quarta-feira, 11 de fevereiro de 2015

Pudim e Tandi


Pudim

Chamavam ele de Pudim. Diziam que era mole, meio viado, tinha um bundão e todo mundo queria comer. Nasceu filho de mãe solteira, como a maioria dos amigos da vizinhança. A única referência de pai que conhecia era  a de Tandi, parceiro das pescarias na cidade Baixa. Era um pai estranho, silencioso e carinhoso com o filho. Tandi se gabava de ter uma família certinha, mas ele não ligava. Ter pai era algo incomum, até meio engraçado.

O amigo dizia que o pai comia a mãe todos os dias, e que ele era bom comedor também. Raiva da sua mãe por não ter um pai como o de Tandi. Por isso era tão nervosa? Acostumou-se a ficar sozinho desde os 5 anos, fechava porta e ficava vendo desenhos na televisão. A mãe enfermeira plantonista sacrificava o dinheiro suado e pagava TV para ele ficar o dia todo trancado. O bairro era perigoso para criança solta. Descobriu como comprar canal pornô com o cartão de crédito da mãe, aos 11 anos, e sonhava em ser diretor de pornografia. Pensava em tornar filme de putaria algo mais artístico.

 
A mãe chegava de manhã, e dia de folga passava dormindo, comendo salgadinho e tomando Coca-Cola, sem ânimo para o filho, que saía cedo para escola com um tio polícia. A escola sofria o controle dos traficantes, porque ficava no meio de duas bocas de drogas. Então o tio ensinou como ele caminhar sozinho 500 metros, atento às balas. Era polícia, não podia chegar perto demais daquele lugar.

 O tio mudou para outro bairro e ele passou a ir sozinho para escola, 5 quilômetros de casa.

Sobrinho era um amigo coroa, aleijado de cadeira de rodas, que o chamava da porta de casa para mostrar uma coleção de gibis da Mônica. Dava um gibi para ele, em troca do favor de levar uma caixa para o pipoqueiro da escola. Ele sabia que era droga, a mãe e o tio o alertaram do risco de se tornar aviãozinho, mas a mãe era frágil demais, sob o efeito das drogas da farmácia, e o tio, apesar de profissional correto, era beberrão. Ele já se sentia homem e podia decidir sozinho seu caminho.

No segundo ano de aviãozinho ele já estava embrulhando cocaína com Sobrinho. O bairro era fértil no tráfico. A droga rolava livre e polícia não entrava. Passou 7 anos nesse serviço e aos 16 já tinha conta bancária, ajeitada por Sobrinho, e dinheiro suficiente para mudar com a mãe para uma casa melhor. Não ia entrar no projeto de assalto a banco, arquitetado pelo amigo traficante, porque não tinha coragem de usar a arma que ele sempre carregava.
 
Quando chegou com a novidade, a mãe o colocou para fora. Resmungou, chorou, foi morar com Sobrinho e se tornou mini gerente do tráfico. Lá aprendeu a ler e a fazer contas, deixou a escola. Aos 18 ficou apaixonado pela filha de Sobrinho, que trabalhava no mercado. Casaram e mudaram para um barraco descente do bairro. Pensava em arranjar emprego e deixar as drogas.

No outro dia depois de mudar, soube que Sobrinho foi morto por um chefe do tráfico e que o assassino queria saber onde ele estava, para conversar, amigavelmente. Ficou com medo, a mulher grávida. Encontrou Tandi na ladeira, conversou rapidamente com ele, foi a uma loja comprou enxoval de bebê, 100 fraldas, levou rosas de presente, com um cartão declarando amor eterno à mulher.

Foi encontrado por dois menores na rua, que entregaram uma carta de ameaça. Se ele não fosse ao encontro do chefe, a coisa ia ficar preta.

Subiu as escadas para casa, planejava mudar com a mulher para outro bairro, estava escurecendo. Dois homens se aproximaram com armas, amordaçaram e o vendaram, depois o colocaram dentro do camburão. Pediu, inutilmente, que não o matasse, era pai de família. Foi arrancado do fundo do carro, depois de 5 minutos de viagem. Ouviu vozes jovens como a dele, e a de Tandi se dizendo inocente. Levou dois tiros na nuca. Morreu, pensando na vida que não teria, depois de uma fuga, que não aconteceu.


Tandi

Era o único que tinha família na rua. O pai trabalhava de frentista e a mãe lavava roupa. Ele ficava com a mãe, carregava as trouxas e estudava. Tinha habilidade para a pesca de tarrafa e anzol, vendia o peixe no Rio Vermelho e na rua, para os transeuntes. Ajudava a família.

O pai ensinava lições de humanidade, belas lições. Mas a pobreza assolava a casa, o pai ficou desempregado e foi morar em São Paulo. A mãe ficou meio doente e meio louca de tanto trabalhar. A irmã casou e foi morar no interior e ele ficou meio que enfermeiro da mãe, vivendo do peixe pescado e das roupas lavadas, quando a mãe conseguia trabalhar.

 
Estudou e conseguiu fazer supletivo, para acabar o segundo grau logo, conseguiu tempo de um mês e fez curso de extensão em teatro na UFBA, pensava em ser ator.

 Meio-dia. Subia o morro, depois da pescaria, viu o amigo Pudim, estava triste e apressado, mas disse que ia numa loja comprar umas coisas e fazer uma surpresa para mulher. Estava apaixonado. Pena dele, pensou, tão jovem e escravo do tráfico.

 
Dois policiais abordaram, mandaram levantar as mãos, fizeram revista e inventaram-lhe um saquinho de maconha no bolso. A coisa estava feia na favela. Ele empalideceu, deu um drible nos dois e correu. Ladeira abaixo, tinha fôlego, ouviu grito do polícia dizendo que ia atirar, mas ele conhecia os becos.

 Percebeu que o bairro estava infestado de viaturas. Entrou num lixão, mas uma viatura percebeu o movimento. O policial alto e forte esfregou a cara dele no lixo, deu duas coronhadas, a segunda na perna que quebrou. A dor lancinante e a falta de ar o fez desmaiar por alguns minutos. Botaram no fundo do carro.

Lembrou do pai, sonhou com a mãe, estavam felizes. Na sua imaginação, estava formado em Teatro. Sonhou com a única peça que conseguiu ver no Castro Alves. Havia negros felizes pulando, e ele se sentia contemplado, ia ser famoso como o ator Lázaro Ramos. Imaginou que casaria com a mulher mais bonita e teria filhos bonitos. Dois olhos se aproximavam, no seu delírio, e olhavam para dentro dele, eram olhos de mulher, pareciam os de sua mãe.

A porta abriu, acordou do sonho, viu tudo, porque não o tinham vendado direito. Muitos meninos numa área erma do bairro, alguns ele conhecia, metidos com a bandidagem, gente que botava o terror no bairro, tão pobres e pretos como ele, outros azarados inocentes não sabiam o que estava acontecendo, deu um grito dizendo que era inocente. Depois, uma saraivada de tiros, três na sua cabeça e pescoço. Tombou, pensando no almoço que ele não teria, uma moqueca com dois enormes bagres.

Bagre era também o peixe preferido da mãe.

sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Itabuna vive imersa num eterno velório

 
O cortejo dos desesperados, uma leva de gatos pingados e mulambentos, calçados de sandália de dedo de feira, arrasta-se conduzindo o defunto ladeira acima. Repousa no caixão, olhos cerrados e boca em agonia, mais um garoto de 16 anos, apunhalado a facadas na periferia de Itabuna. O velório, numa noite longa, é interrompido vez ou outra por um choro tímido. A sensação de abandono sufoca o ambiente, e flagra a ausência de qualquer autoridade pública – um delegado, o prefeito, um promotor, um vereador, nada nem ninguém que ouça aquela história e não a deixe esvair-se em vão. 

Aquela história termina em melancolia, como a de centenas de outras e codifica a falência completa de organização social mínima. É o décimo sexto rapaz assassinado, em menos de dois meses, na cidade que ostenta a macabra cifra de mais violenta da Bahia – a Nigéria do Boko Haram é aqui. Um dilúvio ou uma bola de fogo vinda de um céu com aquelas nuvens de fumaça enegrecida de campos de concentração resolveriam a inação da classe média da outrora capital do cacau: Itabuna precisa morrer de uma certa forma (na verdade, já está morta, pois lidera o macabro ranking no Brasil com o maior índice de assassinato de jovens em cidades com mais de 200 mil habitantes – a Bahia ocupa o posto de segundo estado no país nesse ranking) para que as suas cinzas modelem um novo começo, novas consciências – a frieza de conviver com índices de violência atormentadores e se fechar num silêncio cúmplice é atitude de gente-defunta. A violência se intensifica e se cronifica por incidir sobre as classes mais desassistidas e periféricas, entregues à própria sorte.

A bola de fogo poderia começar abatendo certeira, rápida e lancinante as ideias ensinadas nos Departamentos de Direito e de Filosofia da UESC. Aliás, o governo do Estado deveria interditar a UESC – ou lacrar aquilo ali, emulando o fechamento da tampa do caixão de dezenas de jovens que morrem a faca, a bala, a marteladas. Como é possível uma cidade estampar números obscenos de violência e uma faculdade de Direito – lugar onde a noção de Justiça deve ser ensinada e aprendida – sair impune? Para que serve investir tanto dinheiro público em um ambiente narcisista e simbolicamente violento ele mesmo? Quando vociferam por aqueles corredores a demagógica manutenção do “estado de direito”, “estado de direito” é traduzido aqui como a manutenção dos privilégios da classe média calculista no poder ali.

Se uma universidade não consegue apresentar estudos e alternativas de políticas que combatam aberrações como a violência, ela é defunta por si mesma, e já passou da hora de ser enterrada junto com o banho de sangue com o qual lava as mãos e as enxuga com seus currículos duvidosos. Desconfia-se, portanto, que onde há violência ou miséria, isso é ensinado e aprendido por gerações, e desconfia-se que a própria universidade eduque para a morte, já que ela não consegue ensinar a conviver pacificamente ou a estabelecer discussões políticas mínimas que combatam os problemas que suas comunidades pagam para ela ajudar a resolver.

Sequências de ocupantes daquela reitoria (a atual reitora aparece vestida de vermelho e maquiada na imprensa pedindo ao DENIT, socorro!, uma lombada em frente à UESC) disputam a gestão da universidade sem ser capaz de escrever uma linha sequer sobre os graves problemas da região. Não atuam como intelectuais. Estão ali para ostentar seus carros, maquiagens, perfumes caros, e não apresentam estratégias para refletir sobre o que quer que seja. A reitoria da UESC deveria promover a criação de um núcleo permanente de estudos e pesquisas sobre a violência na região. Estimular e obrigar sociólogos, pesquisadores do direito, pedagogos, economistas, filósofos, cientistas políticos a responder para a sociedade por que ganham salários públicos e se escondem em suas casas de praia, no conforto de suas vidas vazias, deixando a sociedade assolada por problemas sociais inadmissíveis, como a ausência de saneamento e a incidência de violência há décadas.

Há décadas Itabuna vive imersa em esgotos (o canal do São Caetano e o do bairro Santo Antônio são dois exemplos horripilantes) como se fossem bocas com todos os dentes podres. Carnes são vendidas a poucos metros de fezes naquelas feiras livres – se as autoridades públicas abandonam as populações a comprar víveres ao lado de fezes, isso estimula e justifica a violência numa outra ponta, já que homens e mulheres vão devolver uns para os outros o que receberam. Os investimentos públicos que conseguem escapar da gatunagem do superfaturamento e da corrupção se concentram nos bairros do centro e da classe média. A reforma da Avenida do Cinquentenário – rua central – e o calçamento de bairros como o Jardim Vitória (onde mora boa parte da gente rica) é prova da valorização dos lugares dos endinheirados.

No ano de 2834, quando essa história for contada como ela de fato ocorreu, Itabuna será lembrada como a cidade do esgoto e dos assassinatos abertos contra pretos pobres da periferia. E suas memórias serão reconstruídas a partir das histórias de diplomados funcionais em direito, economia, pedagogia e filosofia da UESC, reconhecida, então, como a universidade que promovia a morte ou, no mínimo, deixava a morte acontecer.



Braulino Pereira de Santana, doutor em Linguística pela UFBA