terça-feira, 27 de setembro de 2011

O Barriguinha

                                                    Marcos Aurélio dos S. Souza


“Pra aquele lado não, que é barril!" Gritei pra Donga e ele acelerou o tempra na ladeira, em direção a Armação, evitando a Artur Azevedo e o módulo dos canas. A voz da madame era estridente, caiu como uma jaca, pensei que tinha desmaiado. Todo mundo perde o tino diante de uma taurus, mesmo de brinquedo. O barulho de ré, cantando pneu, a dona no chão na frente do prédio, com as duas mãos na cara. Mais gritos.

Donga era comparsa até no dominó. Conheci na Baixa da Égua quando era chamado Barriguinha. Tinha uns dez anos, seco de dar dó, depois mudou para o Nordeste de Amaralina e continuamos se topando numas paradas sinistras. Ele fazia o tipo cabuloso, eu era seu aprendiz. Tomou corpo, ficou forte, deixou cabelo crescer, começou a fazer sucesso entre as tchutchucas, curtia viado também e não escondia. Brigou com uns quinze (quase matou um) por causa do antigo codinome, Barriguinha. Com dezesseis impôs a todos o Donga, eram as iniciais de seu verdadeiro nome: Donizete Garcia. A gente tirava um sarro dele, quando lembrava seu nome civil, parecia de bandido mau, mexicano ainda por cima.

Era outro agora. Vinte dois anos de idade, três crimes nas costas, duas vezes na cadeia. Barriguinha, uma lembrança. Quando saí do Rio e vim pra cá com doze, me meti logo com a pivetada da Bahia, comecei roubar, Donga quem me iniciou nas paradas. Olho pra ele agora, dirigindo o tempra, roubado em Lauro de Freitas, nem parece o toco de gente, pele e osso que tinha seu ponto na Pituba. Naquela época, fumava cigarro e jogava coco como ninguém, com seus braços finos, malabarista de primeira. Dizem que um coroa, empresário do Picolino, quis levar ele pro circo. Ele vazou. Velho quando parava no sinal “pra conversar” de duas uma: quer comer o rabo da molecada ou levar pra religião (as duas coisas, ao mesmo tempo, também era possível). O menino baleiro ainda tentou avisar de quem se tratava. Donga não quis meia, se picou.

Sabia que eu tinha terminado de sair da FEBEM, que minha mãe não me aguentou e me enviou para Bahia, morar com minha avó, que meu tio foi presidente de cadeia na Disneylandia, em Contagem. Aproximou-se de mim com interesse, não de aprendiz, mas de mestre. Na época ele era o mais mirrado e o mais ousado da turma de pivetes, ofereceu um cigarro e me levou para a boca dos caras. Lembro que, ainda cabaços, comemos juntos duas negas das Cajazeiras, atrás do Cristo na Barra. Ele relou o braço nas pedras, afoito. Tirei sarro dele e da mina feia com ele, ele partiu pra cima: “Porra Carioca, sai pra lá”. Deu soco e pontapé em mim, quebrei um dente. Nunca mais brinquei com ele, passei a respeitar sua autoridade e sua valentia.

O irmão mais velho, que virou samango em Camaçari, não cansava de troçar dele, lembrando do velho apelido. Dizia que Donga, mais novo dos irmãos, quando tinha três anos, ficava com a mãe na Manoel Dias, fazendo gesto engraçado o dia todo, batendo na barriga e estendendo a mão para os motoristas no sinal de trânsito. Miúdo, sujo e faminto, fazia ainda o mesmo gesto, dormindo e sonhando com comida, debaixo da marquise, numa caixa de papelão.

Com ele me especializei na modalidade tomada de carro. Tínhamos informantes, que passavam a real, o mapa de cinco ruas no Costa Azul e Pituba. Diziam os horários de saída e chegada das riconas solitárias. Ficávamos na espreita, no menor vacilo atacávamos, levávamos o carro para o desmanche na Boca do Rio. O esquema era: ele dirigia, parava o tempra atrás do carro da vítima, eu saltava, colocava o berro na cabeça, mandava levantar a mão e descer, deixando a chave no painel. Donga ia na frente, abrindo caminho, e eu ia atrás no carro roubado. Num mês tivemos três êxitos e ganhamos uma grana preta do desmonte. Dessa vez, a mulher saiu do carro de supetão, andando depressa para frente do prédio com a chave na mão. “Larga chave sua vaca, passa pra cá”. Largou a chave na boca de lobo, desabou no chão com as mãos na cara. Eu entrei novamente no carro, assustado com os gritos de “ladrão” do zelador, no prédio ao lado. Donga deu a partida.

Agora subíamos a ladeira do Centro de Convenções, descíamos em direção ao Aeroclube, no som de "Negro Drama" dos Racionais, nossa música, nosso hino. O destino era conhecido: praia do Corsário. Lá fumávamos um back para relaxar, pensar direito no que erramos. Ele me pedia, enrolando a erva, pra não deixá-lo virar um nóia por conta do excesso de canabis, e crack "vez em quando". E uma estranha intimidade se desenvolvia nesse momento. Parecíamos namorados discutindo a relação, ou casal discutindo os problemas do orçamento da casa. Ele lembrou da menina de Amaralina com quem andou se engraçando mês passado, “uma cavala”. Eu dizia que nunca fui talarico, mas que estava de olho nela também. Fazia uma cara de ciúme, e eu sabia que era de ciúme mesmo. Donga voltava ao assunto do crime e das duas vezes que “tocou o foda-se” pra cima da polícia, depois de roubar um ônibus. Prova de sua macheza.

Enquanto falava, minha mente viajava no tempo recente. Lembrei das duas vezes que, tarde da noite, voltando juntos de uma farra, na onze, Donga se desviou rapidamente do caminho, em direção a caixas de papelão, no meio do lixo. Voltava em seguida para mim, sorrindo com seus dentes, enormes e lindos: “pensei que tinha visto um pivete ali”.

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