sábado, 17 de setembro de 2011

Dândi angustiado

Por: Marcos Aurélio S. Souza  
 
Há um tipo de pseudointelectual que vem se transformando em caricatura de si mesmo, seja nas rodas acadêmicas, nos textos de jornais ou nos debates públicos. Descreverei, com duas histórias, a postura, a empáfia meticulosa desse pseudointelectual, para tentar mostrar como esse tipo agoniza, perante a força de demandas coletivas, que vem fazendo girar a roda da história nos últimos anos.

Esse tipo de intelectual - chamarei de “dândi angustiado” (pela capa discursiva, aparentemente bela e eloquente, que utiliza para adornar suas posições incoerentes e vazias) - tem como característica atacar causas, principalmente, as causas coletivas e sociais e, dessa forma, utilizando de cacoetes e lugares-comuns, torna-se uma espécie de movimento social de si próprio. Um narciso feioso, num exercício de auto convencimento de uma beleza inexistente.

A história para ele começa a partir do seu próprio nascimento. Pensar a fome e a miséria do mundo, é pensar sua vontade de comer e sua conta bancária. Defende direitos inimagináveis, numa apropriação desastrosa de reivindicações sociais legítimas. Quando discursam, suas orelhas aumentam, seu nariz se torna colossal, as bochechas ficam extremamente vermelhas... Resultado: uma perfeita caricatura de si, sem tirar, nem por.

Uma vez, tive a oportunidade de ver uma dessas transformações. Rio de Janeiro, UERJ, 2008: uma mulher de meia idade, usando uma espécie de tailleur brega, com sorriso simpático, sotaque do sul com o ele (l) bem acentuado, apresentava sua comunicação no congresso mais degradado dos estudos literários, cujo nome ainda persiste lembrando, anacronicamente, uma febrezinha de estudos literários no Brasil da década de 90: o congresso da ABRALIC (Associação Brasileira de Literatura Comparada). Foi o último congresso desse tipo que participei.

Ela apresentava um estudo qualquer, desinteressante, sobre qualquer escritor canônico, cujo nome não me lembro mais. Em determinado momento, forçando um link no seu texto massante, ela resolveu discursar contra toda e qualquer política de inclusão, como se quisesse quebrar a monotonia da sua leitura, num evidente despreparo intelectual. A sentença, a partir da qual iniciava sua fala, era essa: “agora o governo quer incluir todo mundo e como ficamos nós?”. O nós, a quem ela se referia, era a plateia? Olhei para trás, eu estava sentando na última fila. Era a plateia mesmo e eu estava no meio. Senti medo.

Sua narrativa continuava com um relato pessoal, um caso esdrúxulo, cuja lembrança me causa arrepios. Dizia ela, em tom de revolta, que ao embarcar na aeronave, juntamente com seu marido, rumo ao Rio, ficou no final da fila, porque existiam, segundo ela, “cotas para tudo”, e continuava, estrebuchando: “cotas para velhos, cotas para deficientes e crianças, terminamos, eu e meu marido, no fim”. Fez cara triste e de revolta. Eu fiquei com vontade de dar uma gargalhada, mas me contive. A medida que a mulher ia narrando a história, o seu tailleur parecia maior, os botões ficaram gigantes, o batom esparramava de sua boca até o queixo e pescoço, seu eles (lll...), ecoando nos corredores da UERJ, ficavam mais sonoros, quase insuportáveis.

Pensei: essa moça deve fazer parte de um movimento de classe, de classe média e alta, que circulou há pouco tempo, intitulado “Cansei”. Morri de raiva de mim, porque não tive a paciência de ouvir toda sua comunicação, morri de raiva, até hoje, porque não pude replicar-lhe no final, no momento das intervenções. Tinha que me apressar atrás de algo que fizesse valer a pena minha estada no Rio. Era aquilo mesmo: ela defendia o direito de pessoas brancas, de alto padrão financeiro, que vão para congressos de literatura. Eu era um sonhador, acreditava num congresso diferente disso.

O discurso da senhora de tailleur parecia o de um outro dândi angustiado, que ouvi discursar tempos depois nos corredores da UFBA. Ele defendia o direito dos brancos, falava do preconceito contra os brancos. Quando terminou a cantilena, perguntei se ele acreditava em estatísticas, ele foi esperto e disse, impacientemente, que não. Falei que como eu também não acreditava em uma palavra sua e tinha o ouvido até ali, ele teria que me ouvir também. Falei dos índices de miserabilidade que atinge a população negra, com base no IPEA, do genocídio de jovens negros, da concentração de riqueza nas mãos de famílias brancas em Salvador, da dificuldade de encontrar um médico negro, das necessidades de políticas de reparação, da existência de políticas como essa em todas as partes do mundo etc.

Ele disse que “eu” estava diminuindo as pessoas negras, como se elas não tivessem capacidade de mudar suas próprias condições, tratando-as como deficientes. Interpelei, disse que quem diminuía as pessoas negras eram, por exemplo, a representação negativa dos negros nos livros didáticos, as brincadeiras racistas, que não tinham graça nenhuma, o neonazismo e o mercado que escolhe uma pessoa em detrimento da outra, porque tem a pele clara, e isso era escandaloso. Continuei: “a deficiência era uma invenção maldosa e antiga que só poderia acabar com políticas afirmativas e de reparação”. O papo só acabou quando uma moça negra passou por nós levando cafezinho para o professor na sala de aula.

Ficou cada vez mais comum se deparar com a posição de professores, escritores, sociólogos, políticos etc que, não suportando mais a ascensão de pretos e pobres pelas vias das políticas de reparação ou não aceitando políticas que criminalizam preconceitos históricos e estruturais, como o da homofobia, vociferam agonizantes seus argumentos descabidos, exibindo o tamanho grotesco e aberratório dos seus preconceitos. Não dá pra conter uma grande roda quando ela está embalada pelo desejo, pela força acumulada daqueles que, ao não quererem mais exercer forçadamente papéis subalternos, movimentam para frente, e com vigor, o motor de sua própria história.

2 comentários:

  1. O TEXTO ESTÁ MUITO BOM!!

    ESTAMOS CONSTRUINDO UM NOVO DIA,UMA NOVA CAMINHADA QUE DEIXAREMOS COMO LEGADO PARA AS FUTURAS GERAÇÕES. ENTRTANTO,QUERO RESSALTAR QUE MESMO DIANTE DE MUITOS ATAQUES,POR PARTE DOS CONSERVADORES,DOS MEIOS DE COMUNICAÇÕES E SEUS GESTORES QUE QUEREREM A SUBMISSÃO DOS NEGROS E A CONTINUIDADE DA EXPANSÃO ESCRAVOCRATA.ESTAMOS À VECERA ,MAIS UMA DAS LUTAS, DE MUITAS QUE TRAVAREMOS E CONQUISTAREMOS DAQUI PRA FENTE.PORTANTO,PARABÉNISO A TODOS AQUELES QUE CONTRIBUIRAM DIRETA E INDIRETAMENTE, COM ESSE MOMENTO HISTÓRICO.ASSIM, FICOU ÓBVIO, O DINAMISMO DO "STF" PELO RECONHECIMENTO E REPARAÇÃO DE 300 ANOS, DE SOFRIMENTO DE UM POVO. VAMOS À LUTA... ABRAÇO PROF.MARCOS

    ResponderExcluir
  2. Prof Marcos, não pense que este tipo de discurso está distante de nós não viu? Ouvi dizer estes dias que na nossa UESB em Jequié existe uma professora que prega em sala de aula que o negro só ascende quando burla de alguma forma o sistema. Pessoas como estas deveriam estar presas e não numa sala de aula. Estes discursos servem para nos intimidar no nosso movimento para frente. E também para perpetuar o que os branco elitistas querem, a nossa opressão. Belo texto!

    ResponderExcluir