sexta-feira, 6 de fevereiro de 2015

Itabuna vive imersa num eterno velório

 
O cortejo dos desesperados, uma leva de gatos pingados e mulambentos, calçados de sandália de dedo de feira, arrasta-se conduzindo o defunto ladeira acima. Repousa no caixão, olhos cerrados e boca em agonia, mais um garoto de 16 anos, apunhalado a facadas na periferia de Itabuna. O velório, numa noite longa, é interrompido vez ou outra por um choro tímido. A sensação de abandono sufoca o ambiente, e flagra a ausência de qualquer autoridade pública – um delegado, o prefeito, um promotor, um vereador, nada nem ninguém que ouça aquela história e não a deixe esvair-se em vão. 

Aquela história termina em melancolia, como a de centenas de outras e codifica a falência completa de organização social mínima. É o décimo sexto rapaz assassinado, em menos de dois meses, na cidade que ostenta a macabra cifra de mais violenta da Bahia – a Nigéria do Boko Haram é aqui. Um dilúvio ou uma bola de fogo vinda de um céu com aquelas nuvens de fumaça enegrecida de campos de concentração resolveriam a inação da classe média da outrora capital do cacau: Itabuna precisa morrer de uma certa forma (na verdade, já está morta, pois lidera o macabro ranking no Brasil com o maior índice de assassinato de jovens em cidades com mais de 200 mil habitantes – a Bahia ocupa o posto de segundo estado no país nesse ranking) para que as suas cinzas modelem um novo começo, novas consciências – a frieza de conviver com índices de violência atormentadores e se fechar num silêncio cúmplice é atitude de gente-defunta. A violência se intensifica e se cronifica por incidir sobre as classes mais desassistidas e periféricas, entregues à própria sorte.

A bola de fogo poderia começar abatendo certeira, rápida e lancinante as ideias ensinadas nos Departamentos de Direito e de Filosofia da UESC. Aliás, o governo do Estado deveria interditar a UESC – ou lacrar aquilo ali, emulando o fechamento da tampa do caixão de dezenas de jovens que morrem a faca, a bala, a marteladas. Como é possível uma cidade estampar números obscenos de violência e uma faculdade de Direito – lugar onde a noção de Justiça deve ser ensinada e aprendida – sair impune? Para que serve investir tanto dinheiro público em um ambiente narcisista e simbolicamente violento ele mesmo? Quando vociferam por aqueles corredores a demagógica manutenção do “estado de direito”, “estado de direito” é traduzido aqui como a manutenção dos privilégios da classe média calculista no poder ali.

Se uma universidade não consegue apresentar estudos e alternativas de políticas que combatam aberrações como a violência, ela é defunta por si mesma, e já passou da hora de ser enterrada junto com o banho de sangue com o qual lava as mãos e as enxuga com seus currículos duvidosos. Desconfia-se, portanto, que onde há violência ou miséria, isso é ensinado e aprendido por gerações, e desconfia-se que a própria universidade eduque para a morte, já que ela não consegue ensinar a conviver pacificamente ou a estabelecer discussões políticas mínimas que combatam os problemas que suas comunidades pagam para ela ajudar a resolver.

Sequências de ocupantes daquela reitoria (a atual reitora aparece vestida de vermelho e maquiada na imprensa pedindo ao DENIT, socorro!, uma lombada em frente à UESC) disputam a gestão da universidade sem ser capaz de escrever uma linha sequer sobre os graves problemas da região. Não atuam como intelectuais. Estão ali para ostentar seus carros, maquiagens, perfumes caros, e não apresentam estratégias para refletir sobre o que quer que seja. A reitoria da UESC deveria promover a criação de um núcleo permanente de estudos e pesquisas sobre a violência na região. Estimular e obrigar sociólogos, pesquisadores do direito, pedagogos, economistas, filósofos, cientistas políticos a responder para a sociedade por que ganham salários públicos e se escondem em suas casas de praia, no conforto de suas vidas vazias, deixando a sociedade assolada por problemas sociais inadmissíveis, como a ausência de saneamento e a incidência de violência há décadas.

Há décadas Itabuna vive imersa em esgotos (o canal do São Caetano e o do bairro Santo Antônio são dois exemplos horripilantes) como se fossem bocas com todos os dentes podres. Carnes são vendidas a poucos metros de fezes naquelas feiras livres – se as autoridades públicas abandonam as populações a comprar víveres ao lado de fezes, isso estimula e justifica a violência numa outra ponta, já que homens e mulheres vão devolver uns para os outros o que receberam. Os investimentos públicos que conseguem escapar da gatunagem do superfaturamento e da corrupção se concentram nos bairros do centro e da classe média. A reforma da Avenida do Cinquentenário – rua central – e o calçamento de bairros como o Jardim Vitória (onde mora boa parte da gente rica) é prova da valorização dos lugares dos endinheirados.

No ano de 2834, quando essa história for contada como ela de fato ocorreu, Itabuna será lembrada como a cidade do esgoto e dos assassinatos abertos contra pretos pobres da periferia. E suas memórias serão reconstruídas a partir das histórias de diplomados funcionais em direito, economia, pedagogia e filosofia da UESC, reconhecida, então, como a universidade que promovia a morte ou, no mínimo, deixava a morte acontecer.



Braulino Pereira de Santana, doutor em Linguística pela UFBA

Um comentário:

  1. Meu amigo, vi a postagem do seu blog no grupo da UESC, e fiquei me fazendo uns questionamentos desde aquele momento, já que serei um futuro estudante de direito daquele local.
    Bom, primeiramente, venho aplaudir suas criticas perante a omissão de uma parte em geral da população e estudantes da região sobre a problematica da violencia, a qual assola Itabuna-BA. Você tem um otimo senso critico e belas palavras...
    Sua indignação é tamanha que o doutor em linguistica voscifera contra a universidade , e inclusive, de forma agressiva e sem um embasamento, diz que os estudantes que passam por lá, saem com curriculos duvidosos...Como assim? Uma universidade conceituada que apresenta talentos desde sempre em suas cadeiras ... Você foi agressivo nesse seu comentario e em propor o fim daquela universidade (Sociologicamente, a violencia é inerente ao ser humano, e ela toma as faces da qual a situação permite, no seu caso, a violencia se manifesta em ataques verbais e desejos negativos, enfim)
    Vamos aos questionamentos, fiquei me perguntando como seria um projeto de estudo alternativo em combate a violencia ? Será que a UFBA apresenta algum estudo perante Salvador-BA (Uma das capitais mais sanguinarias do país),? E um estudo sociologico, filosofico, juridico, enfim, será algo REDUDANTE, sabe como se combate a violencia de uma regiaão? Alternativas de ingresso no sistema para classes menos favorecidas, qualidade de vida de regioes perifericas, açoes governamentais de incentivo a educação, aumento de policiamento nos locais onde os indices são maiores... Agora te pergunto, você sugere que os estudantes da uesc façam um estudo direcionado a q mesmo ? A soluçao não depende das pesquisas de uma universidade, até mesmo porque não vai sair uma alternativa milagrosa enviada dos céus e inedita que curem Itabuna, o remédio ao meu ver está dentre o que foi citado acima, se você possui um outro posicionamento e um direcionamento de como seria feito o estudo, eu me comprometo a coloca-lo em pratica quando adentrar o recinto daquela faculdade...
    Aguardo sua resposta...
    Futuro estudante de direito da universidade estadual de santa cruz

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