quinta-feira, 3 de novembro de 2011

O discurso fundacional americano e a eleição de Obama


(Nota do blogueiro: esse texto faz parte de algumas de minhas reflexões sobre a ideia de origem nacional e o cenário político mundial. Analisa a representação da eleição de um presidente negro nos Estados Unidos, e como ela configura ao mesmo tempo continuidade e descontinuidade do conhecido discurso fundacional americano. O cinema e os símbolos da nacionalidade americana são também elementos contemplados na produção desse texto.)


Por: Marcos Aurélio dos S. Souza

A primeira eleição de um afro-americano à presidência dos Estados Unidos oferece um cenário para a compreensão da relação de forças, operada no discurso da origem nacional. Origem que se quer contínua, mas se depara com fenômenos históricos descontínuos e imprevisíveis. 

O discurso de fundação, reproduzido na história oficial dos Pilgrins Fathers ou na recorrente lembrança política dos “presidentes fundadores”, cujas faces gigantescas foram “eternizadas” no Monte Rushmore, encontrou sua versão mais desconcertante não apenas na figura do filho de um queniano com uma americana branca, ostentando o nome islâmico de Barak Hussein Obama, mas também na imagem de toda uma família negra ocupando a Casa Branca. Sem enfatizar a história de luta dos negros americanos (uma luta contra a segregação que lhes vetavam, por exemplo, a presença em espaços ordinários como banheiros, assentos de ônibus etc.), e também sem negá-la, foi especialmente com uso rasurado e estratégico da retórica fundacional que Obama construiu sua singular e incômoda marca discursiva na política americana contemporânea.

O cinema e televisão americanos têm demonstrado a ambivalência que causa a idéia de um político negro ocupando o mais alto cargo político dos Estados Unidos. Em um episódio de uma das séries americanas mais populares House (2005), um fictício senador negro tem sua doença desvendada pela inteligência sarcástica de Gregory House, o médico protagonista dessa série homônima. Num dos diálogos desse episódio ao falar de suas aspirações à Casa Branca, o senador e candidato a presidência dos Estados Unidos ouve com descrença a declaração de House: “a Casa Branca não é conhecida assim por causa de sua pintura”, sugerindo uma conotação segregacionista desse emblemático locus do poder político americano. Entretanto, apesar do pessimismo de House, outras produções cinematográficas já anteciparam presidentes negros em suas narrativas fictícias, por exemplo, nos filmes O presidente negro (filme de 1972, cujo protagonista foi interpretado pelo ator negro James Earl Jones), Impacto profundo (filme com Morgan Freeman, interpretando o papel principal), e em outra série, intitulada “24 h.”, cujo personagem, David Palmer, vivido pelo ator Dennis Haysbert, ficou popularmente conhecido. Todos esses presidentes fictícios, entretanto, não produzem em si, nenhuma rasura no discurso fundacional americano, já que nessas produções cinematográficas não se expõem, por exemplo, o persistente teor racial e segregacionista de uma fundação.

A idéia de rasura significa aqui, ao mesmo tempo, reprodução e o deslocamento desse discurso, do seu domínio ideológico, de seu controle e de sua autoridade, por um acontecimento aleatório e imprevisivelmente descontínuo, que escapa a essa contenção permanente da origem e acompanha, por outro lado, à emergência de demandas específicas em situações históricas e culturais diversas. Para o discurso ultra-nacionalista e quase folclórico da herança branca americana, defendido pela Ku Klux Klan, e também para o conhecido padrão fundador WASP (White, Anglo-Saxon and Protestant), racista e anti-imigracionista, a vitória de um negro criou impacto curioso e desconcertante, porque ela aconteceu sob a mesma pompa da retórica americana, esperada nas grande sucessões presidenciais, quando o candidato eleito assume uma espécie de missão original de seus fundadores.

Entretanto, ao suscitar constantemente em seus discursos o nome de Abrahan Lincoln, personalidade emblemática de fundação da democracia americana, Obama ao tempo em que granjeava certa simpatia de alguns setores mais conservadores com sua lembrança, acionava a seu favor a ambivalência daquele que também se pronunciou contra a escravidão negra. Como político e presidente, Lincoln foi responsável no século XIX pelo fim do sistema escravocrata no sul do país, evitando sua definitiva secessão geopolítica, entre os estados do sul defensores da escravidão, e os estados industriais do norte contrários a ela, num episódio histórico sangrento, conhecido como a Guerra Civil Americana ou Guerra da Secessão.

Ainda que fosse inconcebível a eleição de um negro a presidência americana no século XIX e na percepção do ex-dono de escravos, Lincoln, pois sua posição pelo fim da escravidão se explicava menos na defesa de uma igualdade entre as raças do que nas injunções econômicas de uma sociedade que se industrializava, o ideal democrático constituído nessa época forneceu importantes elementos para o reforço da luta negra na América e no mundo, em sua feição diaspórica e transnacional. Essa luta que teve seus momentos nacionalistas, mas se fortaleceu e se configura até hoje como força dispersiva e multicultural, produz rasuras na perspectiva de um país cuja idéia de legado fundador e nacionalista ainda tem forte apelo na história de seus peregrinos e na perspectiva de uma herança e uma “pureza de sangue” provindas dos mesmos. Essa rasura teve como um dos pontos mais altos, a defesa negra pacífica e nacionalista do pastor Martin Luther King, que acionara uma rede de solidariedades negras na América, Caribe e África, possibilitando e reforçando uma abertura crescente em relação à aquisição por parte dos negros americanos de direitos, bens simbólicos e materiais nos Estado Unidos, cuja culminância nos dias de hoje foi certamente a eleição de Barak Obama.

Lincoln é suscitado, portanto, no discurso de Obama não como um ponto fixo na contínua linha da narrativa fundacional americana no seu sentido etnocêntrico, mas como o seu “melhor anjo”, uma disfarçada linha de fuga da presença fundacional, constituída dentro das possibilidades de sua formação discursiva. Lincoln está dessa forma como presença e ausência na imagem descontínua, evocada pelo presidente negro. Advogado e político de Ilinois, assim como Obama, a imagem desse fundador, aparece ainda no contexto de um país mergulhado numa crise econômica, associada à trágica gestão Bush, e sua iniciativa bélica desastrosa no Iraque e Afeganistão, que entra numa lista de fatos políticos igualmente malfadados, protagonizadas por figuras presidenciais que estão de um padrão WASP. - só para citar os mais conhecidos e emblemáticos: a Guerra do Vietnã e o escândalo Waltergate protagonizados respectivamente pelos ex-presidentes Truman e Nixon. Essas cenas e seus atores de certa forma reforçaram a conhecida “paranóia branca masculina” americana, expressos em filmes do “tipo Rambo e outros de Stallone-Norris”, em que, segundo Douglas Kellner (2001: p. 88): “os homens são vítimas de inimigos externos, de outras raças, do governo e da sociedade em geral”.

Ainda que seguisse a um protocolo nacionalista e retórico na referência ao “pai fundador”, Obama constitui seu discurso em torno de elementos de descontinuidade, reforçado por forças históricas dispersas, e conclamando uma nova (ou uma outra) declaração da independência. Por outro lado, a imagem da família Obama na Casa Branca também se apresentou como uma rasura e uma descontinuidade no discurso do “american way of life", que se deslocou de um ethos do nacionalismo americano, individualista e burguês, para a esteira coletiva e política das populações marginalizadas nos grandes centros urbanos. Um havaiano, filho de africano, e sua mulher filha de um operário de Chicago alcançaram na América não apenas uma vida confortável de classe média ou alta, mas uma posição política de destaque que promoveu uma resposta entusiástica de públicos em situações históricas diferentes: como a de milhares de imigrantes moradores de subúrbios nas grandes cidades européias, a exemplo de Paris e Londres, e de grande parte da população pobre do Quênia, orgulhosa da ascendência comum com o novo presidente americano, cujo slogan de campanha representava uma possibilidade de representação positiva para populações periféricas desprivilegiadas: “yes, we can.” A figura descontínua de um presidente americano negro no contexto contemporâneo convoca para o jogo em que se expõe e se subverte o discurso da presença fundacional, não apenas as demandas transnacionais e diásporicas da luta negra, mas também as resistências políticas da imigração contemporânea.

No lado inverso dessa possibilidade, a defesa de uma continuidade do discurso etnocêntrico da presença apareceu no cenário das eleições de Obama na sua forma mais explícita e também mais violenta, em pelo menos duas ameaças de atentados contra a vida do candidato negro e numa onda de crimes raciais no país, como registra o jornal inglês The Daily Telegraph (2009). Na matéria, intitulada “Barack Obama's election spurs race crimes around the USA” [A eleição de Obama incita crimes raciais em todos os Estados Unidos], datada no dia 16 de novembro de 2008, o jornal lista uma série e manifestações racistas, expressas durante as eleições presidenciais americanas, desde graffitis com clichês racistas como “Go Back To Africa", até atentados físicos sofridos por negros e manifestantes pró-Obama.

A matéria trazia também a opinião de William Ferris, diretor do Centro de Estudos da América do Sul na Universidade da Carolina do Norte, afirmando que os Estados Unidos vivia com a eleição de Obama: "the most profound change in the field of race this country has experienced since the Civil War,"[a mais profunda mudança no campo racial deste país, desde a Guerra Civil]. E: "It's shaking the foundations on which the country has existed for centuries" [Tremendo as fundações sobre as quais o país existiu por séculos]. A idéia expressa pelo verbo shake (em português tremer, sacudir, abalar) aplicado às idéias de fundação ou origem (“foundations”) traz aqui um sentido próximo ao que estamos definindo como um jogo e rasuras promovidas por novas situações e sujeitos histórico-culturais sobre o discurso da presença fundacional. A emergência dessas situações e sujeitos promove uma espécie de abalo, rearticulando antigos e novos caracteres desse discurso e fomentando impactos sociais tão diversos, assim como agenciando novas formas culturais e políticas de resistência.

Mesmo seguindo o protocolo presidencial ao reverenciar os “pais fundadores” (através da figura, nesse caso, controvertida de Lincoln) e o velho espírito da liberdade americana, nenhum presidente americano mobilizou uma atenção tão plural e imprevisível, quanto a que mobilizou o senador negro por Ilinois: o contexto e o sujeito histórico eram outros. Por outro lado, o impacto sobre aqueles ameaçados por esse tremor, por esse jogo discursivo também se manifestou com algumas surpresas, a exemplo da contraditória declaração do pastor Thomas Robb (2008), líder da Ku Klux Klan. Ao tentar dirimir esse impacto, Robb afirmou em seu blog ter sido um mulato, ou um mestiço (“only half black”) e não um negro que ganhou a eleição, depois declarou não estar zangado com os negros americanos, pois na verdade eles votaram em um deles, quanto aos brancos, imprecou-os alertando sobre um futuro não desejável: “As more and more non-whites come into this country the hatred for the founding people will grow” [Com mais e mais não-brancos vindo para esse país, o ódio pelo povo fundador crescerá] .

A fala confusa de Thomas Robb, sobre a condição e a não condição de Obama como negro (um não-negro que na verdade é negro, um mulato, metade negro, metade branco, mas que não é branco) parece querer confundir a posição americana tradicional que não compreende a categoria mestiço como uma condição racial, ou pelo menos como condição de duplo pertencimento, mas como um não-branco, categorizado assim por sua descendência como negro. Sendo que em qualquer outra situação cotidiana e social seu biotipo lhe apresentaria sua condição de negro - passível inclusive de violência por membros da Ku klux klan, em tempos mais agressivos desse grupo - a fala de Robb revela, a tentativa de manutenção do discurso da presença branca (original), com emendas escandalosas que, mesmo sem esse intuito, rasuram-lhe ainda mais. Demonstra, assim, o artificialismo e a produção perniciosamente inventiva do discurso da origem, das narrativas de fundação, dos registros coloniais que apesar de tudo ainda funcionam como justificativas para a permanência dos diversos tipos de segregação e racismo existentes nas sociedades contemporâneas.

Para o discurso da origem metafísica, entendido aqui como essa presença fundacional inventada, a história é um contínuo, iniciada num ponto temporal definido pela escrita e pela narrativa dos que proclamaram a si como “primeiros” e legítimos, em contraposição aos outros ilegítimos, nessa perspectiva, incapazes de narrar sobre si ou agir por si. Entretanto, esse discurso que ainda se apresenta de forma agressiva na atualidade, está cada vez mais sujeito ao confronto e diálogo com movimentos históricos imprevisíveis das relações, e das novas demandas culturais e políticas. As perspectivas historiográficas na contemporaneidade acerca das nações ocidentais não podem ser levadas a sério, sem se considerar a constituição efetiva dessas irregularidades históricas e das violências simbólica e física praticadas em nome do desejo de continuidade e de poder dos discursos de fundação das nações modernas.


2 comentários:

  1. Obama é uma farsa criada pelos Democratas para voltar ao poder, pelo fato dele ser negro em um país imensamente racista teve um efeito reverso, poiis a mídia o viu como Salvador.
    Belissímo texto Marcos.

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