terça-feira, 6 de outubro de 2015

Meu neto preto


Ela tinha o direito de ser feliz. Mas eu andava desanimado com aquela relação. Esperava uma crise qualquer entre eles, para eu desabafar. Certamente, ela me ouviria calada, respeitaria minha opinião de pai, enfim, me obedeceria. 

Eu queria que minha voz fosse grave como a do meu pai, e eu seria um pai para ela como meu pai foi para mim, antes da doença, que o devastara. O peso da velhice e da diabetes o deixara estranho, era menos meu pai, parecia cada vez mais índio, sentado, pernas abertas, absorto, como um velho botocudo. Lábios abertos, gengivas a mostra, sem dente, como se tivesse usado aqueles alargadores de boca, durante toda a vida. Morreu assim, débil, e eu queria morrer diferente.

A felicidade era branca, e eu estava gordo e grisalho, respeitavam-me como um coronel, todos me bajulavam, mas naquele momento eu queria ser apenas o seu pai. Diria pra ela, esperando momento oportuno, que não queria seu envolvimento com pessoas de outra cor. Ela estava feliz com aquela relação, mas nada dura para sempre. E quando a duração se enfraquecesse, ou perdesse sua solidez, minha voz teria o peso de uma premonição. Aventura é para homem, mulher tem que casar, assegurar estirpe e cor, com um nome de macho, de preferência estrangeiro. O velho me ensinara isso e ensinara isso para minhas irmãs. Pardo, índio, sobrenome de pobre, mas com lições grandiosas para as nossas vidas. Nem se incomodara, quando coloquei nos netos o sobrenome de mamãe, mais raro, porque o dele, que eu herdara também, lembrava tristeza. 

Quando a encontrei duvidosa, não foi a minha voz, mas a voz do avô, meu pai, que lhe disse aquelas palavras:

- Filha, acho ele uma boa pessoa, mas não gosto de sua estética. Eu não casaria com ele.

As palavras tiveram peso naquela natureza, que parecia indócil, mas sempre me obedecia, porque ela se calou e partiu.

Durante os meses seguintes, a tristeza assolara seu rosto, sua relação já não era mesma. Queixava-se sempre do marido. Eu apenas a ouvia e balançava a cabeça como um velho ermitão, um monge, cuja sapiência se pressente no silêncio. Até que um dia me aparecera grávida. Um filho do marido preto, um desfecho atordoante daquela relação, que condenei, e parecia acabar um dia, sem um fruto sequer. Engoli seco a notícia, mas me segurei para não ser bruto. 

A brutalidade, aliás, era a marca de minha adolescência com meus três irmãos homens, com diferenças mínimas de idade. Disputávamos tudo, roupas, comida e a atenção de mamãe. Nossa maior disputa, porém, era o sexo com Raimunda, a empregada preta, uma espécie de escrava que nos criou da infância até a adolescência. Até que meu irmão mais novo, incauto, esquecendo o uso da camisinha, a engravidara, e fui eu quem comprou Cytotec no camelô, apagando a possibilidade de um herdeiro preto na nossa família.

Agora a sombra voltando. Minha filha grávida. Perguntei se ela queria ter o bebê. Ela chorou e eu me calei. Senti-me envergonhado, seria avô de um neto ou de uma neta preta. Senti o peso da minha própria velhice. Temi morrer, careca e magro, minha imagem a mesma, ou pior que a do meu pai. Lembrariam meu sobrenome de tristeza, a minha herança de tristeza. E a terra preta desabaria sobre mim, restando apenas, como fundo do meu orgulho e miséria, meu esqueleto branco e fétido.

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