terça-feira, 25 de maio de 2021

Os nossos bunkers em casa



Vi ontem um filme que tratava da Guerra Civil Espanhola (1936-1939) e de seu desdobramento sombrio, a ascensão do ditador general Francisco Franco, que governou o país ibérico por mais de 30 anos. 

O filme intitulado, em português, “A trincheira infinita” (“La trincheira infinita”, 2019) se dedica aos chamados “toupeiras”, perseguidos políticos comunistas e anarquistas que se escondiam em buracos dentro de suas próprias casas, por décadas, muitas vezes por mais de 30 anos, enquanto o país mergulhava no conservadorismo, na morte de milhares de civis, em nome do anticomunismo e da ditadura. A Espanha vivenciou, por décadas, uma torrente de violências medievais contra os direitos humanos e a explosão da pobreza e da corrupção.

Muitos espanhóis hoje relembram nostalgicamente do general Franco, devido a uma fase final de prosperidade que se deu na década de 1970, quando a Espanha contava com apoio dos Estados Unidos para seu desenvolvimento econômico, num contexto de guerra fria e da necessidade geopolítica de fortalecimento dos países capitalistas, diante da ameaça socialista soviética. Países como Alemanha, Itália, Espanha e Portugal, que tiveram seus “malvados favoritos” (respectivamente Hitler, Mussolini, Franco e Salazar) geraram essa falsa ideia de que ditadores são necessários para o fortalecimento da economia, recheado com discurso nacionalista e xenofóbico. 

Com suas heranças colonialistas e imperialistas esses países possuem o background do massacre de milhares de povos e nações e atualizam isso, hoje,  na adoção de políticas anti-imigrantistas, um investimento contra o movimento de refluxo daqueles que foram vítimas de suas histórias expansionistas e de espoliação, por mais de três séculos. Africanos, latino-americanos e asiáticos ainda continuam sendo barrados nos aeroportos de Madrid, Lisboa, Roma e Berlim, nesse reflexo terrorista das políticas de imigração. A história se repete, mas, adaptando Marx, agora como a farsa do ultranacionalismo e das investidas da extrema direita.

A Espanha, por exemplo, possuía colônias até os estertores do franquismo em 1975. Seu discurso nacionalista se ergueu sobre a morte de milhares de opositores do general Franco, notadamente, civis espanhóis, que acreditavam em outros rumos da história. Se ergueu sobre a mortes daqueles que também defenderam seus povos e suas riquezas nas colônias. É um país rico, mas também um barril de pólvora de movimentos independentistas (Bascos e Catalães), uma resposta ou uma reedição do nacionalismo doentio. É um país rico, mas que enfrenta  uma explosão imigratória jamais vista (com milhares de africanos esquálidos, chegando a nado no litoral norte do país), resultado também da empreitada criminosa do colonialismo espanhol. A Espanha invertebrada por sua história (para usar a imagem do filósofo Ortega y Gasset) jamais conseguirá unir seus concidadãos em um projeto comum e ainda pagará caro com os movimentos dissonantes de ressentimentos seculares.

A imagem cinematográfica, meticulosamente trabalhada com cores profundas, de um revolucionário espanhol, barrigudo e velho, em sua trincheira infinita, com medo de sair às ruas e ser assassinado por seu vizinho, caiu como uma metáfora conveniente dos dias atuais no Brasil. Cansados e com medo da morte causada por aquilo que não vemos, muitos de nós assistimos a um arremedo nonsense do discurso ditatorial e nacionalista, e em nossos bunkers, trincheiras atualizadas da classe média, envelhecemos com pouca esperança de dias melhores. 

(Marcos Aurélio Souza. Doutor em Literatura e Cultura pela UFBA. Professor Titular da UNEB)

 

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