso Nacional?, trata-se de uma vingança feminista contra homens machistas e insensíveis?, trata-se de uma crítica a uma visão perturbadora e redutora da condição das mulheres?, é um texto-militante?

 

Pode ser tudo isso, não pela incapacidade de o texto ser uma unidade temática, ou porque não há uma coerência interna, ou porque ele seja ambíguo em sua construção. Pode ser “tudo isso” porque o discurso é construído por variadas estratégias de criação e interpretação: variadas vozes atravessam um discurso (é a polifonia), interdiscursos e intertextos compõem os fios dessa rede de significações que é um texto, as posições e os sujeitos em interação são múltiplos, por vezes antagônicas, e essa heterogeneidade instaura os conflitos.

 

Uma análise lingüística que negligencie essas apreciações e essas interpretabilidades possíveis corre o risco de não levar em conta as multiplicidades de sentido e as riquezas sígnicas inerentes a qualquer discurso. E mais, negligenciar essas múltiplas capacidades interpretativas não é algo gratuito: é também uma opção ideológica que neutraliza aspectos relevantes da construção de sentidos.

 

7.   REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

 

BAKHTIN, M. (Voloshinov-1929). Marxismo e Filosofia da Linguagem. (Trad. De M. Lahud e Y. F. Vieira), São Paulo, Hucitec, 1979.

BRANDÃO, Helena H. Nagamine. Introdução à Análise do Discurso. São Paulo, Editora da UNICAMP, 1995.

EAGLETON, Terry. Ideologia. São Paulo, Editora da UNESP, 1991.    

MACHADO, Rosa Helena Blanco. Interpretação e Análise do Discurso: estudo de um texto específico. Salvador, In: Revista da FAEEBA, nº 9, jan./jun., 1998.

MAINGUENEAU, D. Novas tendências em Análise do Discurso. São Paulo, Editora da UNICAMP, Pontes, 1989.

ORLANDI, Eni P. Análise de Discurso: princípios e procedimentos. São Paulo, Pontes, 2002.

RIOS, Jane Adriana Vasconcelos Pacheco. A linguagem verbal e suas relações de poder: a interação lingüística como construto de resistência. Salvador, In: Revista da FAEEBA, nº 18, jul./dez. 2002.