sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Preto matando preto ou Ainda o Cabula


Existe uma música intitulada "Haiti", letra de Caetano Veloso, que diz assim: 

“Quando você for convidado pra subir no adro/Da fundação casa de Jorge Amado/Pra ver do alto a fila de soldados, quase todos pretos/Dando porrada na nuca de malandros pretos/De ladrões mulatos e outros quase brancos/Tratados como pretos/Só pra mostrar aos outros quase pretos/(E são quase todos pretos) E aos quase brancos pobres como pretos/Como é que pretos, pobres e mulatos/E quase brancos quase pretos de tão pobres são tratados.” 

Embora Caetano tenha posturas duvidosas em relação a políticas raciais no Brasil (já se colocou contra as cotas nas universidades, por exemplo) seu texto demonstra como funciona o racismo no Brasil, sua faceta mais perniciosa: a internalização e a reprodução do preconceito racial por parte do próprio negro (ou dos "brancos", "quase negros"), vítima e algoz. 

O que herdamos hoje é o funcionamento de uma sociedade que perdurou por mais de 350 anos da nossa história. Uma estrutura colonial, que criava hierarquias entre os próprios escravizados. Como não havia uma origem única, ou uma única cultura de escravizados negros, os quais provinham de diversas partes da África, e, como famílias e etnias eram separadas e desestruturadas para não haver um levante (não havia sequer uma mesma língua) anticolonial, era muito fácil delegar funções coloniais escravocratas (a escravidão era um sistema amplamente praticado na África e na Europa), inclusive funções de opressão entre os próprios africanos. 

A figura do capitão do mato surge daí. Ela era, muitas vezes, um africano ou descendente de africano, que exercia função de caçar negros fugidos. O discurso de articulação negra existiu fora desse sistema opressivo, a partir da inteligência de muitos desses indivíduos que, mesmo com a desarticulação promovida pela diáspora forçada e, muitas vezes, com a inexistência de uma única língua, conseguiam criar movimentos de resistência escrava. E pipocaram quilombos, revoltas e rebeliões, por toda parte do território brasileiro. O Haiti (país que, durante o século XIX, tornou-se a primeira república negra do mundo, e a primeira república da América Latina, e que vive sua miséria atual pela política racista de boicotes históricos de outros países) "não é aqui", porque a colonização conseguiu e vem conseguindo nos desarticular mentalmente. E “é aqui”, pela quantidade de afrodescendentes que temos em nosso país, pelo poder de resistência que isso pode denotar.

A música redimensionada no presente mostra que essa estrutura perdura toda vez que um negro oprime, violenta e prende o outro. A música é interessante porque coloca isso no palco da contemporaneidade, da violência policial no palco das grandes festas, como no carnaval, ou na gravação de grandes sucessos da música internacional, vide Paul Simon e Michael Jackson no Pelourinho. Violência que é quase sempre dirigida às pessoas negras.

Bom, aí vem o discurso da segurança, das drogas da criminalidade… Mas vamos pensar a criminalidade, então, bem friamente. Onde está o crime? O tráfico de droga é o principal motivo para o assassinato de jovens negros, segundo registros policiais. No entanto, são jovens e velhos brancos, em grande parte, que compram essa droga. A droga não é consumida no Cabula, bairro de negros, mas na Pituba, na Graça, bairros de branco. A polícia não entra em prédio de luxo para prender inveterados consumidores de cocaína, que alimentam o tráfico. Imagine só a cena de vários policiais pegando jovens da Graça, Pituba, Barra, em sua maioria brancos e de classe média, e os executando por serem consumidores de droga, ou criminosos. Imaginou? Não dá nem pra imaginar, não é?Porque o capitão do mato não é louco de invadir a Casa Grande, embora toda ordem de crime seja praticada por quem está lá. 

Agora, pense na cena de policiais entrando em barracos de pretos e pobres, selecionando-os a esmo nas ruas do Cabula e matando 13 inocentes. É mais fácil matar negro pobre, porque foram historicamente relegados pela ideologia raciológica da inferiorização, e por uma justiça ideologicamente branca, que cobra caro para ser “justa” (a redundância é necessária). 

Não estou dizendo que o policial reedita sempre a função do capitão do mato, ou que um policial negro sempre faz isso. Mas quando a polícia se torna braço ideológico de um Estado genocida, que tem costume de atentar contra os mais pobres e ver a criminalidade intensamente como prática da população negra ( herança maldita da escravidão e da colonização) é claro que vai haver resistência. Ninguém é tolo de ver um alto índice de homicídios de pessoas negras e achar que isso tudo é por causa do crime. Há uma pesada carga histórica, ideológica, nesse fato sombrio.

Polícia que é polícia e quer combater o crime, o tráfico de drogas, rompe a corda do bloco do carnaval e apreende a cocaína do "mauricinho" que está lá. Se ela só exerce poder e brutalidade contra a população que está fora, na periferia, se ela é ostensiva para quem é inocente, só porque está do lado estigmatizado, exerce sim a função de capitão do mato. O professor reedita a estrutura colonial quando considera um aluno tábula rasa, diz que ele não sabe de nada e desconsidera seus saberes, como os jesuítas faziam com os índios. Da mesma forma, que a polícia reedita o poder genocida da casa grande (o engenho dos brancos) quando assassina 13 jovens inocentes.

Viva os bons policiais, que não entram nessa lógica. E que vivam nossos jovens negros.

(Para quem quer ampliar o conhecimento sobre o assunto "racismo brasileiro", "colonialismo e racismo", algumas boas leituras:


AZEVEDO, Célia Maria Marinho de. Onda Negra, Medo Branco: o negro no imaginário das elites - século XIX. 2ª ed. São Paulo: Annablume, 2004.

FANON, Frantz. Os condenados da terra. 2 ed. Tradução de José Laurênio de Melo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1979.

GILROY, Paul. O Atlântico Negro. Modernidade e dupla consciência. Tradução de Cid Knipel Moreira. São Paulo/Rio de Janeiro: 34/Universidade Cândido Mendes – Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001.

GONZALES, Lélia. A categoria cultural da Amefricanidade. In.: Revista Tempo Brasileiro. Nº 92/93, 68/82 (jan-jun), 1988: p. 69-81.

MUNANGA, Kabengele As facetas de um racismo silenciado. In SCHWARCZ, Lilia Moritz; QUEIROZ, Renato da Silva (orgs.) Raça e diversidade. São Paulo: EDUSP/Estação Ciência, 1996. p. 213/229.

SODRÉ, Muniz. O terreiro e a cidade: a forma social negro-brasileira. Petrópolis, Vozes, 1988.)

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