sábado, 17 de setembro de 2011

O mundo fantástico da Rede Globo e "o caso da Raposa/Serra do sol”


Por: Marcos Aurélio S. Souza 

 Dizem que quanto maior a vidraça, maior o estrago da pedrada. Eu não acho isso, não. Quem tem vidraça grande, escolheu a melhor vidraça, brilhante e reforçada como um colete a prova de bala. Pedrada que vier, tem que ter calibre grosso e mesmo assim corre o risco de apenas arranhar sua estrutura.

Hoje de manhã, zapeando na TV, parei pra assistir ao Bom Dia Brasil no momento em que os apresentadores discutiam a situação da reserva
indígena Raposa/Serra do Sol. Todos sabem que essa imensa reserva com 1,7 milhões de hectares (daria mais de 10 cidades como São Paulo) lá na pontinha de Roraima foi reconhecida juridicamente como reserva e sua demarcação contínua foi autorizada pelos ministros do STF, por 10 votos a 1.

O grave apresentador Alexandre Garcia, que encarna muito bem o pensamento da Rede Globo, soltou uma dessas pérolas que revela como a elite brasileira ainda pensa como colonizador português do século XVI, e também como parece que ela parou no tempo das teses raciais da mestiçagem redentora (final do XIX e início do XX) de Silvio Romero, Oliveira Viana, Gilberto Freire, Arthur Ramos etc. Estupefato com o reconhecimento dessa área indígena, Garcia recomendou cautela porque, segundo ele “nossa cultura e tradição era a da mestiçagem”, e questionava se seria “um bom norte separar não-brancos (se referia à política de cotas) na universidade” e “agora não-índios no extremo Norte do país”.


O tom democrático e humanista de Alexandre Garcia buscava, entretanto, inverter o movimento não só brasileiro, mas mundial, pelo reconhecimento dos direitos das chamadas “minorias”, conquistado a base de lutas incansáveis e de debates políticos há décadas, quiçá séculos, seu tom parecia tentar recuperar a ficção maliciosa de que todos nós nascemos iguais, de que todos nós sempre tivemos os mesmos direitos, somos tratados da mesma forma e teremos as mesmas oportunidades de vida aqui no Brasil, graças ao milagre da mestiçagem. Ele nem sequer se atualizou com a revirada sociológica trazida por Florestan Fernandes, que já na década de 50 demonstrava a condição precária e humilhante em que a população negra brasileira se encontrava, sem trabalho, sem dignidade e sofrendo de um racismo cotidiano e institucional. 

Até a UNESCO, que nessa época, crente nessa ficção, resolveu investir em uma pesquisa sobre isso, a fim de construir um modelo de sociedade para o mundo, “quebrou” a cara quando descobriu que o Brasil era, sim, um país racista, e os abismos entre as condições econômicas e sociais de negros e brancos eram imensos. Garcia, Rede Globo, elite brasileira perderam as melhores aulas de sociologia brasileira pelo menos dos meados da década de 50 pra cá.

Esse não é um discurso essencialista, não estou defendendo que os índios vivam separados do mundo em uma reserva fechada (e também não concordo que os produtores daquela região sejam expulsos sem tentar uma resolução do conflito com os índios e se isso não for possível que sejam idenizados), ou que os negros não possam se misturar com os brancos e vice-versa, mesmo porque a mestiçagem não é um especificidade brasileira, nem aqui ela se tornou mais importante do que em outros lugares, ela sempre aconteceu e sempre acontecerá. Estou tentando mostrar que o discurso da mestiçagem redentora funciona muitas vezes como uma sombra que obscurece o que de fato ocorre (e nesse sentido ela expressa o mesmo desejo de "branqueamento" do século XIX): as pessoas são tratadas de forma diferente, sim, quando são (mais) negras, ou (mais) indígenas, e isso revela um problema social e histórico que só se resolverá quando a discriminação se inverter positivamente, através de políticas de afirmação e de reparação, para que essas pessoas possam partir de circunstâncias "mais iguais" na busca por um trabalho, por uma vida digna e que possam também ter respeitadas suas formas de cultura e de cosmovisão. As políticas de reparação não são formas assistencialistas de incluir, são maneira de tentar colocar "em equilíbrio" uma balança que sempre pendeu para um lado, quando a balança chegar a um equilíbrio seguro, elas já cumpririam seu papel e podem ser suspensas.

A mestiçagem é a ficção predileta dessa turma de cara lambida, é a vidraça que eles bem urdiram contra nós: negros, negras, índios e índias. Enquanto isso, índios são queimados vivos por jovens “filhos-de papai” em Brasília, empregadas negras são espancadas por mauricinhos ociosos, sob a alegação de as confundirem com prostitutas (outro absurdo), negros dos 18 a 29 anos constituem a faixa populacional maior vítima de homicídio e de violência policial e tem, estatisticamente, maior dificuldade de serem admitidos num emprego do que os brancos, além de ganharem menos da metade do salário dos segundos (ver pesquisa recente do IPEA: http://www1.folha.uol.com.br/folha/dinheiro/ult91u456002.shtml). Enquanto isso, ainda, o racismo sob a farsa dos contatos cordiais grassa nas famílias brasileiras, nas relações íntimas, nas desconfianças contra aqueles que carregam em sua pele e em sua face a cor/estigma da marginalidade.

Alguém esqueceu de lembrar ao Sr. Garcia e à turma da Globo que a separação sempre existiu, ela é histórica e não temos a esperança (a não ser pela insistência de políticas de reparação) de que ela se resolva de um dia pra outro, quando algum branquinho engravatado resolver contar outra história bonita falando de harmonia das raças, do modelo mestiço brasileiro e essa patacoada toda que estamos cansados de ouvir e ler. Aqui e em qualquer parte do mundo (só a Globo e a elite brasileira não acordaram pra isso) só pudemos acreditar em coisas palpáveis: mais negros e negras na universidade e na TV fazendo papéis dignos, mais índios na política e com seus direitos reconhecidos e seus territórios devidamente demarcados. 

A Rede Globo já sofreu processos judiciais no passado do movimento negro e precisa receber mais processos pela faxina étnica, que vem promovendo em suas novelas, telejornais, programas de entretenimento etc. E não podemos deixar que alienados como Alexandre Garcia, certamente comandados por figuras hediondas, como o diretor executivo da Rede Globo Ali Kamel (aquele que publicou um clássico do conto de fadas “Não somos racistas”), continuem falando besteiras, sem a mínima sensibilidade e o mínimo, mas bem mínimo, conhecimento histórico e sociológico.

Eu aqui do meu lado continuarei a jogar pedra nessa vidraça! Essa é apenas uma primeira.


(publicado, inicialmente, no blog da raposa felpuda (bp.santana.zip.net), dia 20/03/2009.

Um comentário:

  1. Excelente texto! Reflexão completa e articulada sobre movimentos socais, mito da democracia racial, cotas, direitos das minorias, colonização, exploração, mídia, ideologia da classe dominante e muito mais!

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